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Atas revelam como o Ministério da Defesa se empenhou na produção de cloroquina na pandemia

Sob Azevedo e Silva, Defesa teve papel ativo na produção de cloroquina durante a pandemia, e apoiava indústria que pretendia tornar a Bahia um “case” no uso do fármaco.
Sob Azevedo e Silva, Defesa teve papel ativo na produção de cloroquina durante a pandemia, e apoiava indústria que pretendia tornar a Bahia um “case” no uso do fármaco. Por Rubens Valente, Alice Maciel, Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Matheus Santino, Bianca Muniz, Thiago Domenici | Agência Pública
Exército produziu por meio do seu laboratório mais de 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina em 2020. (Foto: Ministério da Defesa)

As reuniões do CCOP (Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19) realizadas de março de 2020 a setembro de 2021 foram coordenadas de início pelo ministro da Casa Civil de Jair Bolsonaro, Walter Braga Netto, que logo atribuiu a tarefa ao seu braço direito na pasta, o tenente-coronel reformado do Exército Heitor Freire de Abreu, formado pela Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), então subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil. Depois que Braga Netto deixou a Casa Civil e se tornou ministro da Defesa, em março de 2021, o tenente-coronel foi nomeado assessor especial do ministro. De lá seguiu, em 2022, para uma assessoria na Presidência da República.

Justamente um dos pontos que permaneceram em aberto ao longo de toda a CPI da Covid foi saber de quem partiu a ordem para que o Exército aumentasse a produção de cloroquina por meio do seu Laboratório Químico Farmacêutico (LQFEx). Mais de 3,2 milhões de comprimidos foram produzidos em 2020 – contra zero, no ano anterior. Por ofício, a Defesa limitou-se a dizer à CPI que a solicitação que fez ao Exército atendeu a uma “orientação e demanda” do Ministério da Saúde. As atas do CCOP, contudo, demonstram que a Defesa foi bastante proativa no tema da cloroquina revelando-se, no mínimo, coautora da decisão da produção do medicamento.

Nas atas, o empenho da Defesa pela cloroquina começa a ser registrado no segundo mês da pandemia. Em 4 de maio de 2020, quando o Brasil já contava 7,3 mil mortos pela doença, o representante do Ministério da Defesa, cujo nome não constou da ata, informou solenemente ao conjunto dos outros ministérios: “Acordaram, juntamente com o MS [Ministério da Saúde], a produção de Cloroquina em laboratório”.

O ministro da Defesa naquele dia era o general Fernando Azevedo, que deixaria o cargo em março de 2021 em meio a uma crise militar. Naquele segundo trimestre de 2020, contudo, a pasta de Azevedo informou a todos os outros órgãos que estava empenhada na fabricação do medicamento ineficaz. O ministro da Saúde era Nelson Teich. Onze dias depois, ele seria substituído pelo general do Exército Eduardo Pazuello.

Poucos dias antes do “acordo” anunciado pela Defesa com a Saúde, em 20 e 28 de abril, Bolsonaro havia desqualificado publicamente as críticas da população e da imprensa sobre o papel do governo na pandemia. “Eu não sou coveiro”, disse no dia 20. Praticamente desde o início da pandemia, o então presidente falava da cloroquina como uma solução para a pandemia. Uma suposta medicação para o tratamento da Covid-19, inexistente segundo todos os cientistas sérios do país e do mundo, poderia acelerar o retorno dos brasileiros ao trabalho.

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Em 26 de março, por exemplo, ele disse que a cloroquina, “medicada corretamente, não tem efeito colateral”. Em 21 de março, em sua conta na rede social Twitter, Bolsonaro divulgou que ele próprio e a Defesa decidiram ampliar a produção da cloroquina.

Tornar a Bahia um “case” no uso da cloroquina

Segundo as atas do CCOP da Casa Civil, os militares da Defesa – e os civis do Itamaraty e da Saúde – encamparam a decisão de Bolsonaro.

Em 17 de junho de 2020, um mês depois do anúncio do “acordo” com a Saúde, o representante da Defesa informou na reunião do CCOP que “oxímeros [sic, oxímetros] e eletrocardiogramas são importantes para receitar a cloroquina, estão monitorando essa questão juntamente com o MS [Ministério da Saúde]”. A menção a eletrocardiograma se explica porque, entre os efeitos adversos da cloroquina citados por médicos, estavam os problemas cardíacos. No mês seguinte, a imprensa informou que o próprio Bolsonaro fazia dois exames cardíacos por dia para monitorar possíveis efeitos adversos da hidroxicloroquina.

Dois dias depois, em 19 de junho de 2020, o Ministério da Saúde anunciou ao CCOP que publicara uma “orientação também sobre o uso da cloroquina”.

Àquela altura, inúmeras organizações e especialistas já haviam advertido várias vezes sobre os riscos e a ineficácia do uso da cloroquina no tratamento da Covid-19. Em meados de junho, a OMS (Organização Mundial da Saúde) anunciou a suspensão dos testes com cloroquina.

As atas do CCOP demonstram que a palavra dos cientistas nada importava para os militares da Defesa. Em 3 de julho de 2020, o representante da Defesa informou que no dia anterior havia se reunido com “representante do MS [Saúde], Sindfarma e fabricantes de medicamentos para tratar de fármacos para atendimento precoce envolvendo entre outros fármacos, os antibióticos, a cloroquina e a azitromicina”. Há no país alguns sindicatos de empresários da indústria farmacêutica chamados de “Sindifarma” ou “Sindfarma” – a ata não deixa claro a qual organização se referia.

O engajamento da Defesa com o remédio ineficaz era total. Em 1º de julho, o representante do ministério informou às outras pastas que “a Apsen Farmacêutica S.A. fará a doação de cloroquina para que a Bahia seja um case [exemplo] que possa ser reconhecido em todo o Brasil no tratamento da Covid-19”. A empresa apoiada pela Defesa era uma das principais fabricantes da hidroxicloroquina no Brasil. No ano seguinte, ela informou à CPI da Covid que vendera 58,8 milhões de comprimidos do remédio em 2020. Na época, ela recorreu ao governo Bolsonaro para conseguir importar os insumos necessários, chamados de IFA, para a produção do medicamento.

Depois dessas várias manifestações em favor da cloroquina, a partir de julho de 2020 o representante da Defesa não volta mais ao assunto, ou pelo menos suas palavras sobre cloroquina não aparecem mais nas atas do CCOP.

Até a entrada do MD na defesa da cloroquina, em 4 de maio de 2020, o medicamento era defendido arduamente por diplomatas do MRE (Ministério das Relações Exteriores) e pela própria Casa Civil. Em 13 de abril, por exemplo, o braço direito de Braga Netto e coordenador das reuniões do CCOP, o militar Freire de Abreu, indagou ao representante da Saúde “se tem previsão da liberação de insumos da cloroquina da Índia”. Os insumos eram necessários para fabricação dos comprimidos no Brasil.

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O representante da Saúde “relatou que não tem essa informação, mas vai levantar e repassar ao Heitor”. O representante do MRE apressou-se em explicar que “pela Farmabrasil [associação de farmacêuticas] chegaram ontem 500 quilos de IFA [insumos]” e que “a Índia está ofertando comprimidos acabados (prontos), porém essa decisão cabe ao MS, o qual já foi informado sobre essa oferta”.

O MRE estava empenhado desde o começo da pandemia na obtenção de produtos da Índia no tema da cloroquina. Em 1º de abril, o representante do MRE informou ao CCOP que “estão em tratativas com a Índia, para a aquisição de insumos (hidroxicloroquina) para empresas brasileiras pontuais, para que possam fabricar aqui”. Uma das que reclamava da “retenção” de produtos da Índia era a Farmabrasil, associação que reúne as principais empresas da indústria farmacêutica brasileira.

Em 2 de abril, o representante do MRE informou que o ministério “está atuando na liberação de carga de 530 quilos de cloroquina na cidade de Nova Délhi/Índia”. No dia seguinte, o MRE reiterou ao CCOP: “Sobre a importação de cloroquina, o governo da Índia diz que quer colaborar, mas fato é, que ainda não tem data certa para essa importação”.

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