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Os longos braços de Washington se estendem até o Sahel africano

Após Burkina Faso e Mali expulsarem tropas francesas, Antony Blinken reforça laços com países do Sahel que seu próprio governo acusa terem “problemas significativos de direitos humanos".

Após Burkina Faso e Mali expulsarem tropas francesas, Antony Blinken faz viagem para reforçar laços com países do Sahel que seu próprio governo acusa terem “problemas significativos de direitos humanos”. Por Vijay Prashad | Globetrotter – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Um Boeing C-17 Globemaster III levanta vôo da Base Aérea 201, no Níger, em junho de 2021. (Foto: Jan K. Valle / U.S. Air Force)

No dia 16 de março de 2023, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, anunciou, durante sua visita ao Níger, que o governo dos EUA proverá 150 milhões de dólares em ajuda à região africana do Sahel. Esse dinheiro, disse Blinken, “ajudará a fornecer apoio vital a refugiados, requerentes de asilo e outras pessoas afetadas por conflitos e insegurança alimentar na região.” No dia seguinte, a UNICEF lançou um comunicado com informações de um relatório que as Nações Unidas haviam lançado naquele mês que declarava que 10 milhões de crianças em países do Sahel central, como Burkina Faso, Mali e Níger, precisam de assistência humanitária. A UNICEF pediu 473,8 milhões de dólares para apoiar seus esforços para fornecer a essas crianças os requisitos básicos. De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano de 2021, o Níger, apesar de contar com grandes reservas de urânio, é um dos países mais pobres do mundo (189º de 191 países); os lucros do urânio há muito foram escoados para as corporações multinacionais francesas e outras multinacionais ocidentais. O dinheiro da ajuda dos EUA não irá para as Nações Unidas, mas será desembolsado por meio de suas próprias agências, como o Escritório de Assistência Humanitária da Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA (USAID).

Ao nordeste da capital do Níger, Niamei, próxima da cidade de Agadez, está a Base Aérea 201, uma das maiores bases de drones do mundo, que abriga vários aviões militares não-tripulados MQ-9 Reapers. Durante uma coletiva de imprensa com Blinken, o ministro de Relações Exteriores do Níger, Hassoumi Massoudou, reafirmou a “cooperação militar” de seu país com os EUA, que inclui os Estados Unidos “equipando […] nossas forças armadas, nosso Exército, nossa Força Aérea e nossa Inteligência”. Nem Blinken nem Massoudou falaram sobre a Base Aérea 201, a partir da qual os EUA monitoram a região do Sahel, treinam as forças armadas do Níger e dão apoio aéreo para operações terrestres estadunidenses na região (tudo isso tornado claro durante a visita da Sargento Chefe da Força Aérea dos EUA, JoAnne S. Bass, à base, no final de dezembro de 2021). Os EUA gastarão 280 milhões de dólares nessa base – montante duas vezes maior do que o apoio humanitário prometido por Blinken –, incluindo 30 milhões de dólares por ano para manter as operações na Base Aérea 201.

Blinken é o primeiro Secretário de Estado dos EUA a visitar o Níger, um país que seu próprio departamento acusou de ter “problemas significativos de direitos humanos” como “assassinatos ilegais ou arbitrários, incluindo execuções extrajudiciais por ou em nome do governo” e tortura. Quando um repórter questionou Blinken durante a coletiva de imprensa sobre o que os EUA fariam para “trazer a democracia” para Burkina Faso e Mali, ele respondeu dizendo que os EUA estão monitorando os “retrocessos democráticos, os golpes militares, que até agora não levaram a uma renovação do processo democrático constitucional nesses países”. Os governos militares em Burkina Faso e no Mali expulsaram os militares franceses de seus territórios e indicaram que não aceitarão nenhuma nova intervenção militar ocidental. Um alto-oficial no Níger me disse que a hesitação de Blinken em falar diretamente sobre Burkina Faso e o Mali pode ter a ver com a angústia sobre a vacilante democracia no Níger.

O presidente do Níger, Mohamed Bazoum, enfrenta sérias críticas no país relacionadas à corrupção e à violência. Em abril de 2022, o presidente Bazoum escreveu em seu Twitter que 30 de seus alto-oficiais haviam sido presos por “peculato ou apropriação indébita” e estariam na prisão “por muito tempo.” Esta foi uma declaração perfeitamente clara, mas que obscureceu a corrupção mais profunda dentro da própria administração de Bazoum – incluindo a detenção de seu ministro das Comunicações, Mahamadou Zada, por acusações de corrupção –, que foi revelada por meio de uma auditoria dos gastos do país em 2021, e que revelou milhões de dólares de fundos estatais desaparecidos. Ainda mais, um terço do dinheiro gasto pelo Níger para comprar 1 bilhão de dólares em armas de empresas armamentistas entre 2011 e 2019 foram apropriados por funcionários do governo, de acordo com um relatório do Organized Crime and Corruption Reporting Project.

Em dezembro de 2022, durante a Cúpula de Líderes EUA-África, o presidente Bazoum se uniu ao presidente do Benim, Patrice Talon, para se tornar parte do projeto estadunidense conhecido como Millennium Challenge Corporation (Corporação Desafio do Milênio, em tradução livre – MCC). O governo dos EUA prometeu 504 milhões de dólares para facilitar o transporte entre o Benim e o Níger, com o fim de estimular o aumento do comércio entre os dois países vizinhos. O MCC, desenvolvido em 2004, no contexto da guerra dos EUA contra o Iraque, foi expandido em um instrumento usado pelo governo dos EUA para fazer frente à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) liderada pelos chineses. Alto-oficiais no Níger, que pediram anonimato, e diversos estudos realizados por autoridades independentes, indicam que esse dinheiro do MCC tem sido usado para melhorar as terras agrícolas africanas, e que a corporação tem trabalhado com fundações dos EUA, como a Aliança para a Revolução Verde na África (financiada pelas fundações Bill e Melinda Gates e Rockefeller), para transferir esses recursos para multinacionais agrícolas. As doações da MCC, disseram os altos oficiais, são usadas para “lavar” a terra do Níger para interesses corporativos estrangeiros e para “subordinar” a liderança política do Níger aos interesses do governo dos EUA.

 Leia também – Os franceses deixam o Sahel, mas a guerra continua 

Durante a coletiva de imprensa, Blinken foi perguntado sobre o Grupo Wagner, da Rússia. “Onde o Wagner esteve presente”, disse Blinken, “coisas terríveis inevitavelmente terminaram acontecendo”. Declarações foram feitas recentemente sobre o Grupo Wagner operando no Mali e em Burkina Faso pelo porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Vedant Patel, após o segundo golpe neste último país em setembro de 2022, bem como por Colin P. Clarke, da RAND Corporation, em janeiro de 2023. Os governos tanto de Burkina Faso quanto do Mali negaram que o Grupo Wagner esteja operando em seu território (apesar do grupo efetivamente operar na Líbia), e observadores informados como o jornalista nigeriano Seidik Abba (autor de Mali-Sahel, notre Afghanistan à nous, 2022) dizem que os países da região do Sahel estão cautelosos com qualquer intervenção estrangeira. Apesar de repetir muitas das posições de Washington sobre o Grupo Wagner, o ministro de Relações Exteriores do Níger, Massoudou, admitiu que o foco neste tema pode ser exagerado: “Quanto à presença do Wagner em Burkina [….] a informação que temos não nos permite dizer que o Wagner ainda esteja em Burkina Faso”.

Antes de Blinken voar para o Níger e a Etiópia, o Sub-Secretário de Estado para Questões Africanas dos EUA, Molly Phee, disse que o Níger é “um de nossos mais importantes parceiros no continente em termos de cooperação em segurança”. Essa é uma das mais honestas declarações sobre os interesses dos EUA no Níger – especialmente no que se refere às bases militares em Agadez e em Niamei.

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