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Fernando Haddad e o Livro de Areia

Haddad não é um homem comum, como parece querer deixar claro. Mas que bem faria ao ministro afastar-se um pouco de sua lógica gutenberguiana para refletir, um pouco que fosse, como um homem comum.
Haddad não é um homem comum, como parece querer deixar claro. Mas que bem faria ao ministro afastar-se um pouco de sua lógica gutenberguiana para refletir, um pouco que fosse, como um homem comum. Por Pedro Marin | Revista Opera
O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad. (Foto: Pedro Marin / Revista Opera

O conto “O Livro de Areia”, de Jorge Luis Borges, trata de um apreciador de livros, uma espécie de colecionador, que um dia se confronta com um viajante que quer lhe vender uma Bíblia. O colecionador tenta se esquivar, dizendo já ter Bíblias suficientes – a de Lutero, a de John Wiclif, a de Cipriano de Valera, etc. O viajante então responde que não vende só Bíblias, e que tem um livro sagrado que talvez interesse ao colecionador. Trata-se de um livro cujo “número de páginas […] é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última.” O colecionador pega o livro na mão, notando seu peso incomum. Cada vez que abre uma página e fecha o livro, a página se perde para sempre – se desfaz como um punhado de areia. Em seu lugar, brota uma nova página, de conteúdo completamente novo. Era um Livro de Areia – “porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim”, como esclarece o vendedor.

Sabendo o leitor que este texto tratará de Fernando Haddad, ministro da Fazenda que ontem revelou-se um compulsivo comprador de livros – não um colecionador compulsivo, nem um leitor compulsivo, mas um comprador compulsivo, que, segundo ele, todo dia navega na internet para comprar exatamente uma unidade de livro, para no dia seguinte repetir o processo, e também no dia subsequente, assim sucessivamente até acumular ao menos 365 compras individuais de livros ao ano –, a metáfora de um colecionador que compra um livro infinito pode parecer óbvia.

Eu prometo: não será tão óbvia. Mas, para que o leitor não enlouqueça, temos de começar do começo. Nesta semana, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que seu ministério estuda tomar medidas para combater o que chamou de “contrabando” de algumas plataformas varejistas virtuais, especialmente as chinesas Shein, Shopee e AliExpress. Estas plataformas estariam cometendo “fraudes generalizadas” para driblar os impostos brasileiros, de distintas formas: remetendo ao Brasil lotes de mercadoria de um determinado valor de forma avulsa e fracionada, para que cada pacote não chegasse a um certo valor a partir do qual seria taxado; remetendo ao Brasil mercadorias como Pessoas Físicas, quando o remetente na verdade é Pessoa Jurídica, para que estas mercadorias não fossem taxadas; ou ainda falsificando o valor das mercadorias. Segundo as contas do ministro, seria possível obter até 8 bilhões de reais em arrecadação impedindo estas fraudes. Por isso, o ministério estudava acabar com a isenção de imposto de importação sobre encomendas de até 50 dólares destinadas a pessoas físicas, e obrigar os varejistas a fazerem declarações completas e antecipadas da importação.

Embora se trate de uma medida absolutamente justa, correta e legal – ilegal seriam as supostas fraudes, que não só prejudicam a arrecadação do governo, como também outras empresas varejistas, que são obrigadas a lidar com uma prática desleal de concorrência –, obviamente as declarações do ministro causaram enorme comoção. Por um lado, porque estas plataformas são extremamente populares, especialmente entre as classes média-baixa e baixa, por ofertarem uma infinidade de produtos a preços baixos. Por outro porque, como seria de se esperar, a oposição de direita e extrema-direita logo se pôs a falar no governo “querendo aumentar impostos” – quando trata-se, na realidade, de simplesmente forçar as empresas a pagá-los.

Apesar da justeza das medidas estudadas, seu anúncio não poderia vir em pior momento. Ao longo das últimas semanas, a principal pauta econômica no imaginário popular tem sido a taxa básica de juros, a Selic. Embora a imprensa defenda a manutenção da taxa diariamente, criticando Lula por criticá-la, a maioria da população (80% segundo o Datafolha) apoia as críticas de Lula à política de Roberto Campos Neto e do Banco Central. O anúncio de Haddad sobre as plataformas varejistas teve este primeiro efeito: o de tirar do debate público e do imaginário popular uma pauta econômica chave para o governo, pauta apoiada pela maior parte do povo, substituindo-a por uma que tende a ter um apoio mais escasso e que tem uma importância secundária. Para que se tenha ideia, uma redução de 0,25% da taxa Selic já significaria uma economia de 16 bi ao governo somente no pagamento aos seus credores.

Fez isso, além do mais, na semana em que o governo Lula embarcou para a China, para assistir à posse de Dilma Rousseff como chefe do Banco dos BRICS e discutir mais de 30 acordos entre os países. Haddad, com sua medida, também obscureceu esses acontecimentos, que poderiam ser vendidos pelo governo como grandes trunfos de sua política externa.

Além da bagunça na comunicação, o ministro não mostra muita destreza política. As supostas fraudes nestas redes varejistas online afetam, sobretudo, o varejo brasileiro. Uma parte considerável do varejo brasileiro, como ficou demonstrado nos últimos anos, é controlada por empresários absolutamente alinhados ao bolsonarismo. De fato, uma das figuras que pediu ao governo a adoção de medidas para barrar as supostas fraudes das varejistas chinesas foi Luciano Hang, o “Véio da Havan”, no último dia 7, em encontro com Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Hang foi um dos empresários do varejo mais dedicados no apoio a Bolsonaro, inclusive condenado pela Justiça do Trabalho por coagir funcionários a votar no ex-presidente. Ao invés de levar os pedidos do setor varejista brasileiro em relação às plataformas chinesas em “banho maria”, adiando-os indefinidamente e exigindo apoio do setor contra a taxa de juros do Banco Central, o ministério da Fazenda decidiu ser absolutamente prestativo a estes empresários – e pouco prestativo ao próprio governo.

A confusão já foi aumentada quando a primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a “Janja”, partiu em defesa das medidas do ministério da Fazenda na internet. Mas Haddad conseguiu piorá-la ainda mais ao declarar na China, em resposta a um jornalista que o havia perguntado “o que muda na prática para a dona de casa que compra, por exemplo, uma blusinha na Shein?”: “Não muda nada… Eu, eu não conheço… Vocês falam da Shein como se eu conhecesse, eu não conheço a Shein. O que eu sei é o seguinte: o único portal que eu conheço é o da Amazon, porque eu compro, todo dia, um livro pelo menos.”

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Não sei se Haddad leu muitos românticos na infância e por isso decidiu ser uma espécie de eterno bom cavaleiro em cruzada contra a ignorância dos homens comuns – o pináculo da razoabilidade montado em sua bicicleta –, mas não é nova esta mania do ministro de se portar como uma espécie de tecnocrata franciscano, esperando para que o mundo ao seu redor se conforme à sua peculiar e iluminada forma de ver o mundo, ao invés de levar a sério a posição que de fato ocupa: de homem público, de homem de Estado. Lembremos, por exemplo, da sua gestão em São Paulo: o hoje ministro, quando prefeito, fez um dos mais ambiciosos planos de mobilidade urbana que a cidade já teve. Ao construir corredores exclusivos para ônibus na metrópole, reduziu – em alguns casos até pela metade – o tempo de trajeto dos trabalhadores até seus locais de trabalho, medida especialmente positiva àqueles que vivem nas periferias de São Paulo. Os corredores de ônibus tinham tudo para ser a marca de sua gestão, haja em vista o impacto que trouxeram para a qualidade de vida dos paulistanos. O então prefeito, no entanto, teve sua gestão eternamente marcada não por isso, mas sim como um construtor obsessivo de ciclovias. É verdade que as ciclovias em São Paulo eram uma boa medida; que todos os candidatos a prefeitos daquele ciclo eleitoral haviam se comprometido a construí-las; e que a imprensa paulistana foi injustamente crítica com uma medida que, para os ciclistas, era uma salvaguarda. Mas o fato é que as ciclovias, embora necessárias, eram extremamente impopulares. E lá estava Haddad, a cada pequena ciclovia pintada na cidade, posando para fotos em cima de sua bicicleta. Se falou tanto em ciclovias – as necessárias ciclovias, com Haddad sabe e insistia – que os corredores de ônibus foram simplesmente esquecidos.

Outro caso: em junho de 2013, estouraram as manifestações contra o aumento de passagens de trens, metrôs e ônibus em São Paulo. Os ônibus da capital paulista, administrados pela prefeitura, do ponto de vista do preço das passagens, eram o menor dos problemas: com o Bilhete Único, o usuário podia pegar uma quantidade grande de conduções, em um determinado espaço de tempo, sem pagar uma nova tarifa. Nos metrôs e trens, administrados pelo governo do Estado, não era assim: uma vez passada a catraca, o usuário teria de pagar uma nova condução para usar o metrô de novo, mesmo que só tenha deixado a estação por alguns minutos. Ainda assim, Haddad insistiu em opor-se às manifestações, e a perfilar-se ao lado do então governador Geraldo Alckmin como se irmãos siameses fossem. Ao fim, quando Haddad já tinha se tornado um dos alvos principais da crise, e quando a crise já havia se nacionalizado (após a Polícia Militar de Alckmin reprimir uma manifestação de forma excepcionalmente violenta), a tarifa foi baixada. Mas o responsável pelo anúncio foi Alckmin… Haddad ficou lá, perfilado ao lado do governador, com a popularidade em queda e tendo colaborado para a criação de uma crise nacional.

O homem comum, frente um livro infinito, talvez o chamasse livro amaldiçoado e o jogasse ao fogo, o prendesse a uma igreja ou o benzesse. O homem comum, frente um livro infinito, talvez fizesse o exercício de ler uma página completamente nova por dia, usando o Livro de Areia como uma espécie de oráculo pessoal. O homem comum – como o viajante – talvez guardasse o livro bem guardado, sabendo tratar-se de coisa rara, para desfazer-se dele por uma boa soma de dinheiro. Haddad não é um homem comum, como ele parece querer deixar claro. Não é um homem que saiba o que é Shein; é um homem que compra um livro por dia na Amazon – empresa que, em termos de concorrência desleal, talvez seja imbatível. Tal qual o colecionador de Borges, é um homem que se apaixonaria pelo livro infinito, até que o livro infinito o enlouquecesse. Tal qual o colecionador, parece ser um homem que viu nos livros uma porta de escape da realidade, onde os brutos não fazem mais do que comprar roupas na Shein: “Restavam-me alguns amigos; deixei de vê-Ios. Prisioneiro do Livro, quase não saía à rua. […] De noite, nos escassos intervalos que a insônia me concedia, sonhava com o livro.” 

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Algo parecido, de fato, acomete Haddad. O ministro parece ignorar que, como homem público, é responsável por sua comunicação e que, como homem da política, deve agir com uma certa astúcia típica deste campo, não com uma “razoabilidade” e uma “racionalidade” pessoais que o autorizam a tomar medidas sem pesar suas consequências públicas. Parece desconsiderar, enfim, que o mundo ao seu redor, o povo cuja economia rege, não se move pelas mesmas ponderações que ele, mas também por paixões muito diversas, às quais, como ministro, deveria ser sensível. O colecionador de Borges, ao fim, acaba escondendo o livro numa biblioteca, para nunca mais vê-lo. Que bem faria a Haddad afastar-se um pouco de sua lógica gutenberguiana para refletir, um pouco que fosse, como um homem comum. É esta a metáfora.

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