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Para recuperar reputação, basta ao Exército abrir mão de sua tradição maior: o intervencionismo

Com escândalo das joias, Forças Armadas jogam-se em louca navegação narrativa para evitar esbarrar nos rochedos de suas próprias contradições e ações
Pedro Marin
O tenente-coronel Mauro Cid, investigado no caso das joias, durante depoimento para a CPMI do golpe, em 11/07/2023. (Foto: Lula Marques / Agência Brasil)

As investigações da Polícia Federal sobre o suposto esquema de desvio de patrimônio brasileiro no governo passado (os presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em viagens internacionais) voltam a colocar as Forças Armadas nas manchetes e a comprometer sua imagem autoproduzida e autopromovida de bastião do espírito nacional.

Além do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, investiga-se o envolvimento do general quatro estrelas Mauro César Lourena Cid, pai do tenente-coronel, o almirante de esquadra da Marinha Bento Albuquerque, ex-ministro de Minas e Energia do governo Bolsonaro, o coronel da reserva Marcelo Costa Câmara, assessor especial do gabinete pessoal de Bolsonaro, o contra-almirante da Marinha José Roberto Bueno Junior, chefe da gabinete de Bento Albuquerque, além de um punhado mais de fardados de patentes mais baixas.

Frente ao escândalo (um entre muitos já revelados ou a serem revelados), as Forças Armadas têm se refugiado na “responsabilidade individual” dos militares envolvidos. Em nota, o Exército se manifestou sobre o caso dizendo que “não compactua com eventuais desvios de conduta de quaisquer de seus integrantes”. O ministro da Defesa, José Múcio, deu uma saraivada de declarações muito interessantes em entrevista ao UOL: “o pior [sobre o escândalo] é não se esclarecer, porque, como está, a suspeição se socializa. Nós estamos deixando com que todos sejam suspeitos. Interessa às Forças Armadas nome e CPF de todos os envolvidos nesses atos arbitrários para que sejam punidos. Eu quero que desapareça das manchetes a contaminação com as Forças. […] Esse clima de suspeição é muito ruim para o nosso trabalho […] porque começa com suspeita de general, suspeita de coronel, suspeita de tenente, suspeita daquilo, e você vai disseminando junto da sociedade uma suspeição coletiva.” Falando sobre o caso do general Mauro César Lourena Cid, disse que “evidentemente que é uma conduta pessoal, não é uma conduta da organização, não é uma conduta da Força. Tudo será resolvido, todos os verdadeiramente culpados… O que nós precisamos é dos verdadeiramente culpados.” Em outro trecho, tratando do 8 de janeiro, Múcio declara: “Essa questão da responsabilização… a Justiça e a Polícia Federal estão atentas e ciosas de que precisam encontrar os responsáveis. O que eu mais me bato é que isso seja rápido, para que nós possamos tirar da sala os suspeitos e os inocentes, porque isso vai contaminando, vai desmotivando; ‘olha, eu não tenho nada com isso e estou sendo acusado de uma coisa que eu não cometi’”. O general Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo que há muito tenta cacifar-se como uma voz militar equilibrada, também deu entrevistas na última semana tratando do escândalo das joias, nas quais declarou coisas como “é impressionante a influência que tem o chefe, em qualquer estrutura, civil, militar” – indicando, portanto, que a responsabilidade caberia somente ao ex-presidente Jair Bolsonaro – para responder a pergunta seguinte ecoando o mantra da individualidade: “a responsabilidade é individual. Nunca nenhuma instituição ensinou que é para cumprir ordens ilegais ou que é para fazer coisas ilegais.” Ele seguiu a mesma linha durante seminário na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados: “É importante que a sociedade consiga fazer bem a distinção entre erro institucional e as responsabilidades individuais. As instituições são a base da democracia e da sociedade. E elas devem ser aperfeiçoadas. Agora, as responsabilidades individuais são tratadas de acordo com a lei.”

Em qualquer lugar do mundo, um dos pilares básicos da organização militar é a rejeição à ideia de individualidade, ao menos tal como entendida entre os civis. Nestas organizações, a coesão e o espírito de corpo hão de substituir as particularidades do indivíduo militar, inclusive para que a força em questão, estando disciplinada e capaz de obedecer aos mandos, “lute com determinação no campo de batalha, ou continue lutando mesmo quando uma guerra parecer perdida”, como escreve o professor Jasen Castillo em seu “Endurance and War: The national sources of military cohesion” (Stanford University Press, 2014). Segundo Castillo, “qualquer grande grupo, incluindo as Forças Armadas de um país, motivam seus membros a manter a ação coletiva por meio da promoção e da aplicação de normas de lealdade incondicional entre seus membros. As normas definem as obrigações individuais dos membros em relação a qualquer grupo. Os grupos permanecem coesos mesmo em circunstâncias desafiadoras porque essas normas motivam alguns membros a permanecerem comprometidos com os objetivos do grupo. Ao mesmo tempo, esses membros mais ‘duros’ pressionam e coagem os membros menos motivados a fazer o mesmo”. São argumentos similares aos de John Keegan, autor do clássico “Uma história da guerra” (Companhia de Bolso, 2006), que chega a dizer que “a fidelidade ao regimento [é] a pedra de toque de suas vidas. Uma diferença pessoal poderia ser perdoada no dia seguinte. Uma calúnia ao regimento jamais seria esquecida e, na verdade, jamais seria pronunciada, tão profundamente ela afetaria os valores da tribo. Tribalismo – eis o que eu tinha encontrado. […] Um general podia ser admirado, ou não. A admiração derivava de algo diferente de suas insígnias de hierarquia superior. Vinha antes da reputação que detinha como homem entre outros homens, construída ao longo de muitos anos sob os olhos de sua tribo regimental”. Outro autor a pontuar a importância da coesão entre os fardados é Oliveiros Ferreira, que diz em seu “Vida e morte do Partido Fardado” (Senac, 2002) que há países em que “a convivência cotidiana nos quartéis cria um espírito de corpo que faz que todos se sintam parte do todo, recebendo as críticas ao todo como dirigidas a cada um, individualmente, e o todo, por sua vez, reage às críticas a seus integrantes como fossem dirigidas à Força em seu conjunto”.

O comportamento errático e incoerente do Exército e do ministro da Defesa revela-se à luz dessa frase de Oliveiros: embora a participação militar na política tenha se dado de corpo todo – abrangendo inclusive comandantes (como Villas Bôas) –, e até as profundezas da alma – se assentado na percepção que a sociedade faz das Forças Armadas (que em boa medida é a imagem que as Forças Armadas vendem de si à sociedade) –, os frutos podres dessa participação hão de ser especialmente selecionados e postos de lado, para que não haja “contaminação das Forças Armadas”, como disse Múcio. Em resumo, as Forças Armadas podem até “contaminar” a política (como fazem desde Temer ao menos, e não desde Bolsonaro, de forma que o problema é bem mais profundo do que finge supor o general Santos Cruz); o que não pode ocorrer é que a política contamine a imagem das Forças Armadas. No entanto, a “suspeição” só se socializa, como disse o ministro Múcio, porque os militares decidiram socializar ministérios entre si (desde Temer, de novo); porque o “CNPJ” das Forças Armadas decidiu voltar à disputa de poder, não porque “nomes e CPFs” individuais de militares foram usados em transações suspeitas. Como dizia anteriormente, “o problema da ocupação das Forças Armadas da cena política não é uma questão resumível a indivíduos desviados de suas funções: diz respeito ao papel concedido à própria corporação armada no Estado, e ao desejo desta corporação de tomar as rédeas deste Estado” – é para evitar discutir este papel que militares e quasi militares (como Múcio) insistam tanto em separar o rebento da mãe, o indivíduo da corporação, a ação coletiva da organização das eventuais e supostas rapinagens individuais de seus membros. Mas cabe perguntar, mais uma vez: estariam tantos militares envolvidos em supostas transações com presentes dados ao Estado brasileiro se o Estado brasileiro não tivesse sido ocupado por tantos militares? Acaso abundam relógios Rolex e Patek Philippe nos paióis, para que, restringindo sua presença aos quartéis, houvesse tanto espaço para uma sucessão de “desvios de conduta individual” de militares?

Amigos do Exército

É revelador dessa louca navegação a que os militares se jogam para evitar esbarrar nos rochedos de suas próprias contradições e ações que uma das medidas para enfrentar a perda de popularidade da Força, proposta pelo comandante do Exército, Tomás Miguel Paiva, seja a criação de uma associação nacional de Amigos do Exército, com presença em todo o País. Não tenho notícia de que, frente a sucessivos escândalos de corrupção com participação parlamentar, ou em casos em que juízes se comprometem, o Congresso Nacional ou o Judiciário tenham corrido para salvar suas imagens coletivas organizando Batalhões Patrióticos (a propósito, não eram os “Amigos do Exército” aqueles que acampavam em frente a quartéis, e que terminariam invadindo as sedes dos Poderes no dia 8 de janeiro? E não era assim, como amigos – e familiares – que os militares e o ministro Múcio, que defenderam a manutenção dos acampamentos, os tratavam?).

“Intensificar as ações que contribuam para a proteção e o fortalecimento da imagem e da reputação do Exército, de forma alinhada, integrada e sincronizada”, como quer Tomás Paiva, pouco vale sem tomar ações que alterem o que o Exército de fato é, e que posição de fato ocupa junto ao Estado. A arregimentação de civis em defesa da honra militar, realizada a partir do Exército e com fundos públicos, ou a reunião de reservistas com o mesmo objetivo, está longe de ser suficiente, e poderá, sem muita dificuldade, degringolar para a conformação de verdadeiros grupos de apoio ao reacionarismo hegemônico nas casernas.

Para recuperar sua reputação, o que o Exército em particular e as Forças Armadas em geral deveriam fazer é absorver os golpes que sua própria atuação trouxe a si – não buscar estancar a sangria por meio de campanhas de relações públicas e a criação de clubes sociais –, deixar de lado sua tradição histórica de tutela (sede de influir na decisão civil) e intervencionismo (sede de tomar o lugar civil), e se submeter definitivamente ao comando civil, o que, mais do que a afirmação formal de que “obedecem ao presidente”, significa deixar que a sociedade – livre de pressões ou de influências – decida como o seu corpo armado deve ser, e não o contrário. Assim, quem sabe, o Exército se libertará da situação citada por Alfred de Vigny: “É um corpo separado do grande corpo da Nação, e que parece o corpo de uma criança, tão atrasado anda quanto à inteligência e tanto lhe é proibido engrandecer-se. […] Sente-se envergonhado de si próprio, e não sabe nem o que faz nem o que é; pergunta-se continuamente, de si para si, se é escravo ou rei do Estado; este corpo procura a sua alma por toda a parte, e não a encontra”.

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