“O que não é mencionado, não existe”. Foi o que afirmou a única mulher do secretariado das FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo), Érika Monteiro, ao destacar a inclusão de políticas de gêneros no Acordo Final pela paz na Colômbia, assinado no último dia 26. Segundo ela, por mais que o artigo “o” englobe os dois sexos, feminino e masculino, em um documento, é importante fazer menção às mulheres.
O contexto de uma guerra para uma sociedade é sempre de muita violência, mas, para as mulheres, costuma ser pior. As constantes violações sexuais sempre foram utilizadas como armas de guerra para humilhar as mulheres ou ainda como prêmios a soldados, causando, em vários casos, gestações indesejadas e implicações duradouras nas comunidades e vidas destas mulheres.
De acordo com um documento publicado em 2016 pela Corporação Sisma Mujer, entidade colombiana de apoio às mulheres vítimas de violência, em 2015 foram registrados mais de 18 mil casos de violações envolvendo os dois sexos em diferentes idades, mas a maior parte das vítimas, 85% dos casos, são mulheres. Além disso, 92% dos casos tem relação com o conflito armado e a violência sociopolítica, ou seja, intenção de intimidação e de causar terror nas comunidades.
Além dos casos de estupro, também é bastante presente no conflito a escravidão para exploração sexual. Mas outros tipos de violência também são recorrentes, como o desaparecimento de parentes, ameaças, assassinatos, deslocamentos forçados, ou ainda, tornar-se arrimo de família. Mesmo com órgãos de apoio e entidades do estado, elas continuam em situação de vulnerabilidade. O Acordo Final é mais uma ferramenta para corrigir alguns destes problemas.
O primeiro ponto, que trata da Reforma Rural Integral, reconhece essa realidade e prioriza o gênero feminino nas políticas públicas de acesso à terra. O texto também especifica as mulheres rurais como população vulnerável, complementando que os dois gêneros devem ter igualdade de oportunidades na implementação do acordo.
Também nos mecanismos de acesso à terra, como o subsídio ou crédito para a compra de propriedades, as mulheres devem ter prioridade, segundo o documento. “Se abrirá uma nova linha de crédito especial subsidiada com pagamento a longo prazo para a compra de terras por parte da população beneficiária com medidas especiais para as mulheres rurais”, diz trecho do Acordo Final.
A menção especial também fala em acesso à Justiça e direitos sobre a terra, além de promover e incentivar a conciliação e resolução de conflitos, e trata ainda do acesso à saúde, educação, habitação e erradicação da pobreza. “A promoção da formação profissional das mulheres em disciplinas não tradicionais para elas”, diz outra parte.
Quando se trata da participação política, o Acordo Final também reconhece a dificuldade das mulheres em acessar estes espaços. “Uma sociedade na qual as mulheres participam ativamente é uma sociedade mais democrática”, destaca o documento.
Mulheres farianas
As mulheres farianas – combatentes das FARC-EP – também recebem um tratamento diferenciado quando se trata da reincorporação à vida civil porque o Acordo Final prevê uma proteção especial nas zonas onde elas devem se instalar, levando em conta a violência de grupos criminosos ou paramilitares. Vários combatentes das FARC-EP ingressaram nas fileiras da guerrilha para fugir da violência depois de serem vítimas de ameaças ou terem parentes assassinados por esses grupos.
Érika afirma que a inclusão das políticas de gênero é uma vitória não só fora, mas também dentro das FARC-EP. As mulheres sempre fizeram parte da guerrilha, mas o primeiro documento da insurgência onde guerrilheiras marcam sua presença de forma mais contundente é no “Programa Agrário dos Guerrilheiros”, assinado em 1964 também por Judith Grisales e Miriam Narváez, além de outros homens, conforme explica a combatente.
Érika diz que a presença e o ingresso de mulheres na guerrilha na época era relativamente baixo. A situação se agravava com a morte de tantas combatentes: “Se pode dizer que cada Frente tinha uma ou duas companheiras, mas não foram visibilizadas e isso não foi registrado. Mas todo tempo estávamos participando”, destaca. Para ela, a falta de registros da participação feminina não é apenas dentro das FARC-EP, mas também na sociedade.
“Dizer que na palavra ‘todos’, estamos nós, mulheres, também não é certo. O que não se menciona, não existe”, reforça Érika. Para ela, a abertura de uma mesa de diálogos na qual está também o debate de gênero é uma “novidade” e uma experiência “única”.
Lucero tem 34 anos e assim como outras combatentes diz estar muito esperançosa com o processo de paz. Ela ingressou nas fileiras da FARC-EP quando tinha 16 anos e diz que sentiu muita alegria durante as negociações. “Quero ver uma Colômbia sem guerra”, destaca. Segundo ela, dentro da guerrilha é “tudo igual” para homens e mulheres, ou seja, dividem as tarefas de maneira igualitária. E a ela lhe dá muito gosto de ver mulheres que se tornam comandantes.
Futuro diferente
Tatiana era a combatente mais assediada pelos jornalistas durante a 10ª Conferência Nacional Guerrilheira das FARC. Ela está grávida do seu segundo filho. “Esse vai poder estudar”, diz ela olhando para a barriga. Foi só durante a conferência que ela pôde conhecer o primeiro filho, que hoje tem 16 anos. Ele dela vive com o único irmão dela que não virou guerrilheiro, e sua outra irmã também integra a guerrilha.
“Acredite, não se trata de estar acostumada à vida guerrilheira, é como um amor. São muitas injustiças que o governo comete contra a população, e isso dói muito. E isso dói tanto como se fosse com você. E com o passar do tempo você se torna ainda mais rebelde”, diz ao contar porque ingressou às FARC-EP.
Ela começou na milícia – uma parte civil da guerrilha – ainda na adolescência, assim como muitos combatentes. Ela também destaca que dentro das FARC-EP o tratamento entre homens e mulheres é igual. “Aqui é assim, o trabalho é igualzinho. Inclusive você tem que carregar o mesmo peso em equipamentos porque a mulher também vai para o combate”, diz.
Já chegava a hora de seu filho mais velho ir embora do acampamento e voltar para casa, mas ele não queria. Ela, como toda mãe, fazia uma série de recomendações: “tem que estudar, isso a coisa mais importante, ouviu?!”. Agora, no processo de paz ela e o sócio – como os combatentes se chamam entre parceiros – pretendem ter uma fazenda e criar o filho que vai nascer, e já estão averiguando o que precisam para colocar a ideia em prática. “Mas isso eu não contei nas outras entrevistas”, finaliza sorrindo como quem guarda um segredo.