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O Eternauta e os tempos violentos

A obra de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano volta a figurar como um símbolo de resistência numa Argentina violenta e individualista

Nicolás Castelli
Cena de "O Eternauta", HQ de Héctor Germán Oesterheld adaptado como série para a Netflix. (Foto: Reprodução / Netflix)
Cena de “O Eternauta”, HQ de Héctor Germán Oesterheld adaptado como série para a Netflix. (Foto: Reprodução / Netflix)

Não há fatos, mas interpretações, dizia Friederich Nietzche. Mas isso não significa um relativismo que diga que a Terra é redonda ou afirme que O Eternauta é uma ode ao exército argentino, como pretendem fazer os partidários de Javier Milei diante de uma obra que incomoda todos aqueles que fazem do individualismo egoísta uma “virtude” e uma política de Estado. Como ler, quase 70 anos depois, a obra de Héctor Germán Oesterheld, em uma sociedade onde uma parte assume discursos (e ações) de ódio contra a outra? É possível estabelecer uma continuidade com a Argentina de 1957? Existem clivagens comuns que atravessam nossa história?

Não se trata de dar uma resposta a essas perguntas, mas sim de deixá-las abertas e colocar sobre a mesa algumas questões para construir uma série de ideias sobre um presente que requer – como na ficção que Oesterheld imaginou há quase 70 anos – uma saída coletiva.

O que acontece quando um governo eleito democraticamente age como um invasor disposto a destruir uma parte da sociedade que não concorda com suas ideias, e exalta como “heróis” empresários que ficaram milionários graças ao trabalho alheio e aos privilégios do Estado? Isto é, em outras palavras, aqueles que enriqueceram com o fruto do trabalho coletivo. A resistência também é um trabalho coletivo, mas nela não há lugar para aqueles que defendem ideias que colocam em risco a continuidade do mundo, porque são eles, os donos de tudo, que com seus think tanks neoliberais nos endividaram, destruíram nossa indústria, trouxeram o FMI, aumentaram o desemprego e a pobreza. Agora, os meios de comunicação corporativos pedem que “não se politize O Eternauta”; sim, os mesmos que historicamente se encarregaram de transformar sua ideologia em senso comum “apolítico” e fazer parecer que não há nada além da “normalidade” e que é assim que as coisas devem ser, enquanto tudo o mais – o “político” –, leva ao caos e à anomia.

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Há algo na nova adaptação que Bruno Stagnaro fez para a Netflix que também pode ser desconfortável para alguns setores da nossa sociedade que vivem comparando a Argentina com outros países, geralmente do norte global e em detrimento de tudo o que é nacional. Esse algo é, sem dúvida, a qualidade com que esta nova versão foi feita e seu sucesso mundial, que não fica atrás das grandes produções que inundam as plataformas de conteúdo digital. Uma produção argentina que não imita os modelos anglófonos e, ao mesmo tempo, desafia essa ideologia que considera que tudo o que é nosso é sempre menor.

A subjetividade colonial nos ensina a viver de costas para o país e a desconfiar das próprias capacidades, a menos que o herói se ajuste ao “esperado”. Mas alguém conhece uma ficção que perdure no tempo e se torne um ícone político-cultural em que o herói quer ficar milionário da noite para o dia, sem se importar com os métodos e as pessoas? Na cultura do realismo capitalista, diria Mark Fisher, estamos mais próximos dos humanos do filme Wall-E do que de um Favalli ou Juan Salvo de O Eternauta.

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Assim como há 70 anos, quando O Eternauta foi lançado pela primeira vez, a crueldade e o ódio voltam a estar presentes como política de Estado na Argentina. Da barragem zoológica [aluvión zoológico, referência ao discurso do deputado direitista Ernesto Sammartino contra o peronismo em 1947]  e dos cabecinhas pretas [cabecitas negras, termo depreciativo e racista usado na Argentina contra setores de pele escura e traços indígenas] aos mandris [“Chorem, mandris imundos”, disse Milei este ano após aparecer na lista da Time como uma das 100 pessoas mais influentes]; da “a pátria é o outro” ao “a casta é o outro”. As oscilações da Argentina cíclica que mata ou, com o passar dos anos, cansa. E nessas mudanças, a violência dos “donos do país” foi uma constante que agora encontrou, na democracia, um governo disposto a fomentá-la e exacerbá-la.

Que o simbólico tem efeitos materiais que podem resultar no desaparecimento e na morte de determinadas populações não é novidade, mas que um presidente democraticamente eleito nos bombardeie diariamente com discursos de ódio próprios de indivíduos marginais, isso sim é novidade.

Estamos agora em uma sociedade que, em um ano, passou de uma alegria coletiva e uma celebração histórica (a Copa do Mundo do Catar em 2022), onde milhões se sentiram unidos nas ruas do país, para a eleição de políticas destinadas a pisar na cabeça dos mais vulneráveis, dos que estão mais abaixo, sejam aposentados ou catadores, e destinadas a vender discursos que colocam como bodes expiatórios feministas, cientistas, professores, jornalistas e todo aquele setor que, em última análise, mostre que somos melhores quando trabalhamos juntos e nos reconhecemos como parte de um mesmo coletivo, diverso e heterogêneo, mas com certos consensos básicos. Algo semelhante ao que acontece com o grupo de sobreviventes em O Eternauta, onde não deixam de existir contradições e tensões – mas, no final, o grupo acaba por se impor sobre o indivíduo isolado.

O país que hoje recebe esta adaptação da obra de Oesterheld tem mais de quatro décadas de democracia ininterrupta com muitas dívidas acumuladas, sem dúvida, mas, apesar disso, ainda tem uma maioria que resiste e acredita na política como ferramenta transformadora; na relevância histórica da luta pelos direitos humanos; na importância do Estado para resolver problemas e garantir direitos que o mercado viola, e na defesa do coletivo e da justiça social como saída para a crise, entre outros consensos hoje questionados e postos em dúvida pelas esferas superiores. É essa mesma maioria que não hesitou em aproveitar a oportunidade para pedir memória, verdade e justiça por Héctor Germán Oesterheld, suas filhas Diana (24), Estela (25), Beatriz (19) e Marina (18) e dois de seus genros, todos desaparecidos pela ditadura genocida. E também para lembrar, enquanto os olhos do mundo estão voltados para O Eternauta, que continua vigente a busca pelos netos que duas de suas filhas carregavam nos ventres.

 Leia também – Héctor Germán Oesterheld: a prática de um herói coletivo

Na Argentina de 2025, o acesso aos direitos que o Estado deveria garantir é um terreno de disputa cotidiana contra visões que mercantilizam questões prioritárias para a grande maioria, afastando-nos da justiça social. Uma década de “dólar barato” termina em uma das maiores crises da nossa história. Agora, esse mesmo caminho está queimando etapas e nos mostra que as batalhas de sentido nunca terminam. Por isso, hoje, demonizam e atacam principalmente aqueles que defendem e simbolizam valores de empatia, solidariedade e justiça. Assim como aconteceu, de forma mais atroz e trágica, na Argentina de setenta anos atrás, quando, com o apoio de um setor da sociedade, a aviação da Marinha e parte da Força Aérea bombardearam a Praça de Maio como parte de uma revolta militar que buscava derrubar Juan Domingo Perón e assassinaram mais de trezentos compatriotas e feriram outros dois mil após o impacto de quatorze toneladas de bombas. Em um país onde as Forças Armadas agiram como um exército de ocupação em mais de uma ocasião, é difícil que uma ficção mítica tenha o exército como “herói”.

Nesta sociedade cíclica (existe alguma que não seja?), surge o desafio de construir um herói coletivo – como já aconteceu tantas vezes – para propor uma alternativa à desumanização reinante e frear este ajuste que não é economia, mas sim destruição pura e simples de tudo o que nos representa com orgulho e qualidade – como O Eternauta de ontem e de hoje – com o objetivo de apagar tudo o que é público para nos atomizar e tornar impossível nos reconhecer a nós mesmos, a não ser como consumidores sem história, sem cultura, sem ficções, sem heróis, sem grupo, e, definitivamente, sem vida.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Primera Línea Primera Línea é um meio de comunicação popular argentino comprometido com o seu tempo. Com uma perspetiva feminista, ambiental e latino-americana.

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