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O rap underground dos anos 2000 mirou suas armas da crítica contra o capital

Não há dúvidas de que o rap e o Hip-Hop, um movimento sem donos, precisam se posicionar sobre aqueles que tentam transformá-los numa teologia da prosperidade

Marco Aurélio
A tradição radical no rap nacional não foi uma novidade da geração dos anos 2000, mas com ela tomou nova roupagem. (Foto: Antonio Rull / Flickr)
A tradição radical no rap nacional não foi uma novidade da geração dos anos 2000, mas com ela tomou nova roupagem. (Foto: Antonio Rull / Flickr)

Existe um grande debate sobre os rumos do rap global no que se refere às suas inclinações políticas. No Brasil, esse debate, ainda que antigo – e muitas vezes reduzido à contradição “playboy” vs “favelado” – ganhou novos contornos nos últimos anos, muito por conta da inserção de mais e mais dinheiro dentro do cenário, processo que foi capaz de criar suas primeiras gerações de rappers milionários no país.

Se não é possível falar de um recorte epistemológico no rap nacional, podemos ao menos compreender que, em sua nova fase, o rap ganhou novos elementos discursivos, pessoas de diversas origens étnicas, e poder aquisitivo diverso – o que não significa, necessariamente, uma diversidade de classe no sentido marxista do termo.

Essas discussões por muitas vezes são simplificadas em questões menos importantes, por exemplo: no debate sobre se é ético ou não ganhar dinheiro com o rap. Seria desnecessário explicar que artistas, em geral, são trabalhadores, jogando de canto a divisão entre trabalho manual e intelectual, que não explica o todo, muito por conta de que estamos falando de pessoas que atingiram (ou não) um nível confortável de vida, o que não os torna uma classe superior, burgueses. Mas o fato é que, por trás dessa polêmica entre rappers “vendidos e não-vendidos”, o mais importante são as ideias. O rap pode ser entendido como arma da crítica, no sentido de que ele, sem o poder político, não pode construir as mudanças necessárias para avançarmos a uma sociedade com equidade. Disso, salta aos olhos que esse embate sobre o “rapper vendido” ser, muitas vezes, analisado sob um viés economicista ou culturalista. Muito mais importante do que a origem de classe é o seu posicionamento de classe, e é nesse ponto que a crítica do rap, e o rap em si, tropeça nas próprias pernas, de um lado ou de outro.

As redes sociais trouxeram uma maneira mais democrática de se fazer esse embate – o que, muitas vezes, é péssimo, visto que a democracia permite que certos discursos sejam não apenas verbalizados, como endossados -, mas ele está longe de ser novo. Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, um novo rap surgiu, ao menos no underground, quando esse termo ainda dava conta de explicar um fenômeno com diversas características próprias, tanto no âmbito musical (batidas, letras, flows e mensagem), quanto no econômico (independência das gravadoras, formas de produção e distribuição musical, etc). A maioria dos artistas da então chamada nova escola (que hoje já é velha escola) foram vistos com cautela pela então única velha guarda do rap. Mano Brown, em uma entrevista, afirmou que houve um tempo em que não se podia rimar sobre nada que não fosse a situação do negro e do pobre. Isso tem lastro numa época em que o rap ainda engatinhava, era ainda mais demonizado pela mídia, e as chacinas nas periferias eram diárias. O cenário, de forma alguma, mudou qualitativamente, mas os anos 1980 e 1990 devem ser lembrados como um ponto de inflexão na violência social e racial da sociedade brasileira. Foi essa a base que formou o rap nacional, e esses novos artistas, partindo dela, ampliaram nos anos 2000 o campo de crítica racial, de classe e gênero, trazendo uma bagagem de produção musical, referências e formas de discurso diferentes. Esse embate geracional, em certa medida, colocou esses novos rappers dos anos 2000 numa posição delicada. Eram vistos como playboys, crítica muitas vezes baseada apenas na estética sua estética. Muitos deles, brancos ou negros, tinham ligações com o skate, o pixo, ou com os sons do underground de Nova York, que começavam a chegar ao Brasil em maior quantidade, seja por meio das revistas e discos, seja com a ainda prematura internet. Mas algo desse rap dos anos 2000 – que, certamente, não foi hegemônico – ajudou no florescimento de um discurso e uma linguagem ainda mais encorpada, no sentido da crítica política. Outras pessoas puderam se ver nas letras, pessoas essas que, mesmo não vivendo as realidades do Capão Redondo, São Mateus ou Pirituba, ainda eram pobres, trabalhadores e trabalhadoras, vivendo em condições tão ruins quanto às vistas nas periferias mais famosas do Brasil. Outros territórios, como o Rio de Janeiro, Distrito Federal e o nordeste, com suas particularidades culturais e econômicas, puderam contribuir para que o rap pudesse falar com pessoas pobres de outras partes do Brasil, mostrando que a realidade da classe oprimida é tão diversa quanto se podia pensar. Dentro desse cenário, alguns grupos e discos se destacaram, e deixaram uma mensagem clara: o capitalismo não nos salvará. É desse cenário que tratamos aqui, e o recorte “anos 2000” – que, em geral, penso como a passagem entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2010 –, abrange toda uma geração de discos clássicos, muitas vezes esquecidos (o que eu chamo de “elo perdido” do rap nacional), que apontaram suas armas contra o capitalismo em sua nova fase, neoliberal no Terceiro Mundo e protecionista nas metrópoles.

É importante frisar que o objeto de análise do texto não são discos mainstream – no sentido de alcance de público – ainda que sejam importantes para compreender o fenômeno. Meu foco são grupos e álbuns que se encontravam no underground, tanto pela perspectiva mercadológica, como pelo espaço em que eles habitavam, com menor reverberação da cena do rap.

Portanto, não pretendo analisar a história social do rap desde os seus primórdios, nem mesmo a totalidade do rap nos anos 2000 – dois temas que serão analisados em outros textos, e num livro, que pretendo escrever em algum momento –, mas trazer à luz uma história muitas vezes esquecida, de quando parte do rap nacional, a partir de acontecimentos como a declaração do “fim da história”, que inaugurou a década de 1990, o governo de Fernando Henrique Cardoso e a implementação de políticas neoliberais no Brasil, se insurgiu contra o capital. 

“Playboy” e “favelado”, neoliberalismo e contra-ataque: a formação política do rap nacional nos anos 2000

O fim da União Soviética, em 1991, causou um grande abalo em todo o mundo. O efeito simbólico dessa derrubada se materializa, de forma mais concreta, no livro The End of History and the Last Man (O Fim da História e o Último Homem), de Francis Fukuyama, onde o economista declara que a democracia liberal havia vencido, e portanto, havíamos chegado ao fim da história. Não foi isso o que aconteceu. Uma série de conflitos étnicos ocorreram no Leste Europeu e nos Balcãs, com bombardeios maciços da OTAN sobre Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina. A guerra ao terror se iniciaria logo após os ataques às torres gêmeas, em 2001, se iniciando também uma nova fase do expansionismo norte-americano sobre o mundo, principalmente no Oriente Médio.

No Brasil, uma recém-democracia, a constituição de 1988 assegurava uma série de medidas sociais que, na prática, serviam mais como um pedaço de papel higiênico. A violência urbana havia explodido no país, sob muitos aspectos, como reflexo da ditadura que havia terminado há pouco. Foi sobre esse cenário que a primeira e segunda geração do rap nacional cantaram. O alvo eram os pés de pato, a polícia, a falta de saneamento básico e alimentação nas periferias, e um ódio racial que, muitas vezes, desembocam no ódio de classe. A influência de Malcolm X no rap é motivo para um artigo só seu, pois foi a partir da leitura da auto-biografia do grande revolucionário negro do século 20 – além da aproximação do movimento junto ao Projeto Rappers e o Movimento Negro Unificado –, que boa parte do rap nacional se formou politicamente. Esses foram, de forma resumida, os alicerces que fundamentam o verbo do rap nacional.

O rap sempre foi um movimento de contracultura, mas isso não impedia que o mesmo reproduzisse as mesmas estruturas de preconceito presentes na sociedade brasileira. A questão de gênero, em geral, ainda era um tema relegado às mulheres, em menor número no movimento e muitas vezes ignoradas. O machismo, a homofobia e o racismo eram latentes na letra e nos discursos de vários rappers, e isso é algo que, ainda hoje, só tem sido combatido por um viés mercadológico, como se essas opressões desaparecessem assim que artistas oriundos dessas identidades sociais fossem incluídos no movimento e nos grandes circuitos.

Mas havia outras coisas acontecendo da ponte pra lá, que afetavam as populações negras, pobres, e gêneros não-normativos, de outras regiões, com outras formações sócio-econômicas, e que deveriam ser ditas. O aumento do acesso ao que se produzia nos Estados Unidos, a chegada da internet nas casas brasileiras e a necessidade de se ampliar o discurso do rap foram alguns dos elementos que constituíram essa nova escola, que teve início no final dos anos 1990. Mas havia outros motivos. O Brasil, nos anos 1990, passava por um processo complexo, encarnado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Apesar de grandes avanços, como algumas políticas de cota, programas de combate à pobreza e reformas na educação, essa também foi a época que as políticas neoliberais abocanharam o Brasil em definitivo.

A criação do Conselho Nacional de Desestatização, em 1995, pela Lei n.º 9.491, foi um marco no avanço das políticas neoliberais no Brasil. Adotando as medidas do Consenso de Washington[1] e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Fernando Henrique Cardoso iniciou o processo de privatizações que resultou na venda de 80 empresas estatais, muitas delas de setores estratégicos, como a Companhia Vale do Rio Doce,  a Telebrás, além de bancos, ferrovias, empresas de fornecimento de energia, etc. Apesar das justificativas, como as que vemos hoje diariamente nos jornais, “aumento da competitividade”, “diminuição dos gastos do estado” e “redução da dívida pública”, o grande resultado foi o aumento da taxa de desemprego, a maior concentração de riqueza, e o aprofundamento da presença do capital estrangeiro no país, além dos efeitos práticos da desnacionalização das empresas estatais. Até mesmo o Plano Real, responsável por estabilizar a inflação, teve também, como resultado, o agravamento da situação fiscal brasileira, e a substituição de produtos nacionais por importados, mais uma faceta de uma economia dependente do imperialismo.

Antes que o rap respondesse a esse movimento, as ruas falaram por sí. Em 1999, a Marcha dos 100 mil de Brasília, organizada por sindicatos, movimentos sociais e partidos de oposição, liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT),  escancarou a impopularidade dos resultados das políticas neoliberais no país. Havia também uma grande tensão entre o campesinato e o governo brasileiro. Num dos momentos mais trágicos de nossa história recente, houve o Massacre de Eldorado do Carajás, no qual 21 camponeses foram assassinados pela Polícia Militar do estado do Pará, em um acampamento do Movimento Sem Terra (MST). O governador do Pará à época, Almir Gabriel, fazia parte do PSDB, mesmo partido de Fernando Henrique Cardoso. O então ministro da Agricultura de seu governo, Andrade Vieira, encarregado das discussões sobre a reforma agrária, pediu demissão do cargo na mesma noite. O massacre gerou uma enorme crise para o governo FHC diante da crescente organização dos camponeses e a resposta truculenta do aparato militar do estado.

Esses acontecimentos demonstram que as questões postas pelo rap deveriam ir além do que já era feito, de forma brilhante, pelo movimento nos anos 1990. O racismo e a violência policial ainda eram o ponto alto das reivindicações, mas numa sociedade em que a classe trabalhadora era composta de diversas origens sociais, econômicas, geográficas e raciais que se viam deslocadas das políticas públicas, era  urgente que o rap também respondesse a essas outras demandas. A vitória de Lula, em 2002, que foi apoiada pela grande maioria do movimento Hip-Hop, representou uma nova era para o Brasil, com seus ganhos e perdas. Muitas foram as políticas de combate à desigualdade social, como os programas Fome Zero, Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida, além do Reuni, a Lei Maria da Penha, o fortalecimento do SUS, e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), apenas para citar algumas políticas sociais adotadas pelo presidente. Outras iniciativas, que afetariam especialmente os rappers, foram criadas durante o governo Lula. O programa Computador para Todos e a criação dos Telecentros e Pontos de Acesso Público – que visavam a inclusão digital das chamadas classes C, D e E –, o aumento da oferta de banda larga, e as políticas de aumento de renda – como o já citado Bolsa Família – o aumento do salário mínimo, a grande geração de empregos, foram responsáveis pelo aumento de poder aquisitivo, e, consequentemente, do poder de acesso a bens de consumo pelos trabalhadores, o que popularizou os computadores nas casas dos brasileiros, além de ter facilitado o acesso a equipamentos de gravação, discos, revistas, entre outros elementos que contribuíram para uma mudança qualitativa no rap nacional – feita, em sua maioria, por trabalhadores pobres.

Essas mudanças econômicas trouxeram mudanças no fazer-rap, não somente na produção em si, mas no discurso. O disco dos Racionais “Nada como um Dia após o Outro Dia”, de 2002, de certa forma antecipou essas mudanças, mas o reflexo delas seria visto anos depois. O certo é que, ainda que o governo Lula tenha trazido grandes melhorias para as camadas mais pobres – em junho de 2010, o presidente alcançou uma taxa de aprovação de 87%, algo inédito no país –, muitos dos problemas sociais não foram sequer diminuídos. A reforma agrária não aconteceu, a violência policial seguiu com sua marcha fúnebre, o racismo não se tornou uma questão do passado, e as mulheres e outras minorias de gênero e sexuais continuaram sendo assassinadas e jogadas para os piores empregos.

Muitas pessoas acreditavam que a era Lula seria um novo fim – ou recomeço – da história, mas para outras, inclusive rappers, essa era representava apenas mais uma fase do capitalismo brasileiro. Claro que muitas das críticas foram feitas por meio de um viés reacionário. Em 2015, num episódio cômico, os rappers MC Maomé, Caio, Gok, Estudante e Buddy Poke fizeram um cypher para o movimento “Vem Pra Rua”, com rimas como “querem transformar o Brasil em Cuba”. Em 2016, o rapper Cachorro Magro – ex-Shawlin, o mesmo do Quinto Andar e Ruas Vazias – publicou, em sua página no Facebook, uma postagem sugerindo que o golpe de 1964 seria uma “contra-revolução”, argumento utilizado pelos militares e pela extrema-direita para justificar a ditadura que massacrou o país por duas décadas. A reação do movimento Hip-Hop foi instantânea, com ativistas do movimento classificando os atos contra o governo de Dilma Rousseff como “proto-fascistas”. É claro que o governo deve sempre ser criticado, mas é importante entender quais as bases das críticas, e por qual viés ela é feita. Os casos de Cachorro Magro e o vergonhoso cypher podem até mesmo ser produto de sua época – não sabemos a posição políticas desses rappers na atualidade –, e não é meu objetivo estigmatizá-los por isso, mas é justamente por serem produções de sua época que eles devem ser analisados na conjuntura da época.

Essas tensões também explicitaram discussões trazidas na introdução do texto, como as entre “playboys” (esses, vistos como os rappers da nova escola), e os “favelados” (estes, como os rappers da velha escola), um conflito geracional e discursivo que, se muitas vezes foi simplista, em outras foi certeiro na crítica da inclusão de pessoas de outras origens dentro do rap nacional, que não captaram ou internalizaram a ideologia política do movimento nos anos 1990. Essas generalizações algumas vezes acabaram por ofender pessoas que estavam dispostas a seguir a doutrina política do rap – que, como já discutido em meu artigo sobre o Projeto Rappers, tem sua fundamentação ideológica no Movimento Negro Unificado, de caráter socialista –, o que é fruto de tensões comuns dentro de um universo tão grande e diverso como o Hip-Hop, que, por muito tempo, não aceitou algumas mudanças positivas, e alguns avanços no discurso, que, de certa forma, entravam em confronto com o que era posto pelas gerações mais velhas.

Mas também existiu, nessa época, uma crítica fundamentada em bases anti-capitalistas – fruto das críticas que já eram feitas por grupos como RZO, De Menos Crime, Racionais MC’s, e artistas como Rúbia RPW, GOG, etc –, que enxergavam os problemas dos governos petistas sem jogar o bebê com a água fora, mas elevando a consciência do ouvinte para uma luta ainda mais importante do que aquela que se acirrava tanto na sociedade brasileira quanto no movimento Hip-Hop: a luta por uma transformação radical da sociedade, que pudesse colocar o capitalismo num antiquário.

A volta do bumerangue: o rap nos anos 2000 frente o avanço do capitalismo neoliberal

“Na lei da selva, consumir é necessário
Compre mais! Compre mais!
Supere o seu adversário
Seu status depende da tragédia de alguém
É isso, capitalismo selvagem”.
Mano na porta do bar, dos Racionais MC’s

A tradição radical no rap nacional não foi uma novidade da geração dos anos 2000. Na música Mano na porta do bar, de 1993, os Racionais já discutiam os efeitos do capitalismo na população pobre, em especial no que tange a questões como o tráfico de drogas, a ascensão financeira pelo crime e a mudança psicológica que o capitalismo leva às suas mercadorias humanas. O De Menos Crime já havia cantado, em 1998, sobre o estilo de vida da burguesia e seus efeitos sobre os pobres. Mais ainda, em como a burguesia produz a miséria, ao mesmo tempo que impede os pobres de alcançarem um nível digno de vida. O rap já vinha, direta ou indiretamente, criticando esse modo de vida predatório, e identificando seus algozes, aqueles que produziam aquela violência, miséria e racismo.

O que muda o panorama das letras e da estética do rap, nessa transição de certa velha escola para certa nova escola, são justamente os novos desafios políticos colocados pela realidade. De certa forma, a transformação do rap norte-americano, que também ocorre no final dos anos 1990 e meados dos anos 2000, afeta profundamente essa nova escola do rap nacional. O episódio Pass the Mic, da série Hip-Hop Evolution, demonstra muito bem essa transição. Julgando que o movimento havia se perdido em meio ao Bling-bling[2] do rap dos anos 1990 – e que tomou ainda mais força nos anos 2000 –, alguns rappers de Nova York passaram a se reunir nas praças, fazendo cyphers[3], numa tentativa de restabelecer a cultura do MC. Foi dessa leva que surgiram nomes como Yasiin Bey (Mos Def), Talib Kweli, El-P, Cannibal OX, Aesop Rock, e tantos outros rappers que, cada um à sua maneira, questionava a política norte-americana de forma mais incisiva, diante da nova realidade do império decadente. Foi essa geração que influenciou fortemente a nova geração do rap brasileiro, em especial o da cidade de São Paulo, que sempre teve uma musicalidade muito próxima da de Nova York. Junto dessa mudança política no Brasil, da transição geracional no rap e da influência novaiorquina, vieram também novas referências políticas, literárias e poéticas.

A volta do bumerangue, título desse capítulo do texto, é digna de nota. Uma das faixas do disco Produto Mentalfaturado, do grupo paulistano Ascendência Mista, e lançado em 2002, faz alusão a esse tema, que, em 1995, já havia sido abordado pela banda Rage Against the Machine, na faixa Year of the Boomerang, cuja temática são as relações de poder e violência no capitalismo, sugerindo que esse ciclo, como um bumerangue, sempre volta para os mais pobres. O conceito foi extraído do prefácio escrito por Jean-Paul Sartre em Os Condenados da Terra, obra-prima escrita em 1961. Em certa passagem do prefácio, Sartre alerta os seus “irmãos europeus” sobre a resposta que a violência colonial exercida por eles seria capaz de produzir:

“Vivemos na época da deflagração: basta que ao aumento dos nascimentos se acrescente a miséria, que os recém-nascidos tenham que temer a vida um pouco mais que a morte, e a torrente da violência rompe todas as barreiras. Na Argélia, mata-se à vista os europeus. É o momento do boomerang, o terceiro tempo da violência: volta-se contra nós, atinge-nos e, como de costume, não compreendemos que é a nossa. Os «liberais» ficam confusos: reconhecem que não eram bastante corteses com os indígenas, que teria sido mais justo e mais prudente outorgar-lhes certos direitos na medida do possível; não pediam outra coisa senão que fossem admitidos por direito e sem padrinhos nesse clube tão fechado, a nossa espécie: e é aqui que esse ímpeto bárbaro e louco não os respeita de modo diferente como aos maus colonos. A esquerda metropolitana sente-se ofendida: conhece a verdadeira sorte dos indígenas, a opressão sem piedade de que são vítimas e não condena a sua rebeldia, sabendo que se tem feito tudo para a provocar. De qualquer modo, pensa, há limites: esses guerrilheiros deveriam esforçar-se por se mostrarem cavalheirescos; seria o melhor meio de provar que são homens.”

A partir dessa brilhante passagem, o grupo de rap paulista desenvolveu uma das letras mais impactantes dos anos 2000, com versos eternizados por Zorack – que entrevistei em 2019 –, um dos rappers do grupo:

“Se a vida fosse um jogo de xadrez eu seria o peão
O sem terra disposto a morrer na linha de frente da revolução
Enfrentando quem tiver no comando, políticos ou gambés
E bailaria no jantar dos reis de Davos, como os inimigos assassinos por Macbeth
Augusto Boal retrataria minha ressurreição
Como um fênix surgindo das lavas de um vulcão
Pra trazer pros excluídos do capitalismo um grito de libertação”

Noutros versos da música, ainda são abordados os conflitos entre Israel e Palestina, a questão negra, indígena e camponesa, a recusa de países imperialistas em assinar o Protocolo de Kyoto – acordo internacional proposto em 1997, que entrou em vigor no ano de 2005, estabelecendo metas para a redução de gases de efeito estufa –, além das absurdas diferenças de renda entre a pequena parcela da burguesia e a grande massa pobre. Tudo isso com um refrão decretando o final dessa imposição por meios violentos: “Após a queda da coroa manchada de sangue, será comprovada a teoria de que nada impede a volta do bumerangue”.

Outro disco que marcou essa época foi Envelhecido 13 Anos, do grupo Rua de Baixo. Lançado quase como uma coletânea de músicas da dupla DJ Doença e Espião – uma figura que foi o grande alicerce dessa nova geração do rap –, o disco aborda de forma abrangente uma série de temas caros à realidade da dupla, como o tempo, políticas de droga, o movimento Hip-Hop, e um outro tema muito importante para a sua geração: a pirataria e a internet. Como explicado na introdução do artigo, um dos elementos que constituíam essa geração do rap era a forma de reprodução e circulação de faixas e discos, sendo a internet um dos meios pelos quais a produção se proliferaram.

“Esse é original, sampleado e legal, sem direito autoral, som de marginal” é o verso que abre o disco, e que dá o tom à obra. Os debates sobre o sample e direitos autorais vinham alcançando o rap na medida em que o gênero ia ganhando cada vez mais espaço. O caso do norte-americano DJ Drama é simbólico, porque, durante os anos 2000, ele foi o rei das mixtapes – uma espécie de compilação de músicas, produzidas fora das gravadoras, para promover novos artistas –, vendendo centenas de milhares delas. As grandes empresas da indústria musical norte-americana, vendo seus lucros sendo afetados, passaram a lutar contra essa forma de produzir rap, usada por artistas como 50 Cent, T.I e Jeezy para alavancar suas carreiras. Em uma batida policial em sua casa, Drama foi preso, sendo enquadrado pela Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act (Lei de Organizações Influenciadas e Corruptas por Extorsão), acusado de – pasmem – fazer parte de uma organização criminosa. As bancas que vendiam mixtapes em Nova York e nas demais cidades dos Estados Unidos eram constantemente invadidas, com os produtos sendo confiscados e os vendedores presos. Casas e estúdios que produziam mixtapes aos milhares também foram alvos das operações, que, no fim, visavam apenas beneficiar as grandes gravadoras e manter os seus lucros a salvo. Parte dessa história pode ser encontrada no livro Como a música ficou grátis, do jornalista Stephen Witt.

Logo o Brasil também seria afetado por essas políticas, e foi nesse sentido que Espião desenvolveu sua militância por uma internet livre, e, consequentemente, por uma música livre. Não era uma militância desordenada, mas ligada diretamente à precária realidade do rap nas grandes gravadoras e às dificuldades de ser um rapper underground, como ele evidencia no verso “Se meu disco não for vender, ninguém promover, o que é que eu vou fazer pra não passar necessidade?”. Não à toa, Espião confessou, em uma entrevista, que nunca viveu do rap mas sim como alguém que tem um “emprego formal”, e que também faz rap.

Foi nessa mesma linha que surgiu o fenômeno Quinto Andar, grupo de 1999 cujos integrantes vinham de diversas cidades, principalmente do sudeste, com rappers de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O álbum de estreia do grupo, aclamado como um clássico, Piratão, já é em si uma crítica à indústria musical. O tom da obra passa por vários temas, com um tom irreverente – o que era uma característica de certo rap feito no Rio de Janeiro, como, por exemplo, em Zoeira – Hip-Hop carioca – como o amor, a falta de dinheiro (Rap do Calote), as vivências noturnas nas ruas das metrópoles brasileiras, entre outros. Mas, em Piratão, a centralidade do disco – e também da atuação do grupo –, se dá nessa nova forma de distribuição de rap. O grupo se espalhou pela internet, sendo um dos primeiros do Brasil a ter um site próprio. O site do Quinto Andar funcionava como uma espécie de fórum, onde muitos rappers e amantes da música discutiam sobre temas ligados ao Hip-Hop, estreitavam laços e faziam músicas juntos. Uma novidade foi a ampla divulgação do disco e do site do grupo pela internet, com algumas das faixas do grupo e de seus integrantes terminando com uma sonoro: “Quintoandar.Cjb.Net”.

Era um tipo de propaganda incomum, numa realidade em que a internet ainda não era hegemônica nas residências brasileiras. E isso se desenvolvia na crítica da própria indústria – e daí a importância do título do disco. Melô da propaganda é uma das letras mais inteligentes do disco, onde De Leve, com seu esquema cômico e politizado de rima, crítica a hiper-publicidade no país:

“24hs por dia, privatizaram meu sonho
Sem descanso no sono, não tem espaço,
Onde ponho minha cabeça pra dormir
Tá estampado o logo da shell
E até na praia eu vejo aviõezinhos da Vivo no céu
A natureza é trocada por outdoor e não podia ser melhor
Assim eu vejo Gisele Bündchen com vestido Dior”.

Em outra faixa, Esse planeta, novamente De Leve faz um relato sobre a propaganda desenfreada, mas também se declara em favor da luta popular em dois trechos diferentes.

“Se estancar uma luta, eu sei, como é que eu vou proceder?
Eu vou tá, no meio do povo e a gente não vai ceder
Porque tá injusta a situação e a nação aguarda melhora
Mas ainda tem que dar propina pro guarda
O mundo é conservador se dizendo de vanguarda
Proíbe maconha mas não proíbe abuso com farda”

É interessante notar que o tema da violência policial aparece na letra do rapper, que, muitas vezes, foi acusado de “playboy”, algo que ele ironiza em Eu Rimo na Direita (“Elza disse que sou playboy, não nego, afinal minha mãe é manicure, meu pai é taxista e moro em Niterói. Meu irmão é bombeiro, não ganha dinheiro mas é herói”.), o que demonstra como essa amplitude que o rap toma em seu discurso funciona como uma forma de, também, ampliar as diversas formas com que o poder violento do Estado se impõe contra a sociedade.

Noutro trecho, De Leve ironiza a questão do colonialismo israelense em Gaza:

“Quer dizer que não pode atacar Israel?
Mas pro Timor Leste eles logo arrumam um papel
A resposta veio e caiu a primeira torre de babel
Eu vi ao vivo com café e rosquinhas mabel”.

Aqui, o rapper se refere à Crise de Timor-Leste, desencadeada em 1999, país asiático que buscava sua independência. Interessante notar que, na última linha do verso, ele ironiza o fato da TV exibir o conflito como se fosse uma programação normal de domingo, uma espetacularização dos horrores da guerra.

Sucessor do Quinto Andar, logo após o grupo encerrar suas atividades, em 2005, o Subsolo abrigou a maioria dos rappers do antigo grupo. Em 2008, seu único disco, Ordem de Despejo, foi lançado. São duas metáforas com relação ao nome do grupo e do disco, que se entrelaçam tanto com o grupo anterior, quanto com a situação vivida pela maioria dos integrantes, quase dez anos depois do lançamento do Piratão. A relação entre Quinto Andar e Subsolo sugere uma descida, um rebaixamento e um retrocesso. O próprio nome do disco sugere isso, ao usar o termo despejo. Ordem de Despejo é uma obra-prima, talvez uma das mais líricas e ricas em produção em toda a história do rap nacional. Sua estética musical não se parece com quase nada lançado anteriormente, o que funciona como uma ruptura quase completa com o rap dos anos 1990. O disco, que traz uma melancolia digna do seu nome, tem tantas músicas clássicas que se torna desnecessário explicar cada uma delas, sendo mais produtivo ouvir o álbum do começo ao fim. Mas essa melancolia se exprime de forma brilhante, e muito ligada ao capitalismo, em Ninguém Ama Os Náufragos. Com produção de Shawlin e Lumbriga, a música foi escrita e cantada por seus produtores, além do rapper Matéria Prima, com os três intercalando cada um dos seis versos da faixa.

Retratando a vida de um “naufrágo”, um homem solitário, já velho e sem muitas perspectivas de vida, é uma música que traduz o sentimento de isolamento e fracasso que o capitalismo exerce sobre as pessoas.

“Nos 40 a vida se aparenta estranha
Só a solidão acompanha, muito se faz, pouco se ganha
Numa condição que acanha se recolhe
E partir daí na poltrona se encolhe
Pensava no triste quadro que a realidade pinta
Diferente de quando ele tinha 30
Quando restava energia pra superar
Todo aquele passado que vinha lhe visitar”

De certa maneira, “nos 40” também reflete a visão dos próprios integrantes, que hoje estão nessa idade, ou passaram dela. A maioria deles não saíram do underground – apesar de serem aclamados pelos estudiosos ouvintes mais atenciosos do gênero. Muitos deles não conseguiram viver de rap, optando – na verdade, sendo obrigados – a viver de outros empregos, ainda que a formação do Subsolo seja um dos times mais talentosos do rap nacional em todos os tempos. O náufrago do álbum poderia ser qualquer um dos integrantes; pode ser qualquer um de nós, e é isso que torna a faixa tão impactante.

Em Fortaleza, cidade dividida por duas costas, Don L, Nego Gallo, Berg Mendes, DJ Flip Jay, Cabeça e Aluza decidiram expor as entranhas do capitalismo a partir da realidade violenta do tráfico, do crime, e num estilo mais parecido com o gangsta rap. O grupo Costa a Costa surgiu a partir da união desses seis artistas, mesclando as costas leste e oeste da cidade, e em 2007 lançaram o aclamado Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, que, por duas vezes, recebeu o Prêmio Hutúz. Esse fato é interessante, pois o prêmio foi ganho na categoria “Melhor grupo de rap Norte-Nordeste”, não disputando na categoria nacional. A diferença de desenvolvimento econômico entre o sul/sudeste e norte/nordeste do Brasil tem origens antigas, o que desenvolveu no país uma enorme xenofobia contra as populações da parte de cima do mapa. O rap não fugiu a isso, e o gênero, em São Paulo, Rio de Janeiro – e, mais recentemente, Minas Gerais –, sempre teve muito mais espaço do que as demais regiões do país. Don L relata esse preconceito em uma rima da faixa Enquanto Num Vim (“E eu era mais um nordestino no Sul mostrando a rima na sala do dono da Sky Blue”), e ridiculariza a categoria de premiação que seu grupo venceu, usando um recorte da apresentadora Regina Casé anunciando sua vitória.

Como o nome do disco demonstra, o dia a dia retratado é o de uma Fortaleza imersa no crime, no turismo sexual, nas guerras de gangues, e de como o desenvolvimento econômico da região dá origem a todas essas mazelas.

Duas faixas são interessantes para pensar a perspectiva do grupo, que de tão imagética, às vezes pode confundir o que é uma história contada do que é uma história vivida. Necessário, a quarta faixa da mixtape, traz alguns versos de Don L falando sobre a relação entre querer o dinheiro, as formas de obtê-lo por meio do crime, e as consequências desses atos. É interessante pensar que a perspectiva do rapper é diferente do que usualmente era feita em São Paulo, em que o criminoso sempre perdia no final da música, algo que os rappers da cidade chamam de “oreiada”, ou seja, um conselho de que “o crime não compensa”. Longe de qualquer apologia, Don L apenas desenvolve como é o funcionamento da economia no que ele chama de “gueto”, as favelas de Fortaleza, e todas as suas consequências. Mas algo é latente: a forma como as armas e as drogas chegam no gueto. Uma crítica ao imperialismo, que seria ainda mais aprofundada em seu disco Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2, de 2021, Don L mostra como a inserção das drogas e dos armamentos nas favelas é um projeto de controle social, fortemente ligado à economia global capitalista, relação amplamente documentada pela historiografia.

“Quantos quilômetros eles vão fazer de prisão?
E quantas armas eles vão trazer do Tio Sam?
E quantos por cento que eles vão vender pros irmão?
E quantos parente que eles vão perder de lição?”

Em outra faixa da mixtape, Não é fácil, novamente Don L, junto de Nego Gallo, relatam a pobreza cotidiana de seus bairros, e como muitas vezes o crime se torna a única forma de ascensão financeira, ou de se ter o mínimo (“Não, claro que não, repara os irmão de cara fechada, tão mal com o mundão. Eu tipo o Malcolm [Malcolm X] não acredito em ilusões, prefiro não, confio 25% no irmão”). Expondo a contradição entre se engajar numa luta contra o sistema como tal e a realidade diária da população pobre, Don L, de certa maneira, expõe também como o capitalismo cria a consciência do lumpemproletariado, de uma parcela da população que não está inserida nem mesmo na forma-salário, e que vive numa complexa relação social entre o desejo de um mundo melhor e a obtenção de necessidades básicas:

“Então não espera o tempo bom,
Faça o tempo bom, peço a Iansã:
Traga um vento bom
Eu também sonho com a Revolução
Mas hoje eu tenho a cobrança,
meu irmão, e levo o canhão”

Nessa mesma linha, ainda poderíamos falar dos discos SuperAção (2007), do grupo Contrafluxo; Bairros Cidades Estrelas Constelações (2003), do grupo Mzuri Sana; Ruas Vazias (2007), do rapper Shawlin, apenas para citar algumas obras dessa geração que é extremamente frutífera em lançamentos e impacto na cena do rap brasileiro.

Mas, é subindo ainda mais ao nordeste que as críticas ao capitalismo e suas consequências mais sutis, feitas por alguns grupos de São Paulo e Rio de Janeiro, e até mesmo com o exemplo do Costa a Costa, deram lugar a uma explosão de violência revolucionária – ainda mais impactante que em Produto Mentalfaturado. Dois grupos do Maranhão se destacaram pela agressividade e a consciência de classe elevada em suas letras: Clã Nordestino e Gíria Vermelha são o que podemos chamar de rapper-militante, no sentido mais belo da palavra.

Em 2003, o Clã Nordestino – formado, no início dos anos 2000, por Negro Lamar, Preto Ghoez, Hertz, Verck, Preto Nando, Lilian e DJ Juarez – se uniu para lançar seu único disco, A Peste Negra. O nome pode sugerir uma militância estritamente racial – em 1993, Preto Ghoez, a partir das influências de Malcolm X e Racionais MC’s, passa a integrar o Movimento Hip-Hop Organizado (MH2O) e o Quilombo Urbano –, mas esse é só um dos elementos que constituem o discurso do álbum. Temas como a ALCA, FMI, e o governo Bush – caros à época, como fica evidente no disco do Ascendência Mista – se juntam a reivindicação de revolucionários como Che Guevara, Carlos Marighella, Subcomandante Marcos, Lampião e Mumia Abu Jamal. Os nomes de algumas faixas também simbolizam o caráter da obra: Manifesto, Ases de periferia, Coração feito de África, Clãnordestinamenteafro, Ocupar, resistir e produzir e Regando as flores são só alguns dos destaques do disco.

“2-0-0-3, O ano da peste negra
Quem tiver ouvidos que ouça
Quem tiver olhos que veja
Eu falo com a boca de um profeta
Em verdade, em verdade vos digo
Os ventos que sopram pelos quatro cantos do planeta anunciam:
‘A peste negra está viva!’”

A dimensão do disco rompe as barreiras dos problemas brasileiros, levando ao país um manifesto internacionalista, que une a violência racial, de classe, e o colonialismo, tão presente no mundo como no século 20. Um manifesto explícito que trata desde a resistência da Palestina, conceitos marxistas como a exploração da mais-valia, e o ódio pela burguesia parasitária:

“Mais-valia é palavra mágica pra uma vida trágica
Intifada fada-madrinha da heróica nação palestina
Amizade, poesia, resistência entre os trilhos
Por onde corre, percorre, a locomotiva da vida.”

Esse disco do Clã deve ser ouvido em sua completude, pois diversos temas caros à classe trabalhadora são tratados em A Peste Negra, uma ótima oportunidade de conhecer mais da obra nordestina, tão ignorada pela grande mídia, e pelo próprio circuito do rap nacional – além de compreender como o desenvolvimento da consciência de classe foi ampla entre o rap nacional como um todo, como avisa o Clã: “Levante, avante, me siga, resista, basta ser socialista”.

Em 2002, Hertz e Verck decidiram se separar do Clã Nordestino e formar o Giria Vermelha. Hertz, em entrevista, explica que o motivo do racha do grupo foi a discussão sobre apoiar ou não o candidato Lula nas eleições presidenciais de 2002. Um fato interessante sobre Hertz é que ele foi um dos fundadores do Movimento Hip-Hop Organizado em 1989, o que já tira a centralidade de São Paulo na construção e desenvolvimento do Hip-Hop brasileiro como o polo central. O MH20 do Maranhão, em 1993, mudou seu nome para Quilombo Urbano, que se define como “uma organização negra, socialista e revolucionária”. A organização tomou grande proporção no estado, com atuação no movimento Hip-Hop e nas questões sociais da cidade, o que originou uma dissertação, em 2007, sobre a relação entre educação, Hip-Hop e o Quilombo Urbano, defendida na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Outro ponto é que o MH20 teve uma presença maciça no nordeste, se ampliando pelo Maranhão, Ceará, e demais estados do nordeste, até chegar no sudeste, sul e centro-oeste, desenvolvendo projetos sociais, criando pequenas empresas de indústria criativa, além de iniciativas nas áreas de geração de emprego, segurança nas escolas, o fim da violência policial e cultura – algo parecido com o que o Projeto Rappers desenvolveu em São Paulo.

No disco A hora do revide, o grupo Gíria Vermelha avança ainda mais a crítica, reconstruindo a memória das lutas populares no Brasil, e definindo sua posição de rapper-militante, como elemento de construção desse novo mundo. A faixa Hip-Hop Militante descreve esse posicionamento do grupo na luta de classes, que vai para além do campo cultural (“Pela paz e pelo amor, nossos versos são vermelho”). Em Lutar é preciso, o grupo já tratava sobre a questão Palestina e do Hamas como uma poucas opções de resistência que restaram a um país sem Forças Armadas (“Se na Faixa de Gaza um palestino do Hamas vai explodir o próprio corpo, não é que seja louco, é a paz que está em jogo”). Para além desses assuntos, o grupo descreve a política genocida dos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki, no Oriente Médio, e nas demais semi-colônias norte-americanas pelo mundo. Em Herói de Preto é Preto, o grupo destaca a necessidade de uma união entre os negros, de todos os gêneros, para vencer o capitalismo e seu braço ideológico, o racismo (“Só mano de quebrada, só mina de favela, são todos os que lutam por um mundo sem miséria. Pra frente com as ideia, de foice e martelo, herói de preto é preto, forjado na favela”).

O disco se tornou um clássico absoluto no nordeste, e deixou um legado de militância que reverbera ainda hoje. Hertz, que, junto do Giria Vermelha, lançou um novo disco em 2022, é militante socialista no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Numa entrevista para o site do partido, ele falou sobre a necessidade do Hip-Hop subversivo resistir tanto ao sufocamento pela indústria cultural, como das tentativas de adestramento do movimento, tanto pela direita quanto pelo atual governo Lula:

“A indústria cultural tenta sufocar o caráter subversivo do Hip-Hop. Faz com que a galera se sinta empreendedora, patrão, playboy de pele preta: o tal ‘favela venceu!’.  Mas, isso não é culpa da nova geração. Quase todas as antigas organizações de Hip-Hop se transformaram em ONG, quando o PT esteve no governo e pisaram no freio da crítica política. Muitos grupos começaram a dizer que tinha que tirar o ‘R’ da revolução, que a cena era a ‘evolução’, que meu partido é o ‘rap’, é ‘periferia’, quando a maioria estava alinhada ao PT. Isso aconteceu com quase todos os movimentos sociais, porque não aconteceria com o Hip-Hop? […]

Não existe futuro para essa juventude por dentro do capitalismo. Veja, quando estourou as Jornadas de Junho em 2013, o Hip-Hop participou timidamente, porque era uma explosão principalmente contra o governo Dilma (PT). Se estourar uma nova Jornada de Junho, já imaginou em que pode se transformar as batalhas de rima? O PT sabe disso e os governos estaduais também. Por isso, Lula está usando o decreto de 50 anos de Hip-Hop para dar um ‘cala boca’ no movimento, ao mesmo tempo em que empurram Reforma Tributária, o Arcabouço Fiscal e estão privatizando presídios para transformar favelado em ‘mercadoria’. O Hip-Hop jamais voltará a ser o que foi na década de 1990, mas também não pode voltar a ser o que foi durante os 13 anos do PT. Para ser 100% favela, tem que ser 100% contra quem é contra a favela e a classe trabalhadora.”

As críticas de Hertz reverberam num momento em que o rap nacional enfrenta uma crise de identidade, motivada, em muito, pelo avanço financeiro desenfreado de muitos rappers, enquanto a consciência de classe e de identidade minoritária tem sido substituída por um identitarismo neoliberal. Além disso, a falta de grandes entidades ligadas ao Hip-Hop e independentes do Estado e dos governos de centro-esquerda enfraquece a política do movimento como um instrumento de conscientização para uma tentativa radical de superação das desigualdades no país.

Há muito o que aprender com o legado dessa geração dos anos 2000, que, hoje, ativa ou inativa, sendo já a velha escola para as novas gerações, deixou muitos ensinamentos para as lutas atuais.

O elo perdido: o que podemos aprender com a história do rap dos anos 2000 para as lutas de 2025

Muitos discos dessa geração do rap nacional ficaram de fora deste texto por questões de método e conceito do artigo. Não é de meu interesse que o mesmo funcione como uma espécie de verbete, mas sim como uma introdução sobre o rap underground dos anos 2000, e sua forte inclinação política para o socialismo. Esse esforço se dá num movimento mais universal, que é o desenvolvimento de um livro que abarque a história da minha geração favorita do rap. Muitos dos grupos e discos aqui citados já eram de meu conhecimento, mas foi uma surpresa agradável ter contato com o rap produzido no nordeste nos anos 2000, abrindo caminho para uma análise mais geral do rap nacional, que fuja do eixo Rio-São Paulo.

Quanto às lições que essa geração nos deixou, e que podemos aproveitar, em primeiro lugar, evidentemente, é a análise concreta das relações sociais de sua época, e quais pautas os rappers socialistas – ou de discurso socialista – combateram e se solidarizaram. Algumas delas seguem atuais, como a questão Palestina, o racismo e a desigualdade racial. Outras são, de certa maneira, datadas, por conta dos objetos criticados também serem datados. O capitalismo neoliberal segue assassinando milhares de pessoas por dia, e seu conteúdo pouco foi modificado nos últimos 20 anos, mas a sua forma se mantém em constante modificação. As pautas de identidade – que se tornou uma mamadeira de piroca dos dias atuais – foram capturadas pela direita, e pela esquerda centrista, e ainda que cada lado capture essa pauta à sua maneira, em ambos os casos, na maioria das vezes, essas minorias se tornam marionetes na mão do pânico moral ou do famoso “bolo com café” das esquerdas em períodos eleitorais.

Muitos rappers tem adotado uma postura neoliberal, até mesmo sobre assuntos caros ao movimento, e esse fenômeno tem ligação umbilical com as novas formas de produção, distribuição e circulação da mercadoria-música. Muito mais complexo do que a discussão sobre a circulação de dinheiro no rap, o que deveríamos estar discutindo de forma honesta, e sem medo de derrubar os reis, são os posicionamentos políticos dos rappers – ou a ausência deles –, em quais frentes populares estão se articulando, e principalmente, como sua música afeta as periferias brasileiras. Um rapper, dono do verbo, tem o poder de elucidar o seu ouvinte, de influenciá-lo – Don L disse que “um milhão de mics torturam as mentes” – seja por qual caminho político for. E não há dúvidas de que o Hip-Hop, um movimento sem donos, precisa se posicionar sobre aqueles que tentam transformá-lo numa teologia da prosperidade, seja a indústria ou os rappers que a abraçaram.

As lutas dos anos 2000 foram abordadas por uma geração de ouro do rap, assim como a velha guarda dos anos 1990, que abriu os caminhos com um facão, desmascarando a jovem democracia brasileira de sua farsa democrática. Hoje, novas lutas se colocam diante da sociedade, e o rap não está fora disso. Num movimento que reflete a estrutura social do Brasil, a esmagadora maioria dos trabalhadores da música vivem em péssimas condições, com baixos salários, cachês miseráveis – quando chegam a receber algo –, vivendo jornadas duplas – em especial, as mulheres do rap –, e tudo isso converge para algo simples, mas que não pode se perder de vista: o capitalismo precisa ser destruído, e substituído por uma sociedade de pessoas não-alienadas do produto do seu trabalho e de si mesmas.

Num artigo da Revista Jacobin, o jornalista Alexander Billet questiona e se questiona sobre “onde está a música do nosso desastre do século XXI”. Os recentes vídeos sobre rodas de break, rima, e o reflorescimento do Hip-Hop em Gaza são uma demonstração de que o gênero ainda pode ser essa trilha sonora, principalmente nos países onde o genocídio colonial esteja em pleno curso. O rap não é uma doutrina escrita em pedra – apesar de seus pilares, do seu desenvolvimento inicial, e de uma hegemonia de esquerda abstrata no movimento –, mas ele precisa ser cuidado, para que não siga o caminho de certo rock, que de negro e popular, chegou a cair nas mãos de neonazistas e direitistas. O rap dos anos 2000 pode nos ensinar como evitar que o rap tenha uma derrocada parecida, e mais que isso, possa repolitizar o seu verbo no mais alto patamar de consciência de classe.

(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é nascido e criado na zona sul de São Paulo. Estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas, há 7 anos escreve e pesquisa o rap, o samba e outros temas da cultura popular brasileira. Em 2022, participou, como pesquisador, do projeto “A Timelife of Brazilian Hip-Hop” junto ao Spotify Global, e em 2023 tem participado do projeto “Clube de leitura do Rap”, no Centro Cultural São Paulo.


Notas:
[1] O Consenso de Washington refere-se a um conjunto de 10 políticas econômicas recomendadas por instituições internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, para países em desenvolvimento nas décadas de 1980 e 1990. As diretrizes enfatizavam a liberalização do comércio, a privatização de empresas estatais, a redução do papel do Estado na economia, e a adoção de reformas fiscais e monetárias. Para saber mais, acesse o Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe, da Universidade de São Paulo.
[2] O estilo “bling bling” no rap é uma abordagem que foca em ostentar riquezas e status, como jóias caras, carros de luxo, roupas de grife e outros símbolos de riqueza material. O termo “bling bling” foi popularizado nos anos 2000, especialmente por artistas de rap como Lil Wayne e Master P, que usavam o termo para se referir a jóias brilhantes e chamativas, como correntes, anéis e relógios. No contexto musical, o “bling bling” reflete a ideia de ostentação e sucesso financeiro, frequentemente celebrando a ascensão de artistas de origens humildes para a riqueza e o reconhecimento.
[3] O cypher é uma sessão de improviso em que vários MCs se revezam para rimar. Historicamente, o cypher tem raízes na cultura do hip hop, surgindo como um espaço de troca de rimas entre MCs e também como uma forma de testar a habilidade de cada um. O termo faz referência aos Five Percenters (Nação dos Deuses e da Terra), e sua matemática suprema.
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