Um incomum telefonema sacudiu a sociedade e a política israelense no começo do mês de agosto. O imitador Yossi Vider postou em sua página do Facebook um áudio em que se faz passar pelo ex-primeiro-ministro Ehud Barak. Na gravação, o ator prega uma peça no jornalista Amnon Abramovich, fingindo dar a ele um furo de reportagem: Barak estaria planejando concorrer à liderança do Partido Trabalhista[1]. No decorrer da conversa, Vider leva o veterano jornalista a comentar sobre a necessidade de acabar com os anos de poder do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Dias depois da postagem, mesmo afirmando que ele sabia que a conversa era uma piada e que entrou na brincadeira do imitador, Abramovich foi fortemente atacado por ativistas de direita, que aproveitaram a oportunidade para acusar o jornalista de não ser imparcial e ter como prioridade clara derrubar Bibi Netanyahu. Embora a reação da direita fosse previsível, a que realmente espantou foi a do próprio primeiro-ministro, que compartilhou o vídeo em sua página do Facebook[2].
A página de Netanyahu conta com mais de dois milhões de seguidores, sendo considerada o canal de comunicação mais influente em Israel. Um festival de insultos e agressões contra Abramovich se sucedeu nas redes sociais, fazendo com que o veterano jornalista e comentarista de televisão fosse rotulado de “judeu traidor” e “esquerdista radical”[3].
Mesmo sendo considerado um “herói de guerra” em Israel, nada disso importou para os detratores de Abramovich, que o submeteram a uma onda de incitamento e calúnias. Ao servir as Forças Armadas israelenses durante a Guerra de Yom Kippur em 1973, teve o corpo severamente queimado quando seu tanque pegou fogo. O radialista de extrema-direita Ofer Golan, apresentador do programa Radio Lelo Hafsaka, chegou afirmar que Abramovich deveria “ter queimado até morrer”[4]. Durante a Operação Margem Protetora em Gaza em 2014, o jornalista participava da transmissão do Canal 2 a partir de um estúdio especial em frente à sede do Ministério da Defesa, quando dezenas de ativistas de direita se reuniram próximo ao estúdio para vaiá-lo e xingá-lo de “inimigo de Israel”.[5]
O comentarista televisivo não é exceção em Israel. O país judaico vem sendo coberto por uma estranha onda de incitamentos, e é pouco provável que não tenham uma motivação comum. Raviv Drucker, um jornalista conhecido por suas críticas duras ao primeiro-ministro, já precisou de proteção pessoal. Gai Peleg, que já fez reportagens sobre investigações contra o primeiro-ministro[6], ficou surpreso ao descobrir que uma foto de sua esposa e seus quatro filhos, postada na conta privada de sua família, foi compartilhada na página de um ativista de direita com a legenda: “Nós os abençoamos com o mesmo que eles desejam para a família de Netanyahu. Ou duas vezes mais”[7]. Há alguns meses, foi a vez de o comentarista militar da Channel 10 News, Or Heller, ser ameaçado de morte caso não parasse de criticar Elor Azaria, o jovem soldado que atirou em um palestino desarmado em Hebron no ano passado, que levou a um polêmico julgamento que rachou a sociedade israelense.[8]
A onda de incitamentos contra a “mídia esquerdista”
As ameaças e outros tipos de violência verbal sofridos por outros jornalistas partem geralmente de militantes de direita, inconformados com a forma como os meios de comunicação cobrem o governo do primeiro-ministro e as investigações policiais contra ele. Não surpreende, portanto, que o próprio Netanyahu seja responsabilizado por ter tornado o jornalismo uma profissão de risco em Israel[9], provocando, inclusive, problemas econômicos à mídia local, com vários veículos em crise.
O primeiro-ministro tem um histórico de acusar os meios de comunicação israelenses de uma série de transgressões, além de atacar mesmo os jornalistas individualmente, porém sua conturbada relação com grandes segmentos da mídia se radicalizou, especialmente, após sua vitória eleitoral de 2015. Para Netanyahu, sua eleição não significava apenas uma vitória política sobre seu oponente trabalhista Isaac Herzog, mas também uma vitória contra a “mídia de esquerda”[10]. Mesmo durante a campanha eleitoral, Netanyahu usou as redes sociais para acusar o editor do jornal Yedioth Ahronoth, Noni Mozes, de estar trabalhando contra ele para eleger Herzog[11]. Pela primeira vez, um primeiro-ministro organizou uma campanha pessoal de deslegitimação contra o proprietário de um jornal e levou essa luta à campanha eleitoral.
Sua eleição ajudou a convencer os demais líderes do Likud de que os meios de comunicação o vêem como um inimigo e lutam para derrotá-lo. A acusação de perseguição ignora o fato de que ele próprio mantém o controle do jornal de maior divulgação no país, o Israel Hayom, cujo dono, Sheldon Adelson – que acredita que os palestinos são “um povo inventado”[12] –, cede espaço ao primeiro-ministro para que divulgue suas mensagens e ataques contra Mozes e o Yedioth Ahronoth. Israel Hayom é um jornal diário gratuito, financiado por cassinos de Adelson[13]. Conservador, é também o principal concorrente do Yedioth Ahronoth e vem ampliando sua liderança de público – 39,7% de distribuição em comparação aos 34,9% do Yedioth Ahronoth[14].
Um projeto de lei chegou a ser proposto pela oposição trabalhista no Knesset para impedir a gratuidade da distribuição do Israel Hayom, embora não proibisse a publicação do periódico[15]. A proposta, aprovada pelo Parlamento israelense, tinha por o objetivo coibir a ameaça econômica que um jornal gratuito de tamanha circulação oferecia a outros jornais israelenses pagos.
O dumping promovido pelo Israel Hayom é uma das razões para a queda de Israel no ranking da Freedom House, organização americana que monitora anualmente a liberdade de imprensa em todo o mundo. O status de Israel foi rebaixado de “livre” para “parcialmente livre”, e o país recebeu a classificação mais baixa desde que o índice foi criado em 2003 – 65º colocação entre 200 países[16].
Contudo, o sucesso de público do Israel Hayom incentivou os outros veículos de mídia a adotar uma linha editorial cada vez mais à direita. O leitor que quiser buscar informações atualizadas sobre a ocupação militar da Cisjordânia e a construção dos assentamentos, basicamente, só poderá encontrar uma posição crítica no jornal Haaretz. Embora sua distribuição em Israel tenha subido para 3,5% em 2016, uma organização ultraconservadora chamada Reservistas do Front, formada por membros das Forças Armadas, decidiu iniciar uma campanha contra o jornal, vinculando-o ao movimento de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel (BDS) e à rede de TV árabe Al Jazeera[17]. Os Reservistas chegaram distribuir 20 mil panfletos com o design do Haaretz com manchetes, colunas e artigos falsos demonizando Israel[18].
Tal associação da mídia israelense com o que Netanyahu chama de “extrema-esquerda” é instrumentalizada politicamente para transformar o exercício do jornalismo em uma perseguição ilegítima a seu governo e, por isso, indigna de uma resposta séria. Ao mesmo tempo, ela fortalece a direita e legitimar na opinião pública sua ofensiva contra a imprensa. Essa é uma das razões para Netanyahu ter nomeado a si mesmo para o Ministério das Comunicações, entre 2014 e maio de 2017[19].
Outra polêmica que o primeiro-ministro enfrenta é o conflito cerrado com a Autoridade de Radiodifusão de Israel (IBA), organismo que controla as empresas públicas de comunicação do país, responsável pela emissora televisiva Canal 1, o afiliado Canal 33, oito estações de rádio e portais de Internet[20]. Em 2014, o Knesset aprovou o encerramento de suas atividades para que fosse substituída por uma nova entidade pública[21]. Entretanto, desde 2015, a retomada das transmissões foi postergada porque Netanyahu decidiu reformar o modelo de emissora pública, inspirado na BBC inglesa, já que considerou os principais diretores do novo canal “esquerdistas demais”: “E se todos os funcionários da nova corporação pública de radiodifusão forem membros da organização Breaking the Silence?”[22], afirmou, fazendo referência à ONG de direitos humanos que recolhe testemunhos de soldados sobre a ocupação na Cisjordânia.
Esse conspiracionismo quanto à suposta hegemonia da esquerda dentro da mídia encontra progressivamente mais ecos na sociedade israelense, apesar de ser completamente infundado. Uma pesquisa conduzida em dezembro de 2015 pelo Grupo Ifat constatou, após análise de mais de 1.200 matérias, entrevistas e colunas dos grandes meios de comunicação israelenses, que 26% do conteúdo revisado expressa clara oposição a um acordo com os palestinos e 39% dele pode ser caracterizado como “ideologicamente mais equilibrado”[23]. De toda a cobertura midiática relacionada a questões diplomáticas, apenas 35% tende ao apoio a um acordo com os palestinos. Em outras palavras, fica comprovado que 65% da cobertura não está sequer inclinada à esquerda. Além disso, os antigos jornais mais progressistas perderam espaço para veículos abertamente identificados com o sionismo e a ocupação da Palestina, como o jornal Makor Rishon, o Canal 20 e as estações de rádio Galei Israel e Arutz Sheva[24].
Queda de braço com a imprensa: um projeto político
O grau de irracionalismo de Netanyahu é tamanho que, muitas vezes, atinge até os meios de comunicação que não fazem oposição aberta a seu governo. Foi o caso do ataque a Ilana Dayan, do Canal 2. Jornalista de posições políticas centristas, sua família é reconhecidamente admiradora de Netanyahu, e seu primo, Dani Dayan, é inclusive colono na Cisjordânia e foi nomeado pelo primeiro-ministro cônsul-geral israelense em Nova York[25]. Nos últimos meses, a jornalista trabalhou na investigação das denúncias de corrupção envolvendo o primeiro-ministro, reunindo dezenas de depoimentos sobre a perseguição e abuso de funcionários do escritório de Netanyahu.
Dayan enviou mais de 30 perguntas a Netanyahu para conhecer sua versão dos acontecimentos. Como resposta, o primeiro-ministro questionou a confiabilidade da repórter e a classificou como “propagandista política da extrema-esquerda”[26]. O caso de Dayan sensibilizou Israel quando a jornalista decidiu recitar, palavra por palavra, a resposta de Netanyahu ao vivo na televisão[27]. A repercussão foi imediata, e levou dezenas de jornalistas a protestarem nas redes sociais e a declararem apoio à repórter. Dayan também recebeu apoio da oposição israelense.
Apesar do movimento político ousado criado em torno de Dayan, é preciso reconhecer que é o tipo de ação sujeita a ter o efeito oposto na opinião pública israelense. As próprias lideranças do Likud reconhecem que seus eleitores apoiam a luta do governo contra a imprensa. No começo de agosto, durante uma manifestação do Likud em apoio ao primeiro-ministro em Tel Aviv, ele acusou a mídia e a esquerda de promoverem uma “caça [às bruxas] obsessiva e sem precedentes com o objetivo de dar um golpe no governo”[28]. Na plateia, partidários do Likud levantaram cartazes com ofensas a jornalistas.
Claro que convém manter os acontecimentos em suas devidas proporções. É muito improvável, por exemplo, que Israel seja submetida – pelo menos, até um futuro próximo – a uma política de perseguição à imprensa análoga à que está em curso na Turquia. Não há registro ainda de prisões de jornalistas em decorrência de suas convicções ideológicas, ainda que haja casos de demissões. Não obstante, os jornalistas começam a ser marcados como “inimigos da nação”, e o exercício da profissão está se tornando perigoso.
Apesar de tudo, Netanyahu rejeita toda e qualquer a responsabilidade por esse fenômeno preocupante, já que, para ele, os meios de comunicação só podem culpar a si mesmos por “perderem a confiança” da nação. Em uma era em que a mídia convencional perdeu o monopólio de notícias, e pessoas comuns e personalidades se tornaram produtoras de conteúdo – de novo; o site mais popular no país é a página do Facebook do primeiro-ministro –, a obsessão de Netanyahu contra uma fantasmagórica “mídia de esquerda”[29] não pode ser encarada de outra forma se não como um forma de perpetuação no poder.
Benjamin Netanyahu se tornou primeiro-ministro pela primeira vez em 1996, após o assassinato de Yitzhak Rabin. O caminho para esse objetivo envolverá conflitos diários e intermináveis com a mídia, que ele designou como seu próprio “demônio”[30]. Sob o aplauso efusivo das massas israelenses.
Fontes:
[1] – http://b.walla.co.il/item/3088057
[3] – www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-4857380,00.html
[4] – http://www.israelnationalnews.com/News/News.aspx/219452
[5] – http://www.maariv.co.il/news/new.aspx?pn6Vq=L&0r9VQ=FMFMK
[7] – http://b.walla.co.il/item/3088437
[11] – http://www.timesofisrael.com/netanyahu-pans-newspaper-mogul-for-slandering-him/
[12] – http://www.timesofisrael.com/adelson-palestinians-an-invented-people-out-to-destroy-israel/
[13] – https://www.counterpunch.org/2015/02/13/the-real-ruler-of-israel-sheldon-adelson/
[15] – http://www.jpost.com/Israel-News/Knesset-approves-bill-to-ban-Israel-Hayom-in-early-vote-381588
[16] – https://freedomhouse.org/report/freedom-press/2016/israel
[18] – http://www.israelhayom.com/site/newsletter_article.php?id=35433
[19] – http://www.haaretz.com/israel-news/business/.premium-1.716741
[20] – https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/15/internacional/1494866498_117114.html
[22] – www.themarker.com/advertising/1.3032572
[23] – www.ifat.com/Blog.aspx?ID=38
[24] – http://www.haaretz.com/opinion/.premium-1.733001
[26] – http://www.globes.co.il/news/article.aspx?did=1001159763
[27] – http://www.haaretz.com/israel-news/1.751677
[28] – http://edition.cnn.com/2017/08/09/middleeast/benjamin-netanyahu-likud-party-rally/index.html
[29] – http://www.timesofisrael.com/liveblog-june-15-2016/