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O soldado fugitivo norte-coreano e a mídia como instrumento da guerra

O fato é que a empatia gerada pela fuga do soldado norte-coreano não é depositada em seu quarto de hospital, mas nas bases militares norte-americanas.
por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: yeowatzup)

Há cerca de duas semanas surgiu nas redes sociais e na mídia internacional um vídeo de um soldado norte-coreano que, na zona desmilitarizada (DMZ) que separa a Península Coreana entre sul e norte, bateu em retirada de seu país, correndo para cruzar a fronteira, sendo por fim alvejado por dois companheiros que o perseguiram, tentando impedir que o militar fugisse.

O vídeo da fuga do soldado de sobrenome Oh foi prontamente aproveitado não só como uma “evidência” perfeita para sustentar a tese de que a “brutal ditadura” é capaz somente de conceder a seus cidadãos o desejo da fuga, como também que – sendo tão brutal e ditatorial – o governo norte-coreano impedirá tal fuga a tiros de fuzil, se necessário for.

“Um corajoso soldado norte-coreano faz uma fuga desesperada pela fronteira”, diz o Daily Mirror. “Vídeo dramático mostra a fuga de um soldado norte-coreano pela fronteira”, foi a manchete da CNN. “Soldado norte-coreano alvejado pela própria tropa enquanto fugia para o sul”, enfatizou o The New York Times.

O caso revela bastante. Ocorrida no dia 13 de novembro, a fuga só teve seu vídeo divulgado pelo Comando das Nações Unidas na Coreia, liderado pelos Estados Unidos, no dia 22. Tratou-se da primeira vez que o Comando divulgou um vídeo de uma deserção na DMZ – coincidentemente ou não, um dia após o presidente norte-americano Donald Trump ter declarado a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) um estado “financiador do terrorismo”, depois de sua volta de um tour pela Ásia na semana anterior, e alguns dias antes da Coreia do Norte ter realizado o teste de seu mais poderoso míssil até então, o Hwasong-15.

De qualquer maneira, o Diretor de Assuntos Públicos das forças norte-americanas na Coreia, Coronel Chad Carrol, declarou ainda que, ao disparar contra o fugitivo e perseguí-lo, cruzando a divisão sul-norte, os soldados norte-coreanos violaram o acordo de armistício de 1953.

É evidente que o senhor Carrol sabe que qualquer exército do mundo evitaria – inclusive a tiros de fuzil – que um soldado desertasse para o outro lado. A razão é simples: como soldado, tem informações privilegiadas de seu exército que, com a deserção, ficarão à disposição do inimigo. Sabe também que a deserção do soldado também violaria os artigos 7 e 8, que estabelecem que nenhuma pessoa, militar ou civil, pode passar pela DMZ sem a autorização da Comissão de Armistício Militar, nem entrar no território inimigo sem a autorização do Comandante de tal território, respectivamente. Se a entrada do soldado norte-coreano que impedia a fuga, por três passos e alguns segundos, constituiu uma violação, é difícil entender porquê a corrida em fuga por centenas de metros de seu companheiro também não a constituiria.

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O vídeo não foi, portanto, uma “dramática” evidência da brutalidade do regime norte-coreano, ao mostrar a “fuga desesperada” de um “corajoso soldado”, que, alvejado, deve ser fonte de nossa comoção. É evidência somente de que o Coronel Carrol conhece bem o papel da mídia: a de instrumento da guerra.

Quando soldados sul-coreanos atiraram contra um homem que tentava atravessar ao norte em 2013 (que não era um militar, nem tentava fugir pela DMZ), não houve tal abalo, não se formou tal espetáculo. Talvez porque o Comando das Nações Unidas não tenha decidido liberar um vídeo, talvez porque um cerco midiático de mais de 50 anos não seja usado contra o governo do sul da Península, talvez porque não se tenha consultado a opinião de militares norte-coreanos sobre o caso. O fato é que a empatia gerada pela fuga de Oh, como em tantos outros casos, não é depositada em seu quarto de hospital, onde ouve K-Pop e assiste séries norte-americanas, mas nas bases militares norte-americanas.

 

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