Mais uma vez, a imagem do Haiti é a dos protestos, vandalismo e barricadas nas ruas. O Haiti é, muitas vezes, retratado a partir de enfoques que destacam sua “singularidade”, sua “má sorte”, suas catástrofes naturais e sociais e terminam por folclorizar o país, que hoje vive uma nova crise amplamente associada à rejeição da corrupção. A socióloga e cientista política Sabine Manigat, da Universidade Quisqueya, analisa a situação da nação caribenha.
Pablo Stefanoni: O que desencadeou a atual rebelião social no Haiti?
Sabine Manigat: Podemos falar de uma coincidência temporal entre o rápido agravamento da situação socioeconômica da maioria – incluindo um importante setor das classes médias empobrecidas – e o fracasso óbvio da fórmula governamental que resultou das eleições de 2016, que levaram ao poder Jovenel Moïse, um súdito de Michel Martelly.
Um indício premonitório do primeiro foram os motins do início de julho de 2018 contra o aumento do preço dos hidrocarbonetos, mas também o alto custo de vida. Enquanto a inflação registrou novos recordes entre abril e junho, a moeda nacional se desvalorizou rapidamente. Uma pista do segundo está dada na política cada vez mais fechada do governo liderado por Moïse, incapaz, depois de dois anos no poder, de viabilizar algumas das suas promessas de campanha, em especial as relativas a serviços básicos (eletricidade) e padrões de vida (aumento do emprego e da produção agrícola).
Tudo isso ocorre dentro de um ambiente de corrupção cada vez mais descarada que também envolve o Parlamento. Jean Henri Ceant, o primeiro-ministro nomeado após os tumultos de julho, deixou o partido Fanmi Lavalas (do ex-presidente Jean Bertrand Aristide) e não poderia atuar na necessária aproximação entre a oposição (a que pertence) e o partido governista (o partido Haitian Tèt Kale). A teimosia da presidência, que se nega a uma verdadeira abertura, combinada com a impotência de um primeiro-ministro, que não conseguiu resolver qualquer uma das questões candentes, levou à expansão do descontentamento, com a manifestação histórica em 17 de outubro e a também maciça de 18 de novembro, ambas seguidas por dias de incerteza e, acima de tudo, o silêncio ensurdecedor das autoridades.
A atual rebelião social abrange amplas camadas do corpo social e diz respeito a vários atores, inclusive o setor privado. Portanto, pode ser descrita como um questionamento de todo um sistema, resultado do esgotamento do mesmo e da surdez de seus dirigentes.
Pablo Stefanoni: O Haiti passou pela decepção com o governo de Jean Bertrand Aristide, um terremoto que destruiu grande parte da capital, a chegada ao poder de um extravagante músico (Michel Martelly) e uma missão militar multinacional (MINUSTAH). Por onde seria possível pensar uma recomposição do Estado?
Sabine Manigat: Sem dúvida, esses eventos impactaram e construíram uma certa imagem do Haiti, sua “singularidade”, sua “má sorte”, um “caso desesperado”. Porém, além desses rótulos – que dizem alguma coisa, mas distorcem e “folclorizam” a história e os problemas do Haiti –, é preciso manter e se concentrar na reflexão sobre a má governança do país, particularmente depois do colapso da ordem ditatorial duvalierista.
O desaparecimento em 1986 do controle político e social da ditadura pôs a nu a dimensão da exclusão que constitui a base de sistema injusto, patrimonial e clientelista. Esse sistema está esgotado, e as experiências de Aristide ou Martelly foram expressões de tentativas falhadas de mudança e resistência que se opõem às classes dominantes. Os levantes atuais foram precedidos por outros sinais de alerta, como a difícil transição de 2015-2016.
Se queremos “levar esse país a sério” – como gostava de dizer o político e acadêmico Leslie Manigat – e analisar Haiti com ferramentas e conceitos científicos e políticos de uso corrente, devemos considerar o fracasso histórico das sucessivas oligarquias em implementar um projeto capaz de incorporar o interesse geral a seus interesses de grupo. A irrupção dos excluídos, ou seja, a grande maioria dos 11 milhões de haitianos, na cena política e suas exigências de serem levados em conta foram ignoradas por mais de 30 anos. Hoje, o lema não é mais “changer l’Etat” [mudar o Estado], mas radicalmente “changer le systeme” [mudar o sistema].
A analista não tem motivos para serem otimista, já que o que se observa são séculos de completa ignorância e desrespeito sistemático do interesse geral mais básico pelas elites do país e a falta de preparação para enfrentar uma mudança, que agora se tornou uma necessidade premente. Contudo, a crescente maturidade demonstrada por uma opinião pública hoje mais educada e informada, mais consciente de seus direitos e mais madura em suas demandas, nos dá uma maior esperança.
Pablo Stefanoni: Qual o papel da corrupção no uso dos recursos de Petrocaribe no desencadeamento da crise? Quais foram os benefícios da parceria com a Venezuela?
Sabine Manigat: A questão da corrupção, sem dúvida, desempenhou um papel no desencadeamento do surto da crise. A esse respeito, um importante precedente é frequentemente ignorado. O setor “democrático radical”, referenciado na voz do advogado e militante André Michel, já havia começado há mais de um ano uma demanda pública contra o Estado sobre o uso de recursos do Petrocaribe.
A iniciativa, de natureza jurídica, teve um alcance bastante simbólico, mas atesta as preocupações sobre a extensão do fenômeno da corrupção. De fato, a partir dos anos de 2010, entre o desperdício dos recursos recebidos pelo Haiti após o terremoto e o maná do programa Petrocaribe, centenas de milhões de dólares transitaram pelo país. Os recursos provenientes do programa Petrocaribe foram avaliados em cerca de US$ 3 bilhões. Porém, é, sem dúvida, a mobilização de jovens de redes sociais que condensam as frustrações e demandas de diferentes setores, alguns até então passivos ou expectantes. A manifestação de 17 de outubro foi convocada para exigir a prestação de contas dos fundos do Petrocaribe e reuniu centenas de milhares de pessoas de diferentes grupos sociais. Foi uma manifestação essencialmente pacífica, como foi o 18 de novembro. A ausência absoluta de resposta do governo contribuiu muito para a expansão das demandas e para a radicalização de suas expressões.
Quanto ao relacionamento com a Venezuela, tem sido de ajuda fraterna de um país que, por razões históricas, manifestou especial solidariedade com o Haiti. O governo de Chávez não apenas se recusou a participar militarmente da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), mas também contribuiu para vários projetos de desenvolvimento social e propôs o programa Petrocaribe. Sobre o uso desses fundos, falta informação. O informe da Corte Superior de Contas lista obras jamais realizadas ou incompletas, como os dez complexos desportivos não funcionais, o mercado de peixe na capital cuja construção foi interrompida, um viaduto apenas esboçado… Essas fraudes e irregularidades envolvem indivíduos e instituições pertencentes ao mais alto nível do aparato estatal, incluindo o Presidente.
Pablo Stefanoni: Que tipo de organizações iniciaram os protestos?
Sabine Manigat: Uma constelação de organizações e setores deve ser considerada. O elemento desencadeador, o aumento dos preços dos hidrocarbonetos, naturalmente trouxe à baila a questão dos fundos do Petrocaribe. Daí a formação nas redes sociais do movimento “petrochallengers” (uma rede de jovens internautas) que se reuniram a marcha em outubro passado. A oposição radical, acusada de aproveitar o movimento para obter capital político, tem, todavia, certa capacidade de convocação. Os direitos humanos e as organizações cívicas também desempenharam um papel. É realmente um movimento policlassista pouco organizado, essencialmente enraizado no descontentamento popular. A fraca tradição organizativa no Haiti, somada à falta de credibilidade dos partidos políticos, dá a esses protestos uma (falsa) imagem da “espontaneidade das bases”. Na verdade, existem atores por trás da cortina. O que não é conhecido é o peso de cada um.
Por seu caráter espetacular e o uso de suas imagens na imprensa, devemos mencionar as barricadas e bloqueios de ruas e vias associadas. Eles são certamente uma expressão popular, local, dos protestos, mas também são geralmente organizados por uma força disponível de desempregados, pagos muitas vezes por políticos ou empresários. Eles cumprem uma função de desacreditar as manifestações, que são anunciadas e depois relatadas sob o único ângulo da violência, mesmo não sendo as expressões mais importantes nem as mais numerosas.
Pablo Stefanoni: Como está a situação atual?
Sabine Manigat: Uma nova onda de protestos está chegando para este mês de março – cujas formas exatas não podem ser antecipadas – devido à falta de uma resposta mínima do governo. Há uma infinidade de consultas, reagrupamentos e propostas, formuladas tanto por cidadãos como por organizações políticas. E esses grupos começaram a dialogar. Entretanto, as divisões ainda predominam em todos os níveis:
– Divisões dentro do sistema político dentro do Poder Executivo (as divergências entre o presidente e o primeiro-ministro são públicas) e dentro do aparato estatal (o Executivo ignora Parlamento que, por sua vez, adverte o Executivo e ameaçando o presidente com um julgamento por alta traição); o sistema de justiça é dividido entre um setor politizado (aqueles próximos ao governo) e outro impotente. A polícia, por sua vez recebe ordens para proteger a propriedade e punir os manifestantes, mas nem sempre as acata (houve uma passividade suspeita da polícia durante os tumultos de julho 2018).
– Divisões entre oposições e entre grupos sociais (incluindo a oligarquia dominante). A chamada “oposição radical” não tem mais o monopólio das convocações, mas os chamados para manifestação, tanto em novembro quanto em fevereiro, foram paralelos em vez de acordados. Hoje eles somam às vozes que pedem a saída de Moïse: a oposição “moderada” social-democrata e de centro-direita, elementos do setor privado estão se expressando nesse sentido, enquanto alternativas a essa opção (diálogo, com ou sem condições) estão longe de produzir consenso.
– O próprio empresariado, através do Fórum do setor privado, fala como uma voz única para pedir a preservação de seus interesses como “provedores de trabalho”, mas está dividido sobre a melhor fórmula para salvar o sistema: conceder medidas de alívio socioeconômico para manter a equipe governante? Sacrificar Moïse para salvaguardar o sistema? Propor um novo modelo de modernização sacrificando a economia patrimonialista? Agora, nova é a natureza pública dessas posições políticas da burguesia. Um de seus representantes, Reginald Boulos, chegou a anunciar a formação de uma organização condizente com sua visão.
De tudo isso, resulta a ausência de uma fórmula para sair da crise. Além disso, as negociações e consultas que ocorrem todos os dias nos círculos de poder se desenvolvem em um contexto de total opacidade. Tal incapacidade das forças nacionais para desenvolver uma solução endógena coloca Haiti ante o risco de ter que aceitar (de novo) um patch imposto por seus “amigos” da “comunidade internacional”.