Bartolomeu Pimentel da Silva atende o telefone para dar a sua primeira entrevista em décadas. Nunca nos falamos antes, mas ele me trata como a um velho amigo: em cinco minutos de conversa me convida a conhecer Maragogipe, aprazível cidade baiana cujas paisagens costeiras, apinhadas de canoas e saveiros, parecem saídas de uma tela do Carybé. Ele faz questão de que eu fique hospedado na casa de sua família, onde nasceu e passou a maior parte da vida. “Depois que essa peste for embora”, ressalta, em alusão à pandemia do novo coronavírus que já causou a morte de mais de 50 mil pessoas no Brasil.
Diz estar ansioso, “coisa rara para um baiano”. A ansiedade de Barthô Ara — “nome artístico” que assumiu após consultar a Numerologia — fica por conta do adiamento da gravação do primeiro disco solo do cantor Ênio Bernardes, cujas faixas serão dedicadas às suas composições. Ele sabe que a produção do álbum teve de ser interrompida devido à crise sanitária que afeta o país, mas gosta de frisar este detalhe — talvez para se convencer de que o projeto sairá do papel. É a primeira vez que os sambas de Barthô, um marinheiro aposentado de 73 anos, serão gravados em estúdio.
Embora seja um veterano do samba na Bahia — com 14 anos de idade já tinha música em parceria com Edil Pacheco —, Barthô Ara permanece inédito. Seu primeiro e único registro fonográfico é Bem-vindo, Amor, parceria com Guiga de Ogum, que abre o disco Bahia Dá Samba, produzido pelo mesmo Ênio Bernardes. Além dessa faixa solitária, nada do que ele compôs nos últimos 60 anos chegou ao conhecimento do grande público.
“Ênio tem apoiado muito os sambistas da Bahia. A luta dele é para não deixar que a nossa memória cultural se perca. No meu caso, a emoção é muito grande, pois nunca pensei que pudesse ser reconhecido como artista na velhice. Ênio foi a primeira pessoa que me prestou uma homenagem e talvez ele nem saiba o quanto isso significa para mim”, diz Barthô. Ele é um dentre tantos compositores baianos que estão sendo descobertos ou saindo do ostracismo pelo trabalho de pesquisa e difusão iniciado por Bernardes há 15 anos.
Nascido em Campinas (SP) em 4 de outubro de 1972, Antônio Ênio Bernardes chegou à Bahia em 2006 e por lá ficou. Desde então tem se dedicado a dar visibilidade à obra de sambistas locais por meio de rodas de samba, apresentações musicais e gravações de discos. Antes de sua chegada e do trabalho de pesquisa desenvolvido por ele e outros músicos paulistas, como Pedrão e Paulinho Timor, o samba baiano estava praticamente relegado ao esquecimento.
Mesmo compositores consagrados nacionalmente como Walmir Lima, autor de Ilha de Maré (sucesso na voz de Alcione), não eram mais procurados para entrevistas, nem tinham quem cantasse suas músicas. Roda de samba era prática quase extinta em Salvador — e o repertório das poucas rodas existentes ignorava a produção dos mestres baianos. Guiga de Ogum é quem diz: “Tenho um pouco de mágoa da Bahia. Amo a minha terra, mas foi preciso vir gente de São Paulo para que eu voltasse a ser convidado para shows”, afirma.
Não que a Bahia não ostentasse, como sempre, cultura pujante e cena musical efervescente; mas ocorre que o samba propriamente dito padecia da falta de visibilidade — em grande parte causada pela indústria do turismo, assentada na “ditadura” dos trios elétricos e na música de carnaval feita exclusivamente para este modelo de festa. “Não gosto de criticar ninguém, respeito o trabalho de todos, mas a Bahia é muito mais do que axé music e outros estereótipos que atribuíram a ela”, comenta Bernardes.
Em agosto de 2019, como reflexo tardio do movimento de valorização dos mestres da velha guarda iniciado por Ênio, Walmir Lima foi condecorado pela Câmara Municipal de Salvador com a Medalha do Mérito Cultural. O compositor Nelson Rufino, que foi à solenidade prestigiar o colega, aproveitou a ocasião para cobrar do poder público incentivo aos sambistas baianos. “No Rio, todo artista de samba canta no Carnaval; aqui temos que ficar em um beco”, desabafou ao microfone.
Walmir Lima, que completou 89 anos este mês de junho, faz parte da história do samba. Na década de 1970 tinha trânsito livre nas rodas do Rio e era amigo de Cartola, que se hospedava em sua casa quando ia a Salvador. Gravou Zeca Pagodinho quando este ainda não era famoso. E foi um dos primeiros mestres de quem Ênio Bernardes se aproximou na Bahia. “Foi Walmir Lima quem me indicou o mapa da mina. A partir dele tive acesso ao verdadeiro samba baiano. Sua importância no trabalho que realizo hoje não dá para ser medida”, afirma o músico.
Morar na Bahia era uma ideia que ele e Daniela Amoroso, sua companheira na época, acalentavam desde 2004, quando foram a Salvador participar de um congresso de capoeira e se apaixonaram pela cidade. Em 2006 o projeto familiar deu certo: Dani foi admitida para lecionar na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e eles se mudaram naquele mesmo ano. Com este respaldo, Ênio pôde iniciar suas pesquisas de campo.
A princípio moraram de favor na casa do músico e cineasta Pedro Abib (conhecido como Pedrão no meio do samba), que na época produzia o documentário Batatinha e o Samba Oculto da Bahia. “Foi uma feliz coincidência a mudança acontecer durante este processo, pois pude acompanhar as filmagens e conhecer pessoalmente vários sambistas baianos, entre eles Walmir Lima, que foi uma espécie de tutor para mim.”, conta.
Logo o casal consegue alugar uma casa em Itapuã, bairro integrado à história da música brasileira por ter sido cantado por Dorival Caymmi e Vinicius de Moraes. Não tarda para que Ênio Bernardes firme amizade com Reginaldo de Itapuã, compositor e morador do arraial. Pelas mãos de Sêo Régi, como é chamado na Bahia, deixa-se levar por toda parte e conhece personagens locais, muitos deles ligados à malandragem boêmia, como Martinho da Cuíca, de quem falaremos adiante.
Um ano depois de sua chegada e já familiarizado com Itapuã, surge a necessidade de tocar numa roda de samba, algo que lhe era rotineiro em sua terra natal. Da saudade nasce a ideia de formar um grupo. Junto a Pedrão arregimenta alguns amigos e cria o Grupo Botequim, que passa a tocar, a princípio por mera diversão, no quintal de Dona Cabocla — uma senhora centenária, vizinha de Ênio e Daniela. “Quando ela cantava com aquela voz aguda de africana era como se eu voltasse 300 anos no tempo”, diz Ênio.
O interesse que o samba desperta na vizinhança torna pequena a casa de Dona Cabocla e o Grupo Botequim passa a tocar também no Rumo do Vento, barraca de bebidas alcoólicas que virou ponto de encontro de músicos graças à festa dedicada a São Lourenço, que durante muitos anos foi realizada na birosca no mês de agosto. E também porque o proprietário era o sambista Sêo Régi.
Ao repertório tradicional do samba do eixo Rio-São Paulo, Bernardes agrega composições de sambistas baianos como Batatinha, Ederaldo Gentil, Riachão, Edil Pacheco, Walmir Lima, Nelson Rufino e Roque Ferreira. Era a pesquisa sendo colocada em prática. Instrumentos que haviam sido banidos do samba da Bahia, como repique de anel e reco-reco, voltam a fazer parte das rodas.
A fama do grupo corria à boca miúda — e o que era um simples motivo para o encontro descompromissado de amigos acaba se expandindo para outros bairros de Salvador. No Largo de Santo Antônio, em pleno Pelourinho, o samba se espalha feito rastilho de pólvora. As rodas abertas do Grupo Botequim atraem milhares de pessoas — e não só turistas. Nativos de todas as faixas etárias começam a marcar presença: os jovens para conhecer e aprender os sambas de seus conterrâneos; os velhos para matar a saudade de músicas que não se ouviam mais.
Convites para shows e eventos começam a pintar. O Botequim passa a acompanhar sambistas da velha guarda. Sozinho ou em companhia dos mestres, o grupo se apresenta pelo interior da Bahia. E depois em Portugal, Alemanha, França. No entanto, segundo Bernardes, a maioria dos integrantes era avessa à ideia de profissionalizar o grupo. “Éramos amigos, foi um rompimento civilizado. Em 2013 decidi sair porque a coisa estava crescendo muito, mas o retorno não vinha. Todos tinham outras profissões; eu era o único músico do grupo”, afirma.
Antes disso, porém, Ênio faria o movimento contrário ao de muitos brasileiros que migram do interior para a capital: em 2007 ele sai de Salvador e vai para o Recôncavo Baiano em busca de aprofundar seu conhecimento acerca do samba de roda. “O Recôncavo era um lugar mítico para mim. Quando cheguei lá tive a certeza de que era minha casa”, conta.
Mora uma temporada em Muritiba e depois se estabelece em São Félix. Impactado com a quantidade de terreiros de Candomblé nestas cidadezinhas, não resiste ao chamado e se inicia filho de Oxalá no Ilê Asè Dacosidê, de Mãe Mariá Lameu, em Cruz das Almas.
Beatriz Conceição, sambadeira e coordenadora da Casa de Cultura de São Félix, foi a pessoa que lhe abriu as portas da cidade. Ela o levou aos terreiros e o apresentou aos capoeiristas e sambistas locais. Ali o músico aprendeu a comer amendoim cozido, iguaria típica do Recôncavo. Ali, ouvindo tocar o grupo Filhos de Nagô, aprendeu os macetes do samba de roda baiano na viola. “Para sempre serei grato ao povo de São Félix, que é onde quero findar os meus dias”, diz Bernardes, com comoção no tom de voz.
São Félix, com seus 15 mil habitantes, está ligado ao município de Cachoeira pela ponte Dom Pedro II, construída em 1885 com ferro e lastros de madeira da Inglaterra. Durante décadas ela exerceu papel econômico fundamental na Bahia, servindo como passagem de carga, mas hoje é apenas o cartão-postal da região. “Cruzando a ponte sobre o rio Paraguaçu, em muitas idas e vindas, descobri o sotaque do samba baiano.”, diz Ênio. “Foi no Recôncavo que cheguei ao samba de caboclo, um tipo de samba feito na palma da mão pela Irmandade da Boa Morte. Fiquei marcado por essa experiência.”
Em 2008 Pedrão grava seu primeiro CD — Samba de Botequim — e Ênio Bernardes é convidado a fazer os arranjos de percussão. Além dos arranjos, emplaca também um samba de sua autoria, escrito em parceria com o próprio Pedro Abib, cuja letra fala de um forasteiro que chega à Bahia “pagando de malandro” e ganha em troca um “presta atenção” da capoeira. Longe de ser um samba “autobiográfico” — uma vez que ambos os compositores são capoeiristas e aprenderam com os mais velhos a “chegar no respeito” — Tem Que Se Cuidar é um “manifesto da baianidade”. O próprio Ênio a considera seu cartão de visita.
Chegou na Bahia sem se preocupar
Diz ter corpo fechado pelo Pai Xangô
No jogo de Angola diz que é professor
Mandinga na roda já foi vadiar
Diz que de onde veio é babalaô
Puxou ijexá no primeiro agogô
Na ponta da língua deu pra versar
No samba de roda ele quis se mostrar
Êh lá
Mas tem que se cuidar, camará
Êh lá ê
Pra não escorregar no dendê
Capoeira de Angola
É pra mim e pra você.
“Adquirir consciência do que é ser negro no mundo é uma libertação, mas também um inferno. Tudo passa a te afetar diretamente.”
Salvador é uma cidade negra. Talvez a maior fora da África. Os últimos dados do Censo apontam que 80% das pessoas na capital baiana são afrodescendentes. Quando voltou para ela, após um ano e meio morando no Recôncavo, Ênio Bernardes percebeu que a consciência de sua própria negritude — que desabrochara ainda em Campinas, junto à descoberta do samba — alcançaria outra dimensão.
“Salvador não é negra apenas na cor da pele da população, mas em sua estrutura. Os produtos na feira têm nomes em iorubá, a arquitetura das casas foi idealizada por gente negra. Mesmo os brancos introjetaram o modo africano de andar, vestir, comer, dançar, festejar… A cultura dos terreiros é muito forte, quase todo mundo é filho de santo… Até os evangélicos.”, diverte-se o músico, abrindo um largo sorriso.
Apesar do sentimento de representatividade gerado pela presença marcante da cultura afro na cidade, Salvador não está isenta do racismo estrutural do País. E ele pode ser observado sob vários aspectos: na publicidade que, mesmo na “Roma Negra”, prioriza pessoas brancas em suas propagandas; na política, diante da ausência de prefeitos e governadores de pele preta; e principalmente na exclusão desse estrato social — que pode ser verificada em todo o Brasil, mas que ali parece desproporcional em relação à maioria dos estados.
Ênio Bernardes cita a história de Martinho da Cuíca para ilustrar o racismo estrutural que afeta grande parte da população em Salvador, não poupando sequer os “artistas do povo”. Na descrição do músico, Martinho era um “malandro da antiga, boêmio do tipo onipresente, que estava em toda parte da cidade com sua cuíca à tiracolo, tocando em troca de comida e cachaça.”
Quando se conheceram em Itapuã, Ênio passou a convidá-lo para shows com o Grupo Botequim. Apesar de morar sozinho num cortiço, em condições precárias, Martinho era um ícone do samba baiano por conta da forma única como tocava a cuíca de sete parafusos de afinação. No início de 2013, ele some das rodas e não é mais visto na noite — o que desperta a preocupação em Ênio e Pedrão. Como não atendesse o telefone, foram à sua casa no Pelourinho.
“Quando entramos no cortiço nos deparamos com uma cena muito triste: o velho estava caído no chão, seminu, magro como um etíope e agonizando. Quando o carreguei no colo para levá-lo ao hospital, notei que estava pesando menos do que o meu filho”, conta Ênio. Dois dias depois, Martinho da Cuíca morreria sem testemunhas. Só não foi enterrado como indigente porque os músicos se organizaram para comprar caixão e pagar pelo sepultamento no cemitério Campo Santo, em Salvador.
No YouTube há um vídeo disponível com as últimas imagens em vida do sambista, captadas um ano antes de sua morte: nele, podemos vê-lo cantando um samba no Carnaval do Bloco de Hoje à Oito, fundado por Ênio Bernardes. “A morte de Martinho, da forma como aconteceu, não pode ser outra coisa que não resultado do racismo estrutural do País, que condena à miséria grande parte dos negros brasileiros”, afirma o cantor.
Nossa entrevista aconteceu na mesma semana em que George Floyd, um homem negro, foi assassinado diante das câmeras por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos. Ele era suspeito de comprar um maço de cigarros com uma nota falsa de dólar — suspeita que depois se mostrou infundada. O julgamento e pena de Floyd tiveram a duração de 8 minutos e 46 segundos (tempo que o agente levou para asfixiá-lo com o joelho).
O homicídio de George Floyd desencadeou uma onda de protestos antirracistas — primeiro em Minneapolis, depois em outras cidades do país e do mundo. As manifestações e protestos foram inicialmente pacíficos, mas logo se converteram em ações violentas contra a polícia e as instituições, numa revolta social de grandes proporções que não se via desde a morte de Eric Garner, em 2014.
Ênio Bernardes comentou o episódio. Disse que há trinta anos talvez não se sentisse tão abalado. “Adquirir consciência do que é ser negro no mundo é uma libertação, mas também um inferno. Tudo passa a te afetar diretamente. É como se casos como este fossem uma agressão pessoal, entende? A morte de George Floyd é a mesma do Martinho da Cuíca”, diz.
Ele aproveita o ensejo para falar sobre a primeira vez em que se sentiu discriminado pela cor de sua pele. “Eu era adolescente. Naquela época só tinha amigos brancos e nenhuma consciência política. Minha tendência era pensar e agir como os garotos de classe média do bairro em que eu morava”, conta.
A autopercepção de sua negritude brotou de repente, numa noite em que foram à uma danceteria. “Os caras brancos entraram, mas fui barrado na porta pelo segurança. Só depois de um tempo é que me liberaram à contragosto. O que mais me doeu, no entanto, foi ver meus amigos rindo de mim ao invés de me defenderem”, relembra.
“Devo muito ao samba pelo modo de enxergar os idosos e de me relacionar com eles. Respeito total aos números baixos. Sem eles não haveria a minha história.”
Campinas, uma das maiores e mais importantes cidades do interior de São Paulo, foi a última cidade do Brasil a abolir a escravidão. Segundo documentação da época, o município paulista era conhecido pela violência com que tratava os negros em seus engenhos de açúcar e café. Ser vendido a um barão de Campinas era uma forma de castigo aos escravizados que tentavam fugir ou cometiam algum tipo de delito em outros estados.
Segundo o historiador Duílio Battistoni Filho, em artigo publicado na revista do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas (IHGG), o trabalho nas plantações de café começava ainda de madrugada, tão logo se ouvisse a primeira badalada de um potente sino tocado na sede das fazendas. “Apresentados em fila para o feitor, começavam a trabalhar nos cafezais, sendo que os carros de boi se encarregavam de levá-los para as áreas de plantio mais distantes. Cantigas ritmadas acompanhavam o movimento das enxadas: jongos, canções inspiradas nos acontecimentos miúdos da vida cotidiana, falando de senhores e escravos, de feitores e iaiás, cantadas em duas ou mais vozes, às vezes numa mistura de palavras portuguesas e africanas.”
Em Campinas, o passado musical dos escravizados é redivivo nas apresentações e oficinas da comunidade Jongo Dito Ribeiro, nos tambores ancestrais do mestre TC Silva ou nas cantigas imemoriais que ainda saem da boca do sambista e artista plástico Aloísio Geremias. Mas as feridas deixadas pelo escravismo campineiro nunca cicatrizaram totalmente — suas marcas continuam expostas no tecido social da cidade.
Prova disso me foi dada por Álvaro Matheus, conhecido como Nenê do Cavaco (grande solista de choro e compositor campeão de vários carnavais pela Estrela D’alva, a mais antiga escola de samba de Campinas). Em entrevista que fizemos em 2004 para meu livro A Suprema Elegância do Samba, contou-me que na década de 1950, mais de meio século após a abolição, a cidade ainda era dividida em territórios brancos e territórios negros, embora isso não fosse admitido oficialmente.
“Quando uma senhora branca entrava no bonde, os pretos eram obrigados a se levantar e ceder seu lugar para ela. Um dia me recusei a ceder o meu assento e o motorneiro chamou a polícia para mim. (…) Se você fosse preto e andasse com instrumento musical na rua, era levado à delegacia para averiguação e podia até ser preso por vadiagem. (…) Pela Avenida Francisco Glicério só transitavam os pretos e pela Rua Barão de Jaguara, sua paralela, circulavam apenas os brancos”, relatou Nenê do Cavaco.
Sêo Nenê, falecido em 2011, foi um dos primeiros sambistas da velha guarda de Campinas que Ênio Bernardes conheceu pessoalmente, em seu despertar para o universo do samba. Apesar de terem havido poucos encontros entre os dois, estes foram intensos e deixaram recordações que até hoje, de alguma forma, orientam seu comportamento diante de uma pessoa mais velha. “Devo muito ao samba pelo modo com que passei a enxergar os idosos e a me relacionar com eles. Respeito total aos números baixos. Sem eles — os que abriram o caminho — não haveria a minha história”, declara.
Antes de descobrir o samba, Ênio não se importava com nada disso. Ele iniciava uma promissora carreira de vocalista à frente da Banda Bate Lata e seu sonho imediato era se tornar um astro da música pop e ganhar muito dinheiro. “Era um sonho limitado e um tanto quanto ingênuo”, admite. “Mas era o sonho de quase todos os jovens da minha geração. Eu morava num bairro de classe média e as ambições da molecada não iam muito além do que a televisão mostrava.”
A família do músico chegou em terras campineiras no início da década de 1970. O pai, Antônio Sebastião, foi trabalhar como cozinheiro na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A mãe, Maria Vita, como enfermeira. Ambos vindos do interior de Minas Gerais no grande fluxo migratório registrado naquela época. Com muito sacrifício, depois de morar por um curto espaço de tempo na periferia, o casal adquiriu um terreno no distrito de Barão Geraldo, mais especificamente na Rua Virgílio Dalbem, nº 312.
Hoje Barão Geraldo é considerada uma região nobre da cidade, habitada majoritariamente por estudantes, professores e funcionários da Unicamp, que concentra um dos maiores polos de alta tecnologia do Brasil. No entanto, quando a família de Ênio se instalou, a área estava apenas começando a ser loteada. “A rua onde morávamos era praticamente desabitada. Só havia a nossa casa e mais uma meia dúzia, um pouco mais adiante. A vida era muito simples, mas nunca passei fome ou deixei de estudar”, afirma.
Da infância guarda a lembrança de uma ocorrência que quase lhe custou a vida: o atropelamento sofrido ao cruzar uma avenida em cima da bicicleta sem freio. Tinha 11 anos e do acidente não herdou maiores traumas além de uma sutil cicatriz no rosto. Lembranças boas a superam: o fato de ter sido um “moleque de rua” é uma delas. As recordações mais antigas resgatam o menino de kichute com os cadarços amarrados nas canelas. Numa época em que ainda não havia celular e internet, divertia-se soltando pipa e correndo atrás de bola com a camisa do Curumim, time do bairro. A música entraria por acaso em sua vida.
Em ocasiões especiais, como Natal e Ano Novo, ouvia o pai dedilhar a sanfona em casa. Na juventude, Sêo Antônio animava bailes e chegou a gravar um elepê como sanfoneiro acompanhante. Tocar, porém, sempre foi um passatempo, ocupando papel secundário em sua vida. As primeiras grandes referências de Ênio não viriam da família, mas do rádio. “Meu pai chegava do trabalho e ligava o rádio, mas não tinha muito critério. Ele ouvia o que estivesse tocando. Ia de Roberto Carlos a Michael Jackson, passando pelo rock nacional, que estava na moda”, conta.
Uma das canções que ele se lembra de ouvir com muita frequência no rádio era Porto Solidão, de Jessé, que fez retumbante sucesso radiofônico em 1980. Esta foi a primeira música que cantou na vida, por volta dos oito anos de idade, numa festa da escola.
Ênio estudava no Educandário Eurípedes, departamento assistencial do Centro Espírita Allan Kardec, fundado em 1962 e que até hoje funciona no bairro Vila Nova. “O curioso é que eu era um menino muito tímido, mas para cantar não. Nunca tive vergonha de cantar em público. Descobri isso cantando Porto Solidão para uma plateia de crianças e pais de alunos.” Ele se emociona ao recordar este dia enquanto cantarola um trecho da canção.
Se um veleiro
Repousasse
Na palma da minha mão
Sopraria com sentimento
E deixaria seguir sempre
Rumo ao meu coração
Meu coração
A calma de um mar
Que guarda tamanhos segredos
De versos naufragados
E sem tempo
Rimas, de ventos e velas
Vida que vem e que vai
A solidão que fica e entra
Me arremessando
Contra o cais.
“Com o Bate Lata conheci o palco, a mídia, a fama. Com o samba voltei à minha origem e desisti de ser o centro das atenções.”
Apesar do amanhecer precoce da música em sua vida, Ênio diz que demorou a se aproximar dela. “De repente eu estava em Espírito Santo do Pinhal estudando para ser técnico agrícola, porque precisava ter uma profissão”, revela. Entediado, abandona o curso um ano depois e volta a Campinas decidido a prestar vestibular para a faculdade de Música. Compra um violão e contrata Jorge Macedo, músico tarimbado da noite campineira, para lhe ensinar a tocar. Logo, percebendo que o rapaz era afinado, o violonista passa a convidá-lo para dar canjas em suas apresentações. No início da década de 1990, o formato voz e violão estava em alta no circuito dos bares. Em pouco tempo, Ênio começa a ganhar seus primeiros cachês.
A breve experiência como cantor de barzinho lhe renderia um convite para dar aulas de violão para crianças em um projeto social no bairro Santa Lúcia, periferia de Campinas. O projeto se chamava Formação Um e atendia a centenas de jovens em situação de risco. Para Bernardes foi “como cursar uma universidade”: o contato com a realidade de crianças e adolescentes de baixa renda lhe abriu os olhos para questões que até então nunca haviam lhe passado pela cabeça. “Eu vivia numa bolha de classe média e achava que era pobre. Ter contato com a pobreza real — e perceber que ela tem cor — mudou a minha forma de ver o mundo”, diz.
Em 1994, a convite do socioeducador Roni Costa, ajuda a estruturar a Banda Bate Lata dentro do projeto. Inspirada no grupo Moleque de Rua, de São Paulo, a banda de Campinas era formada por crianças e adolescentes da periferia que construíam e tocavam seus próprios instrumentos de percussão, feitos a partir de sucata. No ano seguinte, a iniciativa inspira o curta-metragem O Menino, a Favela e as Tampas de Panela, dirigido por Cao Hamburguer e exibido pela TV Cultura.
Pelo menos no papel, o objetivo inicial da Fundação Orsa, financiadora do projeto, era “promover a inclusão sociocultural deste público-alvo.” No entanto, o Bate Lata acaba ganhando vida própria e passa a ser contratado para shows e eventos em todo o Brasil. Em 1999, à frente da banda como vocalista, Ênio começa a se tornar um artista de alcance nacional após apresentação no Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, que conta com a participação de Caetano Veloso. Ao tecer uma série de elogios ao intérprete campineiro, Caetano ajudaria a ampliar a visibilidade não só do grupo, mas do próprio cantor.
O Bate Lata entra no circuito dos grandes shows e passa a dividir o palco com Chico César, Lenine, Seu Jorge, Moska, Naná Vasconcelos e com o jazzista norte-americano Wynton Marsalis. O primeiro CD da banda, Gente é Pra Brilhar, Não Pra Morrer de Fome, conta com as presenças de Caetano Veloso e de Carl Smith, do grupo de percussão performática Stomp. No dia 1º de janeiro de 2003, o Bate Lata se apresenta em Brasília, na posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, para um público estimado em 300 mil pessoas.
Porém, um “acidente de percurso” mudaria radicalmente o rumo que a carreira de Ênio vinha tomando: o samba. A princípio sem abrir mão de seus compromissos com o Bate Lata, o músico foi convidado e aceitou entrar para o grupo Quarteto de Cordas Vocais, que na época deixava de ser exclusivamente um conjunto vocal para se dedicar à apresentações de samba no Centro Cultural Evolução.
Este espaço estava sediado na Rua Regente Feijó, nº 1087, dentro de um palacete centenário que pertencera ao Barão de Ataliba Nogueira, no Centro de Campinas. Tudo foi possível graças ao idealismo do empresário e diretor teatral Jonas Rocha Lemos, mecenas que vendeu um terreno e investiu todo o dinheiro na reforma do casarão para transformá-lo num centro cultural dotado de salas de exposição, cineclube, teatro, café e convívio. O samba começou no terraço e logo teve de migrar para o salão principal.
Era setembro do ano 2000 e iniciativas ligadas à valorização do samba se multiplicavam em todo o estado de São Paulo, num movimento espontâneo que alguns poderiam chamar de “sincronicidade”. Ainda não havia Facebook. Nem mesmo o Orkut havia sido criado. A divulgação era feita na base do boca a boca. E em poucos meses o samba do Quarteto de Cordas Vocais, que acontecia aos sábados a partir da meia-noite, passou a reunir uma média de 400 pessoas. “Ninguém acreditava que poderia dar certo e logo a nossa roda já era o programa mais animado da cidade”, lembra.
A roda do Centro Cultural Evolução proporcionou ao Quarteto de Cordas Vocais convites para acompanhar ou abrir o show de grandes nomes do samba, que voltaram a se apresentar em Campinas após longo inverno: Velha Guarda da Portela, Bezerra da Silva, Wilson Moreira, Nei Lopes, Dona Ivone Lara, Nelson Sargento, Guilherme de Brito e tantos outros. Ênio Bernardes já havia assumido a percussão do grupo — e o modo como tocava o pandeiro chegou a arrancar elogios de Monarco, talvez seu maior ídolo no samba. Foi um período de muitas descobertas e intercâmbios com jovens que estavam trilhando o mesmo caminho em outras cidades e estados do País.
“Aceitei fazer parte do grupo porque queria sentir o samba na pele. Eu achava que seria apenas uma experiência passageira, mas o samba me fisgou. Dentro da roda percebi a força ancestral que havia nela. Com o Bate Lata conheci o palco, a mídia, a fama. Com o samba voltei à minha origem e desisti de ser o centro das atenções. A roda te ensina humildade. Ensina procedimentos. Ninguém te ensina como ser sambista. Isso leva tempo. Você aprende observando os mais velhos e tomando umas broncas também”, avalia o músico.
No dia 29 de junho de 2001 é dado o passo além que o afastaria definitivamente do Bate Lata e dos holofotes: Ênio Bernardes participa da fundação do Núcleo de Samba Cupinzeiro, em Barão Geraldo. A sede ficava à Rua Virgílio Dalbem, nº 244, residência de Edu de Maria (ex-integrante do Quarteto) e Anabela Leandro, seus vizinhos e idealizadores do projeto. Era uma roda de samba feita no quintal, debaixo de uma mangueira e ao redor de um grande cupinzeiro — daí o nome do coletivo que, além de tocar e compor, dedicava-se à pesquisa de repertório, principalmente do samba paulista. “Geraldo Filme foi para mim um divisor de águas. Até então eu só ouvia o samba carioca. A obra dele fez com que eu passasse a me ver como um negro sambista de São Paulo, com história e cultura próprias”, conta.
As rodas do Cupinzeiro o levaram de volta ao chão de terra da infância. “Havia naquele quintal um clima de terreiro, de comunidade, que me emocionava muito. Eu me sentia parte de algo importante. Não fazíamos música pela música. A gente pesquisava sambas inéditos, contava histórias de sambistas campineiros e cantava sambas autorais. Foi ali que descobri que o samba ia muito além do aspecto musical. Percebi que o samba estava na comida, na roupa e até no modo de falar e de sentir do povo. Para mim se tornou quase uma religião”, revela.
Durante os quatro anos em que integrou o Núcleo de Samba Cupinzeiro, Ênio Bernardes teve a oportunidade de correr o Brasil para conhecer experiências similares. Em São Paulo frequentou o Samba da Vela e o Morro das Pedras. Ao Rio de Janeiro viajou várias vezes a convite do grupo Galocantô e pôde acompanhar o surgimento da chamada “geração da Lapa”. Em Florianópolis subiu o Morro da Caixa e tocou com o pessoal do Bom Partido. Em Porto Alegre se apresentou no Fórum Social Mundial, fez rodas de samba num acampamento do MST e dividiu o palco com Augusto Boal.
“Digo sem medo de errar: a capoeira e o samba me deram uma identidade. São culturas que chegaram quase que ao mesmo tempo na minha vida e fizeram uma revolução. Eu era inseguro e me fortaleci no encontro com a ancestralidade. Isso me fez perceber que tenho valor por ser negro. O samba me puxou pelo braço e disse: ‘Você vai ficar aqui comigo’. E estou aqui até hoje”, diz o músico. Ser o líder da Banda Bate Lata já não fazia mais sentido.
“Martinho da Vila dizia que olhava para João da Bahiana e via nele um tio ou um primo. É assim que eu me sentia em relação ao Riachão: ele era o meu avô.”
Sentado na soleira da porta de sua casa em Salvador, localizada na Ladeira da Preguiça — uma das ladeiras mais antigas da capital baiana, construída provavelmente no século XVII para ligar o porto à Cidade Alta —, Ênio Bernardes considera ter chegado exatamente onde queria estar. Ele encara seu enraizamento na Bahia a um tipo de “retorno”, embora nunca tivesse estado lá antes de 2004. “Foi aqui que o Brasil começou. É aqui que me sinto de fato representado como negro e brasileiro. E aqui ainda é possível encontrar compositores que mantêm a pureza original do samba em suas obras, algo que sempre busquei.”, explica.
A experiência acumulada na pesquisa do samba paulista foi de grande valia para o seu estabelecimento em solo baiano. Trabalhar pelo resgate da memória dos mestres locais foi uma forma de agradecer ao seu próprio passado. Os estudos de campo, iniciados no tempo do Cupinzeiro, seguiram sua marcha e deram resultados práticos em seu novo território.
Dos frutos de suas pesquisas, o mais importante até o momento é o já citado álbum Bahia Dá Samba, lançado em 2018 com apoio do Fundo de Cultura do Governo da Bahia. O CD foi inspirado, inclusive em sua arte gráfica, no seminal elepê Samba Da Bahia, de 1973, que apresentou ao público os sambistas baianos Batatinha, Panela e Riachão. Desta vez os agraciados foram Walmir Lima, Reginaldo de Itapuã e Guiga de Ogum, compositores populares que estavam no ostracismo e não entravam em estúdio há muitos anos. O disco mereceu destaque positivo na imprensa nacional.
Ênio conta que a ideia do projeto nasceu por acaso, entre uma cerveja e outra, ouvindo Sêo Régi cantar seus sambas praianos numa tarde ensolarada de Itapuã. “Me perguntei como é que ninguém nunca pensou em gravar com respeito aquelas músicas, da forma como elas mereciam. E me bateu um estalo: ‘Por que não gravo eu, então?'”
Cada compositor entrou com quatro faixas no álbum. Nenhuma delas havia sido registrada em áudio anteriormente; algumas das letras estavam escritas em guardanapos de papel ou folhas de caderno, tendo sua melodia gravada apenas na memória dos mestres — daí o caráter de documento histórico adquirido pela obra.
O retorno aos sambistas homenageados foi imediato. Segundo Sêo Régi de Itapuã, 77 anos, depois do lançamento do disco seu trabalho passou a ser mais valorizado dentro e fora da Bahia. “Passei de compositor esquecido à referência do samba baiano. Ênio Bernardes chegou de mansinho e abriu a mente das pessoas para o nosso valor”, afirma.
Da amizade entre os dois nasceu a parceria De Lá Eu Vim, que também contou com a contribuição de Daniela Amoroso.
Quando eu vim da Bahia
Trouxe leite de coco
Camarão e castanha
Trouxe pemba no bolso
Trouxe o meu pandeiro
Berimbau e ganzá
Preso em uma presilha, seu moço
Trouxe o meu patuá
De lá eu vim
E pra lá tô querendo voltar
Pois já vem fevereiro
E não quero perder a festa de Iemanjá
De lá eu vim
E pra lá tô querendo voltar
Eu sou de capoeira, sou filho de santo
Sou do Gantois
“A obra dos mestres da Bahia resvala numa delicada ingenuidade. São senhores sem muito estudo formal, mas com uma sensibilidade que os tornam verdadeiros poetas do povo. É como se estivéssemos diante de pedras brutas, preservadas pelo tempo. O fato de o samba baiano não ter tido até hoje a mesma penetração na mídia e na indústria cultural que teve o samba carioca pode ter colaborado.”, define Ênio.
Guiga de Ogum, 76 anos, a quem Bernardes conheceu no Bar Toalha da Saudade, comandado pela família de Batatinha, talvez seja o melhor exemplo da definição acima. Apesar de gravado por Leny Andrade no início da década de 1970, a carreira de Guiga nunca deslanchou. Suas letras são marcadas por mensagens profundas contidas em frases simples. “Eu o considero um filósofo popular”, diz o músico.
Na madrugada do dia 27 de abril deste ano, a casa de Guiga de Ogum foi parcialmente danificada ao ser atingida pelo desmoronamento de um muro do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (UFBA), localizado logo atrás de seu terreno. Desde então o compositor e sua família se encontram abrigados provisoriamente sob o teto de vizinhos na Ladeira da Preguiça.
Ênio comenta que mesmo em situações como esta é possível pensar em samba, quando se está na Bahia. “Ouvi Guiga ao celular, falando com Barthô Ara sobre o acidente, e de sua boca saiu uma frase que me pareceu poesia pura: ‘Tantos e tantos, muitos e muitos; e nem um pouco pra quem não tem nada”, lembra.
No mesmo instante, Bernardes criou uma melodia sobre estas palavras e cantou para Guiga. No dia seguinte, com a colaboração de Barthô, o poeta entregou a letra pronta a Ênio, que concluiu a música e a batizou: Tantos e Muitos.
Tantos e tantos
Muitos e muitos
E nem um pouco
Pra quem não tem nada
Pés que não andam não levam topada
Nada é pra sempre, é bom saber
O mundo é uma fração de segundo
E tudo passa
Não tem pra onde correr
Quem menos fala é quem mais caminha
Até chegar no fim dessa linha
Pra ver o sol nascer, se pôr e agradecer
Água da fonte é pra se beber
Tantos e tantos
Muito sem nada
O que importa é seguir na caminhada
Tantos e tantos
Muito sem nada
A vida é curta pra tão longe estrada
De Riachão, que faleceu no último dia 30 de março, aos 98 anos de idade, Bernardes foi muito próximo. Desde que aceitou o convite para ser homenageado pelo Bloco De Hoje a Oito, no Carnaval de 2016, o velho sambista baiano não mais se afastou do novo amigo: Ênio passou a acompanhá-lo como percussionista em todos os shows que realizou até o fim da vida. Foi, possivelmente, quem mais conviveu com Riachão na reta final de sua existência.
Um dos últimos eventos do qual participaram juntos foi o seminário “Eu Sou o Samba”, que aconteceu no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IHGB) em 20 de agosto de 2019. A programação, que reuniu sambistas e pesquisadores do samba baiano, contou ainda com a participação da cantora Juliana Ribeiro e dos compositores Roberto Mendes e Chocolate.
Em sua fala, Roberto Mendes faz uma afirmação polêmica: “Costumo dizer que Tia Ciata fez o transporte das chulas do Recôncavo para o Rio de Janeiro. E o Rio não foi besta, por isso que eles homenageiam as baianas no Carnaval. Se não fosse Santo Amaro, não existiria o samba no Brasil.”
Bernardes prefere citar o historiador Luiz Antônio Simas: “Só sei que o samba baiano nasceu na Bahia; assim como o samba carioca nasceu no Rio e o samba paulista em São Paulo.”, diz. Para ele, sambistas como Riachão estão acima de rótulos regionais por sintetizar, em sua obra e modo de vida, o espírito de uma cultura que abrange grande parte do território nacional.
Quando o autor de Cada Macaco No Seu Galho morreu, Ênio assimilou o baque como quem perde um membro da família. “Martinho da Vila dizia que olhava para João da Bahiana e via nele um tio ou um primo. É assim que eu me sentia em relação ao Riachão: ele era o meu avô.”, declara.
Em carta, a professora Lívia Fialho, doutora em Antropologia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), escreve a Ênio Bernardes e comenta sobre seu compromisso com os velhos: “Quando eu anotava no caderno de campo sobre as Rodas de Samba, um dia escrevi sobre você. Eu dizia que o reconhecimento dos Outros que vieram antes de você, antes de muitos, faz com que você assuma um lugar de aprendiz dos mestres. O reconhecimento da ‘autoridade’ dos homens mais velhos te move de alguma forma. Não como ‘lugar’ de promoção, mas de aprendizagem. Entretanto, na Roda, a posição se inverte, você não é o aprendiz. Você conduz e eles te olham e assim, de certa forma, as hierarquias se reinventam: ali, quando o ‘filho’ se torna mestre, é quando você se vê realmente no que faz, reconhecido, mas, sobretudo, agradecido, curado, acolhido. O simbolismo da Roda reforça a ordem e reafirma, ao mesmo tempo, a desordem, o lúdico, a festa…”
Sua mais recente contribuição ao resgate do samba da Bahia se deu em 2018, quando funda a Cooperativa do Samba — coletivo que se propõe a organizar grupos grandes de pessoas para se encontrarem em lugares públicos de Salvador. A finalidade primeira é improvisar rodas de samba para cantar compositores baianos. Sem aviso prévio e sem apoio de ninguém.
Um dos locais agraciados com a visita do coletivo é a Feira de São Joaquim, maior feira livre da capital e a preferida da população de baixa renda, devido aos bons preços. Esta feira, que no passado era conhecida como Água de Menino, abriga inúmeros trabalhadores descendentes de escravizados africanos. “O samba tem que ser de todas as pessoas. É injusto que fique apenas restrito à classe média. Ele tem que voltar de onde veio”, defende o músico.
Em seu CD de estreia, que deverá ser gravado ainda este ano, há um samba em parceria com Barthô Ara chamado justamente Feira de São Joaquim. A letra transmite o clima do lugar sob a perspectiva do poeta, que transita por entre as barracas e descreve os produtos e tipos humanos que encontra pelo caminho.
Andando na Feira de São Joaquim
Eu vi, eu vi
Quiabo de trinta, batata e aipim
Eu também vi
Muita gente de sacola
Eu vi coisas pelo chão
A madame pechinchando
Bugigangas com dinheiro na mão
Eu de chapéu de palha
Percata de couro, camisa e calção
Cantando, tirando os meus versos
Tomando batida de limão
Olha a morena
Quanta beleza
Muita areia pro meu caminhão
Água de Menino
Como é bonita sua tradição
E o Saveiro traz alegria para o coração
E o Saveiro traz alegria para o coração
E a baiana vem assim
De saia rendada e tamborim
Sambando arrasta as sandálias
No requebrar dos seu quadris
Com água de cheiro, vasos e flores
Na cabeça
Pra saudar ao Nosso Senhor do Bonfim
Pra lavar a escadaria do Bonfim
Pra rezar pro nosso Senhor do Bonfim
Pra louvar ao nosso Senhor do Bonfim
“A Bahia já me ensinou muito. Ela me ensina o tempo todo.”, diz Ênio. Da janela de sua cozinha é possível avistar ao longe as águas da Baía de Todos-os-Santos. Seu vizinho é Guiga de Ogum — a quem costuma visitar no fim de tarde, para um café. Basta sentar na rua com cavaquinho ou pandeiro debaixo do braço para juntar gente. E apesar da instabilidade financeira inerente a quem vive de música no Brasil, o estilo de vida frugal lhe permite tempo para conviver com os mestres e absorver seus ensinamentos. “Não quero romantizar Salvador, pois se trata de uma cidade bem problemática; mas hoje vivo em estado de poesia.”, afirma.