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Marx, “O Capital” e o homem-mercadoria [parte 2]

Para Marx, sem colonialismo o centro não se desenvolveria, e o desenvolvimento industrial sujeita a economia das plantations.
por Bruno Guigue (*) | Le Grand Soir – Tradução de Luiz Lima para a Revista Opera

No artigo a seguir, que publicamos em duas partes, Bruno Guige analisa as formas da escravidão n’O Capital de Marx. Leia aqui a primeira parte.

***

A plantation escravagista

“O regime colonial deu um grande impulso ao transporte marítimo e ao comércio. Ele deu origem a sociedades mercantis, dotadas pelos governos de monopólios e privilégios e servindo como alavancas poderosas para a concentração de capital. Garantiu pontos de venda para fábricas emergentes, cuja facilidade de acumulação aumentou, graças ao monopólio do mercado colonial.” O papel do grande comércio marítimo na constituição de um gigantesco capital mercantil concentrado no coração da Europa tem sido tão enfatizado pelos historiadores, às vezes seguindo o próprio Marx, que parece ser ocioso realçá-lo. Entretanto, até onde essa concentração de riqueza era inseparável do regime colonial? Certamente o era graças aos “privilégios das empresas” e ao “monopólio do mercado colonial”, garantidores de um lucro comercial excepcional, assegura Marx; mas também e acima de tudo, acrescenta, pela exploração sistemática do trabalho escravo: “Os tesouros extorquidos diretamente fora da Europa pelo trabalho forçado dos nativos reduzidos à escravidão, por concussão, pilhagem e assassinato, refluíam para a mãe-pátria para funcionar lá como capital.” (10) O que essas linhas descrevem é o processo de acumulação capitalista baseado na exploração colonial escravagista.

Nesse sistema, o lucro comercial advém simultaneamente da exportação de produtos manufaturados para as colônias, do comércio de escravos com vistas ao fornecimento de mão-de-obra e da reexportação de produtos tropicais para o mercado europeu; e é esse lucro comercial gerado pela periferia que é massivamente acumulado (“repatriado”, diz Marx) ao centro para “funcionar como capital”, ou seja, permitir o desenvolvimento do aparato produtivo. Mas, sem a escravidão, não há comércio, nem produção mercantil nas colônias: o coração do sistema é, portanto, a “plantation” escravagista. Foram “as grandes plantações, nascidas da monocultura da cana-de-açúcar, um empreendimento caro e, portanto, capitalista” (11), que proporcionou a base para o moderno sistema escravista. Para o lucro comercial gerado pelo comércio colonial e pelo comércio de escravos, a economia açucareira agrega, de fato, uma “mais-valia” do tipo industrial.

Pois, à diferença de outras produções tropicais, o açúcar imediatamente deu origem a uma verdadeira “agroindústria”. O plantio e o corte de cana, a moagem em usinas de açúcar, a concentração do melado em caldeiras, a cristalização e o refino: a produção de açúcar não pode acomodar uma organização artesanal. Requer um efetivo numeroso e rigorosa disciplina de trabalho. “Nos séculos XVI e XVII, com a grande propriedade (em termos relativos), o escravo negro se multiplicou, como condição sine qua non para a sua existência…”. O tráfico de escravos permitiu o estabelecimento de enormes plantações de açúcar para a época, no limite do que permitia o transporte da cana em carros de tração animal, que, ato contínuo após o corte, para não estragar, tinha de ser imediatamente levada à moagem. Nessas grandes empresas, havia lugar para o trabalho regular, bem dividido, monótono, sem muita qualificação, além de três ou quatro posições de natureza técnica. Claramente, a plantação de açúcar é uma empresa capitalista: requer pesados investimentos (usinas, caldeiras) e uma força de trabalho abundante, com experiência e disciplina coletiva. Também pressupõe o uso de capital próprio considerável, porque, devido à duração da travessia marítima, a receita da atividade é de longo prazo. É por isso que o capital, aqui, é antes de tudo o capital de mercado fornecido por uma empresa comercial que investe diretamente nas plantações ou concede adiantamentos aos plantadores.

Por ser uma produção capitalista, a exploração de açúcar também é, ao fim e ao cabo, dependente de um mercado mundial em rápida expansão. Surgido no reinado de Luís XIV, o “café da manhã à francesa” tornou-se um fenômeno universal em toda a Europa a partir de 1750. A demanda era tal que o Novo Mundo aumentou em dez vezes as importações de escravos e introduziu novas culturas destinadas a fornecer à Europa as bebidas exóticas da moda: açúcar, café, cacau. Na periferia da economia mundial dominada pelas nações europeias, organiza-se uma economia escravagista que fornece, ao mesmo tempo, os produtos coloniais exigidos pelo consumidor e os ganhos substanciais proporcionados pelo comércio. Mas é um dos paradoxos da acumulação primitiva que se tenha criado simultaneamente, nas “ilhas açucareiras”(b), um sistema produtivo cuja modernidade prenuncia de muitas maneiras as características do capitalismo industrial.

A escala da escravidão ocidental

Marx não deixou de notar que as plantações de cana-de-açúcar eram palcos de trabalho exaustivo, que condenava os cativos a um desaparecimento precoce: “A situação dos nativos era naturalmente mais terrível nas plantações voltadas à exportação, como nas Índias Ocidentais, e nos países ricos e populosos, como nas Índias Orientais e no México, caídas nas mãos dos aventureiros europeus que se interessassem em explorá-las.” (12) Por um lado, o escravo negro morto no trabalho para produzir açúcar; por outro, uma Europa em plena expansão econômica, onde se aprecia o “café da manhã à francesa”: assim acontece a oposição do centro à periferia no Século das Luzes. “É a esse preço que você come açúcar na Europa”, Voltaire diz, através de um escravo mutilado que põe em cena em Candide. “A verdadeira raiz do mal”, escreve Fernand Braudel sobre a América colonial, “fica do outro lado do Atlântico, em Madri, em Sevilha, em Cádiz, em Lisboa, em Bordéus, em Nantes e até em Gênova, certamente em Bristol, e em Liverpool, Londres, Amsterdã. É inerente ao fenômeno da redução de um continente à condição de periferia, imposta por uma força distante, indiferente aos sacrifícios dos homens, que agem de acordo com a lógica quase mecânica de uma economia mundial.”(13) 

Em um trabalho recente, um historiador estudou em detalhes o caso exemplar da cidade de Nantes. Ali aprendemos, em particular, que nesta cidade onde estavam registrados quase metade dos navios negreiros franceses do século XVIII, os negócios enriqueciam de mãos dadas com o desenvolvimento do tráfico; que isso começou no final do século XVII e durou um século e meio, levando ao registro de 1.756 navios entre 1703 e 1831; que as grandes fortunas de Nantes foram formadas a partir de meados do século, na época em que os pioneiros do tráfico de escravos conheciam seu auge; que entre 1768 e 1789, durante o “segundo boom de escravos”, o volume financeiro do comércio foi novamente multiplicado por seis; que os grandes comerciantes investiram seus lucros em bancos e seguros, se interessaram pela modernização da agricultura, contribuíram para o crescimento de fábricas de conservas, estaleiros e metalurgia; que os comerciantes de escravos formaram a classe dominante lá até a Monarquia de Julho (c) e que em 1914 os descendentes dessa “aristocracia escravagista” ainda estavam entre os capitalistas mais influentes da cidade portuária. (14)

O que não deixa de surpreender é a extraordinária longevidade e a tremenda amplitude do sistema escravagista. De 1510 a 1860, mais de doze milhões de cativos africanos foram arrancados de suas terras nativas e enviados ao Novo Mundo; mais de dois milhões morreram durante a travessia; estima-se que oito milhões tenham desaparecido entre o local da captura na África e os postos costeiros onde os sobreviventes dos ataques foram embarcados. No total, mais de vinte milhões de pessoas foram, portanto, vítimas do comércio ocidental de escravos, que infligiram à África negra um profundo trauma demográfico ao mesmo tempo em que contribuiu para a acumulação capitalista numa Europa em expansão. Como o “tráfego infame” alimentava uma economia colonial que, localizada nos arredores da economia mundial europeia, no entanto, assumiu dimensões consideráveis: por volta de 1780, no auge das plantations, franceses e britânicos exploraram mais de um milhão de escravos nas “ilhas açucareiras” do Novo Mundo; e os ingressos da economia agrícola representaram para as grandes potências, em 1800, mais da metade de seus lucros de exportação. (15)

Mas, se o ponto culminante da escravidão colonial se situa nas duas últimas décadas da “Era do Iluminismo”, é possível dizer, inversamente, que o advento do capitalismo industrial fez soar a sentença de morte do escravagismo no século seguinte? Certamente não. As análises de Marx, a esse respeito, têm o mérito de nos alertar contra uma representação linear da história econômica há muito reconhecida, é verdade, pelas simplificações do marxismo vulgar: o capitalismo não “sucedeu” à escravidão, uma vez que os trabalhadores assalariados não deslocaram os trabalhadores em condição servil da noite para o dia. Marx, dissemos, testemunhou a agonia da escravidão moderna: mas tudo acontece como se essa agonia (particularmente longa, afinal de contas) mal tivesse seguido seu auge. Pois durante a primeira metade do século XIX, apesar das sucessivas proibições ao tráfico, não houve um declínio no comércio de escravos. A despeito do apresamento de 1.287 navios negreiros entre 1825 e 1865, mais de um milhão de escravos foram importados para a América durante o mesmo período. (16) Somente entre 1810 e 1830, o sul dos Estados Unidos traziam dezenas de milhares por ano para alimentar uma economia de plantations em expansão. Na Ilha da Reunião, a produção de açúcar não começa a crescer antes de 1815; para o desenvolvimento dessa agroindústria mobiliza-se uma força de trabalho escrava cujo contingente se eleva em 45.000 cativos adicionais entre 1817 (proibição do tráfico pela monarquia restaurada) e 1848 (abolição da escravidão pela Segunda República).

Escravidão, o alicerce do capitalismo

O fato de o desenvolvimento da indústria europeia nas primeiras décadas do século XIX ter se seguido ao pico da escravidão colonial confere um interesse particular às análises d’“O Capital”. Durante o que os historiadores chamam de “primeira industrialização”, pode-se observar uma interação real entre os dois fenômenos. Reintroduzidos no centro do sistema, os lucros colossais da exploração colonial contribuíram para o desenvolvimento econômico da metrópole. Reciprocamente, o desenvolvimento industrial sujeita a economia das plantations, como Marx bem viu, a requisitos de produtividade que modificam radicalmente sua natureza. O mercantilismo atlântico repousava na exploração frenética do Novo Mundo, cuja população foi aniquilada para se criar, a partir do século XVI, uma economia escrava baseada no comércio de escravos. Mas não é menos verdade que a generalização das relações mercantis nos tempos modernos, por sua vez, renovou as formas de escravidão colonial. “Ao mesmo tempo em que a indústria do algodão introduziu a escravidão infantil na Inglaterra, transformou, nos Estados Unidos, o tratamento mais ou menos patriarcal dos negros em um sistema mercantil de exploração. Em suma, a escravidão aberta no Novo Mundo era o alicerce oculto necessário à escravidão assalariada na Europa.” (17) Naturalmente, Marx chama imediatamente nossa atenção, aqui, para as formas de dominação em que é modelada a extorsão do “trabalho excedente”. Se a escravidão dos empregados europeus é “oculta”, é porque está escondida por trás da ficção jurídica do contrato de trabalho livremente acordado entre partes iguais. Se a escravidão dos negros americanos é “aberta”, é porque, ao contrário, a condição dos negros está explícita em seu estatuto: a condição servil. Em outras palavras, o modo de produção capitalista pressupõe a liberdade do empregado como pré-requisito para a compra de sua força de trabalho. O sistema escravo, por outro lado, faz do próprio trabalhador uma mercadoria que é comprada e vendida. Mas não é certo, sugere Marx, que essa oposição evidencie o essencial.

O que a imagem do “alicerce” indica, de fato, é uma relação de tipo estrutural: a escravidão moderna “carrega”, de certa forma, os salários industriais; constitui o apoio, ou a fundação. Essa expressão não se refere apenas, acreditamos, à gênese histórica do capitalismo na era mercantilista, durante os séculos XVII e XVIII. Designa uma relação íntima que leva a escravidão e o capitalismo a trabalhar no mesmo movimento: tudo acontece como se a escravidão, através dos mecanismos de acumulação primitiva, tivesse criado as condições para o desenvolvimento capitalista; e como se este último, por sua vez, contribuísse para endurecer a exploração do trabalho escravo, submetendo-o à lei descarada do lucro. O que Marx destaca é esse movimento duplo e essa interação recíproca. A acumulação de lucro e a escravização do trabalhador, nesse sentido, parecem ser os dois lados do mesmo processo: a extorsão ilimitada do trabalho excedente, sistematicamente perseguida em favor da transformação do próprio trabalhador numa simples mercadoria.

Tanto quanto a escravidão dos negros nas colônias, a exploração do proletariado de ambos os sexos não conhece limites, a não ser, objetivamente, a resistência física. Mas ainda assim isso pode ser contornado: pela substituição acelerada de trabalhadores, tomados como unidades intercambiáveis simples, cuja capacidade produtiva é esgotada o mais rápido possível, a fim de maximizar o retorno; porque a “vida útil” do trabalhador, de tal maneira importa menos do que sua produtividade. A escravidão moderna a que Marx chama nossa atenção corresponde, portanto, a um estágio decisivo no desenvolvimento capitalista, cuja natureza ele contribui simultaneamente para revelar: a fase de acumulação frenética inerente à primeira revolução industrial. Se foi acompanhada pelas formas mais ferozes de exploração ,é precisamente porque visava a extração de uma quantidade máxima de capital-dinheiro destinado a ser imediatamente reinvestido, gerando o processo interminável de uma acumulação que não tem outro horizonte senão sua própria perpetuação.

A invenção do homem-mercadoria

Mas se a escravidão moderna possui limites históricos e se o momento de seu apogeu coincide com um estágio determinado de desenvolvimento capitalista, podemos, no entanto, inscrever o fenômeno da escravidão no registro de uma determinada época, e cujas condições jamais poderão ser reproduzidas? A busca obstinada pelo lucro e a busca obsessiva de sua maximização, pelo contrário, não derivam de uma essência da esfera de mercado que se mostra indiferente às circunstâncias de tempo e lugar? É isso que Marx nos sugere quando descobre, no cerne da escravidão antiga, a dinâmica subjacente das relações de mercado. Ele então aplicou à Antiguidade um tipo de análise que não está longe desta que se descreveu mais acima, aplicada à escravidão nos cultivos de algodão nos Estados Unidos. Destaca o paradoxo de uma “mercantilização” das relações sociais que antecipava, muito à distância, o nascimento do capitalismo moderno. Como Jean-Pierre Vernant observou, vários textos de Marx enfatizam que a extensão da escravidão mercantil nas civilizações antigas prejudicou as formas tradicionais de vida cívica; que começou e acabou por arruinar as formas de propriedade características da polis grega. “A pequena produção e o exercício independente dos ofícios”, lemos n’“O Capital”, “formam a base da comunidade tradicional em seu apogeu, à medida que a propriedade comum de origem oriental foi se dissolvendo e a escravidão assumindo a produção.”(18).

Se o mundo antigo também conheceu a invasão das relações sociais por uma escravidão que era unida à dinâmica do mercado, é porque essa forma de exploração não é prerrogativa da modernidade (e das formas que ela assumiu: a servidão nesse passado distante não era menos “excessiva” e “terrível”, como vimos, do que as do presente); é que o processo de escravização do homem pelo homem é inseparável de um regime de acumulação enraizado na dominação das relações mercantis, na dinâmica de um mercado sujeito a um conjunto de atividades de substituição de valor de uso por valor de troca, e que constitui, reconhecidamente, a essência do modo de produção capitalista, do qual a Antiguidade greco-romana foi, à sua maneira, um distante prenúncio. Além disso, o uso metafórico do termo escravidão, cuja frequência foi enfatizada n’“O Capital”, tem um significado mais profundo do que parece à primeira vista: não são os trabalhadores nas fábricas mecanizadas, tal como os trabalhadores exauridos nas plantações, igualmente escravos do capital? A exploração do trabalhador assalariado reduzida à venda de sua força de trabalho a um preço baixo, ou a exploração do escravo comprado por seu senhor como gado: a mesma lei implacável que governa as relações mercantis gera o processo que Gyorgy Lukács mais tarde designará pelo termo de “reificação”; nunca deixa de transformar a própria pessoa do trabalhador em um simples instrumento; seu corolário é a invenção incessante do homem-mercadoria.

Assim, a teoria da escravidão, em Marx, escapa à tentação de uma leitura linear da história: se é verdade que a escravidão é inseparável da exploração capitalista, isto é assim porque a sequência de modos de produção não é puramente diacrônica, mas amplamente sincrônica. Longe de se sucederem ao longo do tempo sob a influência de algum determinismo, a escravidão, a servidão e o trabalho assalariado são integrados em uma combinação complexa, que é o próprio modo de sua coexistência. Cada formação social determinada historicamente empresta suas características, em proporções variadas, de um ou outro desses modos de extorsão do trabalho excedente, mas sem nenhuma ordem lógica que dite a série cronológica de suas aparências. Certamente, entre a escravidão antiga, o feudalismo medieval e o capitalismo moderno, de fato, há uma ordem de sucessão cronológica; na escala da história ocidental, e desconsiderando a relação entre o Ocidente e sua periferia, essa diacronia não é de modo algum desprovida de significado.

Essa confusão abusiva com a história universal, por outro lado, esconde de nós o ressurgimento maciço da escravidão que acompanha não apenas o alvorecer do capitalismo, mas também o momento em que a revolução industrial o leva a conquistar o mundo. Esconde do nosso entendimento o fato indiscutível de que várias formas de escravidão sempre coincidiram, seja qual for a época, com o crescimento acelerado da esfera comercial; que o Oriente Médio muçulmano durante sua idade de ouro, o mundo greco-romano desde a idade das cidades até o fim do Império, ou o Ocidente cristão desde o Renascimento até a Guerra Civil, construíram sua hegemonia em uma exploração metódica de recursos externos, incansavelmente retirados do reservatório humano cuja vulnerabilidade das sociedades periféricas lhes ofereceu a tentação. O que Marx descobriu em O Capital, é o que poderíamos chamar de consubstancialidade do capitalismo e da escravidão; por trás da diversidade de suas formas, ele pôde perceber a profunda unidade da servidão moderna; ele viu, na “escravidão direta” dos negros, a verdade da “escravidão indireta” dos proletários europeus; longe de estabelecer a oposição do trabalho livre e escravo como um símbolo da modernidade, ele detectou a manifestação de sua hipocrisia ali, porque a aparente heterogeneidade dos estatutos não o cegou aos mecanismos implementados sob o império do valor de troca; em resumo, ele viu na intensificação das relações de mercado a verdadeira origem de um domínio do homem sobre o homem que não conhecia fronteiras nem diferenças temporais; ao fazer isso, ele construiu uma teoria da escravidão cujo conhecimento é precioso para nós, numa época em que a globalização liberal está dando à luz formas contemporâneas de servidão; e ele derrotou, ao mesmo tempo, o falso prestígio do postulado agora dominante, segundo o qual a liberdade e o mercado são inseparáveis, destruindo antecipadamente a tola pretensão do liberalismo contemporâneo de incorporar a ultima ratio da História.

(*) Bruno Guigue é analista político, professor de Filosofia e Relações Internacionais.

Notas:

(10) Ibid., p. 199.
(11) Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme, T. 3, Le temps du monde, Librairie Armand Colin, 1979, p. 493.
(12) Karl Marx, op. cit., p. 199.
(13) Fernand Braudel, op. cit., p. 488.
(14) Olivier Pétré-Grenouilleau, L’argent de la traite, Milieu négrier, capitalisme et développement: un modèle, Aubier, 1996.
(15) Philippe Paraire, “Economie servile et capitalisme: un bilan quantifiable”, in Le livre noir du capitalisme, Le Temps des Cerises, 1998, p. 30.
(16) Jean Meyer, Esclaves et négriers, Gallimard, 1998, p. 113.
(17) Karl Marx, op. cit., p. 204.
(18) Jean-Pierre Vernant, «La lutte des classes», in Mythe et société en Grèce ancienne, Maspéro, 1974, p. 12. 
(b) Colônias francesas do Caribe (Martinica, Guadalupe, Santo Domingo, entre outras) dedicadas à exportação de açúcar.
(c) https://pt.wikipedia.org/wiki/Monarquia_de_Julho

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