Como era esperado, o povo chileno aprovou no último domingo (25), em uma votação histórica, a elaboração de uma nova Constituição para o país, a ser redigida por constituintes eleitos especificamente com esse fim. 78,2% votaram a favor de sua redação, e 78,9% votaram para que a chamada “Convenção Constitucional” a redigisse (a outra opção, a Convenção Mista, na qual metade dos representantes constituintes seriam políticos já eleitos, foi preferida por 21%).
Realizada exatamente um ano após a Marcha Más Grande, quando 3 milhões de chilenos saíram às ruas, a votação de domingo foi altamente simbólica. Mas o que a tornou possível, ao contrário, foi precisamente a dureza e resolução combativa que os chilenos tiveram nos seus mais de 30 dias de rebeldia.
Sebastián Piñera, o presidente que decretou guerra contra seu povo, se viu obrigado a realizar o Plebiscito, depois de adotar uma postura agressiva porém desesperada frente às manifestações, que, sendo bem aproveitada por seu inimigo – o povo -, levou-o à posição de ter de conceder continuamente.
É preciso constatar, portanto, que a possibilidade de votar para encerrar a Constituição pinochetista, arrastada desde 1980, é uma vitória do povo chileno arrancada à força, pela mobilização intransigente e combativa contra carabineros e milicos; a vitória está mais na realização do Plebiscito em si do que necessariamente em seus resultados. É um processo que nos dá lições não só da necessidade da firmeza no combate e mobilização, mas que também ensina que tais atributos podem fazer frente à previsível reação repressiva das classes dominantes – no caso chileno, manifestada em 8,8 mil detidos, 3,4 mil pessoas hospitalizadas e ao menos 34 mortos, além de toques de recolher e estados de emergência que puseram Santiago efetivamente sob controle militar.
Este é o processo constituinte que deve ser antes de tudo comemorado: aquele que traçou as primeiras linhas fumacentas no céu de Santiago, que redigiu a pedradas artigos sobre as Forças Armadas, que compôs direitos a partir de canções. É da situação Constituinte real que nasce o processo Constituinte formal aprovado no domingo. No entanto, é por meio deste último que se tentará enterrar a primeira.
A eleição de 155 membros para a Convenção Constitucional deve ocorrer em abril de 2021. A redação da nova Constituição será feita em um prazo de nove meses, prorrogável por mais três meses, e para que o texto seja aprovado deverá ter ⅔ dos votos da Convenção, além de ser ratificado posteriormente em Plebiscito. Caso isso não ocorra no prazo, a atual Constituição permanecerá vigente. Inicia-se portanto uma corrida e uma disputa para abril de 2021, na qual os defensores do neoliberalismo chileno, razão principal para os protestos de 2019, tentarão a qualquer custo eleger ⅓ da Convenção. Se tiverem êxito, efetivamente terão controle suficiente para barrar uma mudança Constitucional (o que seria uma postura bastante atrevida, um erro que poderia fazer estalar no Chile uma insurreição mais definitiva) ou, o que é mais provável, garantir um texto em que tudo muda para que nada mude. A Constituinte das ruas deve se deslocar, ao menos até o próximo abril, para a disputa de votos pela Constituinte formal, o que ao mesmo tempo dá um respiro ao neoliberalismo chileno e amplia seu espaço de manobra pela sobrevivência. O resultado desse processo eleitoral já impõe uma variável a um processo político que, até o momento, vinha sendo capitaneado e vencido continuamente pelo povo chileno.
Seja como for, a variável fundamental continuará sendo a capacidade ou não de seguir as mobilizações com o mesmo espírito combativo – é a partir dali que serão impostas derrotas ao neoliberalismo chileno, que tentará se preservar na Convenção.
Há além disso a indelével “carta no coturno”, que também se impõe como variável estratégica no Chile, podendo ser usada num momento de infortúnio das elites.
Por ora, o povo chileno impôs sua primeira vitória, com impacto sobre a luta dos povos em todo o continente: primeiro pela instabilidade enfrentada em mais da metade do território da costa do Pacífico, via natural da influência norte-americana sobre o continente (junto da “via andina”); segundo, ao colocar o “exemplar” neoliberalismo chileno em seu devido lugar – como exemplo da destruição dos povos e instigador de sua revolta; e por fim, por forçá-lo a se voltar aos seus problemas internos (o que atualmente enfraquece a posição do imperialismo tanto na Bolívia quanto na Venezuela, apesar de servir também de estímulo para ataques contra os países, na medida em que representa uma situação desesperadora). Para que a vitória se consolide, para que “o dia que já vem vindo” venha de fato e as contas feitas sejam cobradas, é necessário que as lições do Chile sobre a guerra e o direito de viver em paz estejam frescas na cabeça dos chilenos; que as promessas de concessões não os iludam quanto ao fato de que é tão necessário quanto possível arrancá-las.