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A batalha até o segundo turno

A batalha para derrotar Bolsonaro nas urnas no segundo turno das eleições não está perdida; mas, para vencê-la, há de se batalhar de fato.

(Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula)

Passado o primeiro turno das eleições, a batalha que a candidatura Lula passa a enfrentar – e, também, o problema que o Brasil enfrenta – não é decorrente do fato de terem faltado um punhado de votos para que sua chapa fosse eleita no primeiro turno, como previa a desesperada campanha pelo “voto útil”. O problema é que, ao contrário do que previam as pesquisas eleitorais, Bolsonaro se mostrou um candidato viável à reeleição.

Os resultados de Lula no primeiro turno foram condizentes com o que vinham apontando as pesquisas: 46% a 51% dos votos. Ao final da apuração, terminou com 48,43%, ou 57,2 milhões de votos. Bolsonaro, no entanto, chegou a 43,2% (51 milhões) dos votos, quando as pesquisas apontavam algo entre 33% e 38%. Isso é, a base de massas de Bolsonaro, mais do que relevante a ponto de se manter ativa e organizada no futuro, mesmo com uma eventual vitória de Lula, é hoje suficiente para tornar factível uma reeleição do presidente.

Compreender a razão por que Bolsonaro conservou sua viabilidade é fundamental para orientar os passos de agora em diante, até o segundo turno, e se proteger dos riscos que as próximas quatro semanas nos colocam. Poderíamos apontar várias causas de longa e média duração: o abandono da disputa das bases populares e de sua organização; a ausência de uma regulação da imprensa; a manutenção da pauperização intelectual do povo, que inclui não só a destruição da educação pública, mas também o abandono de sua conscientização; a longa tradição brasileira de pactuar ao invés de combater, e de, para tanto, anistiar os inimigos; a imobilização dos movimentos populares durante os governos petistas; e por aí vão infindáveis etcéteras. Mas as únicas razões que importam hoje são aquelas que podem ser alteradas até o segundo turno.

A ausência de um enfrentamento consistente a Bolsonaro durante todo o seu governo é a primeira e principal razão. Foi uma escolha, um cálculo, que partia da premissa de que o presidente estaria suficientemente enfraquecido para não ter chances em outubro. Essa ausência foi especialmente clara na desmobilização ativa dos atos de rua no contexto da pandemia. Ao invés de combater o inimigo com decisão, quando este estava enfraquecido, se optou por esperar para enfrentá-lo somente no contexto eleitoral, para que não se corresse o risco de, com a queda de popularidade de Bolsonaro, abrir-se o caminho para uma terceira via: era preciso só “desgastar” o presidente, não combatê-lo até às últimas consequências. Na prática, o governo Bolsonaro passou os últimos quatro anos sem enfrentar uma oposição merecedora de tal nome. Se apostou em Bolsonaro como o adversário perfeito, porque suficientemente fraco para garantir a vitória – talvez até em primeiro turno. Como os resultados de ontem deixam claro, não foi o caso, e a tergiversação no enfrentamento ao presidente lhe permitiu se recuperar, justificar suas falhas e “amaciar” as objeções que boa parte do eleitorado lhe fazia ou deveria fazer.

A essa inconsistência no combate se somou a obsessão frente-amplista. A lógica era a de que, com um presidente tão enfraquecido, restava trazer, em apoio à chapa petista, todos aqueles que poderiam conformar uma terceira via. Nesse vácuo de alternativas, todos beijariam a cruz da chapa Lula-Alckmin, porque optar por Bolsonaro seria optar pela derrota. Neste sentido, a frente ampla funcionou, mas a partir de agora, quando Bolsonaro não é mais sinônimo de derrota, não funcionará. Aqueles setores do empresariado que se aproximaram de Lula no primeiro turno não têm mais, necessariamente, razões para apoiá-lo: Bolsonaro, que não lhes foi nada mal no governo, é viável nas eleições. Ocorre que a campanha petista jogou muito peso, no primeiro turno, nestas conversas com “o mercado” – aquela entidade que não tinha nenhuma razão, a priori, para escolher Lula –, em detrimento de apresentar-se para aqueles a quem o governo Bolsonaro de fato foi um inferno. Agora, a tendência é que as classes dominantes exijam mais de Lula, ao passo que uma parte considerável migra o apoio para Bolsonaro. Aqui está a arapuca na qual se meteu a chapa petista: precisa do povo, mas já de antemão, antes do primeiro turno, no furor frente-amplista, decidiu leiloar tudo aquilo que lhe importava verdadeiramente para se aproximar destes que, verdadeiramente, não se importam com nada – a não ser, é claro, com seus lucros.

Completando a desmobilização popular e a insana sede de aproximação com os ricos, veio uma campanha que, de fato, não apresentou um programa. Foi o próprio Lula quem disse, em diferentes ocasiões, que “não precisa fazer promessas”, porque já tem um legado para mostrar. Isso tudo conformou a amorfia da chapa petista, que até aqui parece – e de fato buscou parecer – a campanha por excelência do centro, representante de todo o sistema político e econômico contra o anômalo Bolsonaro. A insistência em “moderar o discurso” para se aproximar do empresariado tornou a campanha de Lula coisa quase indistinguível de todo o resto, deixando o campo aberto para Bolsonaro, mais uma vez, aparecer como o representante único da conduta radical. 

Em resumo, ao invés de apresentar um programa e focar-se em fustigar Bolsonaro, o “no meu tempo era melhor” e a campanha tresloucada pelo voto útil. Em lugar de disputar a consciência do povo, a disputa desesperada somente por votos e alianças. Estes são alguns dos fatores que explicam a resiliência dos votos de Bolsonaro.

Pesados estes graves erros, que devem ser corrigidos desde já sob pena de Bolsonaro ser reeleito, deve-se notar que as coisas estão longe de estarem perdidas. Não é um resultado ruim ter 48,4% dos votos contra um presidente em busca da reeleição, ainda mais quando a este presidente é permitido cometer mil ilegalidades para conquistar votos – a “PEC Kamikaze” é um exemplo entre muitos. Os votos de Simone Tebet (4,1%) e Ciro Gomes (3%), são mais do que suficientes para eleger Lula em 30 de outubro, mas também são exatamente os necessários para que Bolsonaro derrote o petista. Embora dificilmente a transferência de seus eleitores para Lula ocorra facilmente, os candidatos, se consequentes, deveriam sinalizar seu apoio imediatamente ao ex-presidente. Afinal, ambos buscaram, ao longo de toda campanha, esclarecer que Bolsonaro era uma ameaça inigualável, afastando as acusações de que colaboravam com o presidente. Há, ainda, as abstenções, de 20,95%, e os brancos e nulos, que somaram 4,4% no primeiro turno. Para convencer estes eleitores a votar – como Bolsonaro sem dúvidas buscará fazer – a campanha petista deverá enfrentar o atual mandatário de frente, rememorando suas transgressões e disparates, mas também explicando as razões da atual tragédia econômica, o que impõe a necessidade de apresentar propostas claras e distinguíveis nesse campo.

Por fim, a possibilidade de uma tentativa golpista, se mais ou menos afastada nas últimas semanas, volta ao horizonte. Não porque, como buscou insistir a campanha pelo “voto útil”, haverá segundo turno; mas precisamente porque, com Bolsonaro eleitoralmente viável, setores importantes das classes dominantes, que por pragmatismo se uniram ao petismo e à defesa nominal da democracia, agora podem apostar em ajudar Bolsonaro a conseguir os 7% necessários para uma reeleição. Falhando nisso, e com uma votação apertada, se o atual mandatário e seu círculo fardado apostarem no caos, os democráticos empresários e embaixadores estrangeiros com os quais o PT optou por compor – bem como boa parte da burocracia –, assistirão parados, esperando para ver quem sairá vencedor e quem sairá vencido. Para se prevenir quanto a isso, como temos insistido, há de se deixar de lado as composições que desestimulam o golpismo e apostar nas mobilizações que o barram; há de pôr medo no inimigo, não dissuadi-lo.

A campanha petista terá de abandonar a amorfia que a tem caracterizado, fazer escolhas. Ou buscar agradar o mercado, ou buscar representar o povo, continuamente empobrecido nos últimos anos. Apresentar um programa consistente e popular ou o esconder sob o manto da cervejinha e da picanha. Decidir pela clareza e o combate, ou pela moderação e o imobilismo. A batalha não está perdida, mas há de se batalhar de fato para vencê-la.

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