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Nações e sovietes: a questão nacional na URSS

Apesar das teses nacionalistas que testemunhamos hoje com a guerra na Ucrânia, a história demonstra que a URSS impulsionou uma política excepcionalmente progressista sobre as nacionalidades.
Apesar das teses nacionalistas que testemunhamos hoje com a guerra na Ucrânia, a história demonstra que a URSS impulsionou uma política excepcionalmente progressista sobre as nacionalidades. Por Eugene Puryear | Liberation News – Tradução por Marcella Torres para a Revista Opera

O passado, como dizem, nunca é verdadeiramente passado. Nos últimos meses, a política de nacionalidade soviética, um tema que muitos pensaram estar consignado a discussões acadêmicas e conversas de bar entre comunistas, foi impulsionado para o primeiro plano do debate público. A guerra na Ucrânia trouxe à tona questões sobre as fronteiras, idiomas e etnias do país. Como chegaram a esse ponto, quem é o responsável e como essas questões impactam as causas e consequências da crise atual?

A discussão, no entanto, tem sido uma espécie de duelo de nacionalismos. Em resposta ao nacionalismo ucraniano de extrema-direita, o presidente russo, Vladimir Putin, expressou suas próprias visões nacionalistas, culpando os bolcheviques por preparar o terreno para as tensões entre a Rússia e a Ucrânia hoje.

Tomando estes dois tipos de posições, podemos ser levados a acreditar que a União Soviética era uma espécie de império venal e brutal que mantinha cativas as justas aspirações de suas várias nacionalidades e etnias, manipulando “fronteiras nacionais” para gerar nações falsas e uma falsa consciência nacional. 

A verdade está distante das histórias contadas pelos nacionalistas ucranianos e por Putin. A União Soviética foi a tentativa mais avançada de abordar a opressão nacional, o racismo e a discriminação em nível nacional. Entre muitas outras coisas, a URSS foi a primeira nação a se engajar em ações afirmativas generalizadas em níveis que nenhum país antes ou depois alcançou.

Os soviéticos colocaram centenas de nacionalidades sob uma autoridade governamental que assumiu as questões do atraso econômico e da repressão cultural para criar um futuro libertador para povos que passaram séculos sob o jugo das ambições imperiais dos czares.

Na verdade, a profundidade da tragédia que aflige a Europa Oriental agora só pode ser totalmente compreendida à luz do esforço soviético de décadas para acabar com o antagonismo nacional e forjar um futuro baseado na unidade dos trabalhadores e dos pobres para seu benefício coletivo e da humanidade.

A prisão das nacionalidades

O império czarista era conhecido, em certos círculos, como “a prisão das nacionalidades”. Do século 11 ao 19, diversos czares, de Ivan “o Terrível”, a Catarina e Pedro, “os Grandes”, assumiram o controle de um vasto território que se estendia do Pacífico à Europa Central e do Círculo Polar Ártico ao Mar Negro e às estepes da Ásia Central. Sob suas bandeiras caíram cerca de 200 nacionalidades e etnias, e uma verdadeira Torre de Babel de idiomas.

Em todas as nações, a exploração e a desigualdade eram desenfreadas. Noventa por cento dos povos não-russos em todo o império eram analfabetos – 75% dos russos estavam na mesma situação. Em um esforço para criar uma estratégia bem-sucedida de dividir para governar, a autocracia czarista reservou o ensino superior para o grupo mais privilegiado de russos, o que significa que a maioria dos médicos, professores e outros profissionais nas regiões de nacionalidades oprimidas eram quase exclusivamente russos. Na Bashkiria, aninhada entre o Volga e os Urais, apenas dez dos mais de quatro mil alunos do ensino médio eram bashkirs. Nas grandes cidades, as nacionalidades oprimidas ocupavam as fileiras dos trabalhadores com salários mais baixos. Já foi dito que todos os lustradores de sapato em Moscou eram da região do Cáucaso e que um terço de todos os tártaros eram faxineiros, carregadores e catadores de trapos [1].

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Os czares usavam concessões de terras e colonização nas terras de nações oprimidas pelos russos como parte de um esforço mais amplo de “russificação” projetado para eliminar línguas e culturas nacionais. Por exemplo, os carélios falam uma língua próxima ao finlandês, mas vender uma bíblia em finlandês era punível com o exílio e as crianças em idade escolar eram proibidas de falar carélio. Os governantes profundamente anti-semitas implantaram um regime de terror no estilo Ku Klux Klan contra os judeus, conhecidos como Centúrias Negras, cujas violências assassinas eram tão notórias que o termo “pogrom” se tornou conhecido em todo o mundo. Os guetos eram a norma em muitas das cidades e vilas à medida que várias nacionalidades eram deslocadas para os enclaves capitalistas em desenvolvimento da Rússia.

A oposição ao casamento entre pessoas de diferentes etnias e religiões também acompanhava o racismo e a intolerância oficiais. Além disso, os czares não hesitavam em incitar diversas nacionalidades a lutar entre si por terras e oportunidades econômicas. A opressão nacional, portanto, era também multifacetada, com alguns grupos étnicos oprimindo outros, ao mesmo tempo em que se enfrentavam com o grande chauvinismo russo.

Isso criou uma cultura de oposição única, particularmente entre os comunistas. Havia nacionalistas radicais, representando o desejo das elites nacionais pela supremacia econômica em seu próprio território, conectando “libertação” à independência formal. Havia socialistas que acreditavam que os antagonismos nacionalistas eram de importância secundária, enfatizando a unidade de todos os trabalhadores contra a classe dominante czarista. Havia outros tipos de socialistas e comunistas que acreditavam que os radicais deveriam se organizar com base na nacionalidade e, por extensão, em federações de nacionalidades. E, então, havia os bolcheviques, que pregavam a unidade multinacional de trabalhadores e camponeses contra o czar e os capitalistas e latifundiários dominantes, ao mesmo tempo em que colocavam amplo foco na oposição militante a todas as formas de opressão e intolerância nacional.

Sua abordagem geral estava enraizada na compreensão da opressão nacional como resultado do capitalismo e do imperialismo. O processo dos czares de devorar nações estava ligado à fome por terra, recursos e trabalho para aumentar suas riquezas e competir com outras forças imperiais que buscavam o mesmo.

Sua principal conclusão foi que nunca seria possível construir uma coalizão dos oprimidos e explorados e derrubar os governantes sem enfatizar que a verdadeira libertação exigia a destruição total da opressão nacional e a substituição do capitalismo. Como tal, uma parte importante do programa bolchevique era “o direito das nações à autodeterminação”. Embora enfatizassem, como os comunistas sempre fizeram, que o socialismo e o comunismo exigem uma unidade multinacional que transcenda as fronteiras nacionais estabelecidas por capitalistas rivais, eles afirmaram que seu compromisso com a libertação nacional era tal que, se a secessão fosse o que era necessário para que os oprimidos se sentissem livres, eles iriam apoiá-la. Esses seriam os princípios básicos que ajudariam a levá-los ao poder e forneceriam a base para a abordagem soviética sobre a questão das nacionalidades.

Amanhecer de uma nova era

Após a revolução de 1917, enfrentar a opressão nacional foi um dos muitos desafios profundamente complexos enfrentados: acabar com a participação na Primeira Guerra Mundial, alimentar a população faminta e redistribuir as grandes propriedades entre os camponeses. Tudo isso acontecia em um contexto de extrema hostilidade imperialista. 14 nações capitalistas enviaram tropas para tentar, como Winston Churchill diria mais tarde, “estrangular o bolchevismo em seu nascedouro”. As mesmas nações também enviaram armas, ouro e outros equipamentos de guerra para todo e qualquer aspirante a governante – desde que ele odiasse o comunismo.

Isso imediatamente criou um novo conjunto de questões no que se refere às nacionalidades, principalmente (como os bolcheviques haviam notado há muito tempo) que a luta nacional e a luta de classes estavam entrelaçadas. Isso significou que a questão das nacionalidades rapidamente se tornou uma arma nas mãos de várias forças que procuravam derrubar o poder soviético.

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Para complicar ainda mais as coisas, o conglomerado de etnias e povos, emergindo do mundo pré-capitalista, raramente tinha uma história clara de “fronteiras nacionais”. Isso significa que as lutas desencadeadas pela revolução de 1917 eram tanto sobre definir (e debater) as relações entre língua, cultura, religião e território quanto sobre resolvê-las. Muitas lutas pela “libertação nacional” no período pós-1917 também foram lutas sobre como uma determinada área deveria ser governada, e se isso seria melhor feito como estados formalmente independentes ou como parte de uma federação soviética mais ampla que unisse as várias nações em um projeto socialista.

Isso levou a um conjunto complexo de eventos que não podem ser completamente expostos aqui, mas que essencialmente se resumiram a divisões entre elementos de nações oprimidas que preferiram “seguir sozinhos” em aliança com poderes imperialistas e revivalistas czaristas, e aqueles que já faziam parte do movimento bolchevique ou eram atraídos por suas políticas “antirracistas” e pró-pobres. Na maioria dos casos, esses conflitos foram resolvidos pela força das armas.

Isso levou a uma série de lutas diferentes, entre nacionalistas e comunistas (na Ucrânia), comunistas e nacionalistas contra senhores feudais (em Bukhara), bolcheviques contra mencheviques (na Geórgia) e praticamente todas as outras combinações possíveis. No final, dezenas de milhões de povos não-russos anexaram suas terras natais à federação socialista mais ampla que foi a URSS.

Desde meados da década de 1920, a “forma” da URSS, até a Segunda Guerra Mundial, estava definida – a maior parte do que foi o império czarista, com exceção dos estados bálticos e elementos das repúblicas ocidentais que foram para vários impérios da Europa Central. A década seguinte seria um período de experimentação, seguido por uma consolidação do modelo geral que permaneceria pelo resto do período soviético.

Socialismo contra a opressão

Enfrentando o subdesenvolvimento, a falta de recursos e sem um roteiro definido, a liderança soviética ainda assim se empenhou para tentar enfrentar rapidamente os desafios postos por séculos de opressão nacional. A política soviética enfatizava o apoio a “formas nacionais” autodeterminadas que também eram calibradas para existir dentro do quadro mais amplo da construção socialista. Esse processo ocorreu sem contradições.

Um projeto socialista tem a tarefa de mobilizar os recursos da sociedade para atender às suas necessidades e desejos coletivos, determinados democraticamente. Mas, no contexto de um profundo subdesenvolvimento, quase tudo se torna um compromisso ou uma concessão. Você constrói uma ponte ou uma represa? E onde? Se a taxa de analfabetismo é alta, mas você só tem recursos para uma quantidade limitada de escolas, professores e livros, quem terá a prioridade? Em outras palavras, o dilema era equilibrar a melhoria geral do bem-estar coletivo e, ao mesmo tempo, pôr fim às disparidades entre as nações oprimidas – todas em níveis variados de desenvolvimento/subdesenvolvimento.

Nos anos de existência da União Soviética, essas questões nunca foram completamente resolvidas, mas os elementos centrais da abordagem soviética eram: a criação de territórios nacionais, a promoção de línguas e culturas nacionais e extensas políticas de ação afirmativa. O destaque para diversos aspectos dessas políticas variou ao longo do tempo e no espaço, mas em geral se manteve verdadeiro e refletiu os objetivos mais amplos da revolução de elevar o padrão de vida geral, ao mesmo tempo em que integrava significativamente as nacionalidades oprimidas, particularmente na intelligentsia científico-técnica.

Como um estudo de 1991 sobre o assunto observou, “o crescimento das oportunidades de mobilidade tem sido o mais alto entre as nacionalidades com os níveis mais baixos de realização socioeconômica.”

Por exemplo, em 1975, judeus, georgianos, armênios, estonianos e azerbaijanos eram os cinco principais grupos étnicos no grupo de “especialistas com educação superior”. Como o quadro abaixo demonstra, a equalização ao longo do tempo demonstra as prioridades soviéticas.

Taxa de emprego por grupos nacionais de 1959 a 1975.

Da mesma forma, em 1970, as seis principais nacionalidades em termos de matrículas no ensino superior eram: estonianos, georgianos, lituanos, letões, russos e cazaques. Na Ásia Central soviética, que havia sido possivelmente a parte mais subdesenvolvida do império czarista, em 1982 havia mais médicos por habitantes do que qualquer país não comunista, exceto Israel; e mais estudantes universitários por habitantes do que o Japão, além de uma proporção maior de mulheres [2]. No Ártico soviético, o primeiro sistema educacional real foi criado na década de 1930 e, em 1975, no Território Nacional de Chukchi, 99,1% de todas as crianças indígenas estavam matriculadas na escola até o ensino médio [3].

Em 1978, havia um médico indígena para cada 1.000 habitantes. No mesmo ano, nos Estados Unidos, havia apenas um médico indígena para cada 16.000 habitantes [4]. Na Moldávia, antes da Segunda Guerra Mundial, havia somente uma pessoa com doutorado — até o início dos anos 80, havia 2.200. Os moldavos aumentaram em 110% as ocupações profissionais e de nível técnico entre 1959 e 1973 [5]. De forma semelhante, de 1950 a 1975, nas 14 repúblicas não russas da União (como Cazaquistão, Geórgia etc.), o crescimento anual de trabalhadores científicos foi 54% maior do que entre os russos.

As três maiores nacionalidades da URSS eram — por uma margem significativa — os russos, ucranianos e bielorrussos. Na década de 1960, todos os três estavam sub-representados no Soviete Supremo – o principal órgão legislativo nacional –, enquanto uzbeques, georgianos, tadjiques, azeris, armênios, quirguizes, turcomanos, letões, estonianos, lituanos e komis, entre outros, estavam todos super-representados.

Uma análise do orçamento soviético de 1989 observou que a política do governo tendia ao princípio redistributivo, relatando que em 1989 o orçamento “transfere fundos de repúblicas mais desenvolvidas para repúblicas menos desenvolvidas” e, ainda que “repúblicas menos desenvolvidas receberam taxas mais elevadas de investimento do que seu nível de desenvolvimento econômico preveria. E os gastos per capita em programas de saúde e educação foram relativamente iguais entre as repúblicas.”

Em 1920, o Azerbaijão importava quase todos os produtos, exceto petróleo. Em 1958, ele exportava 120 produtos industriais diferentes e produzia per capita mais eletricidade do que a Itália e a França, mais aço do que o Japão e a Itália, além de pescar mais peixes do que a França.

Além disso, a legislatura nacional tinha dois níveis. Além do Soviete Supremo, havia também o Soviete das Nacionalidades, que precisava aprovar toda a legislação para que ela se tornasse lei. Mesmo que esse órgão tenha sido meramente “um escritório de carimbar”, como muitas vezes se alega, o sentido geral da política de nacionalidades reflete claramente que a própria existência de múltiplas camadas de ações afirmativas, acesso linguístico e ascensão social reflete o fato de que estavam carimbando políticas relativamente antirracistas.

Um escritor relatou a história de um encontro, uma conversa com um professor do povo Gagauz da Moldávia (que contava com uma população de 125 mil por volta de 1977), cujo alfabeto escrito fora criado na época soviética. O professor observou:

“Temos artistas, temos compositores, temos nossos próprios poetas e escritores: aqueles que escrevem com base em temas folclóricos… E aqueles que coletam nosso folclore. Entre os estudiosos, temos linguistas e historiadores. A antropologia dos Gagauz está sendo estudada… em Moscou temos o camarada Guboglo.”

O escritor ainda relatou que:

“Admito que fiquei surpreso ao saber que Guboglo era gagauz; eu havia traduzido artigos dele para o inglês … então um dos principais antropólogos da União Soviética, um homem que teoriza sobre assuntos muito além dos limites de sua própria nacionalidade, é membro de um povo que não tinha sequer um alfabeto pouco mais de 20 anos atrás.” [6]

O mesmo autor observa: “No Daguestão, uma vastidão montanhosa soviética com apenas um milhão e meio de habitantes, a noroeste do Irã, as aulas na escola são ensinadas atualmente em nove línguas … Em toda a URSS, o ensino é feito em 52 idiomas distintos.” [7]

Em um esforço para enfrentar a russificação generalizada na Ucrânia, as autoridades soviéticas realizaram um esforço intenso de “ucranianização linguística” na década de 1920, no qual literalmente centenas de milhares de pessoas foram submetidas a cursos de ucraniano. Em 1923, 37% dos jornais eram em língua ucraniana; em 1928, eram 63%. 54% dos livros impressos na Ucrânia eram em ucraniano em 1928, enquanto em 1923 eram 31%. [8]

Em 1991, os soviéticos realizaram um referendo para decidir se o país seria dividido ou não. Notavelmente, na Rússia, a votação foi menor do que em todas as nações oprimidas onde o referendo ocorreu. Nas repúblicas da Ásia Central, por exemplo, mais de 90% votaram a favor da manutenção da União Soviética, em comparação com os 73% da Rússia. Notavelmente, as regiões nacionais dentro da república socialista russa tiveram percentuais pró-soviéticos mais altos do que a Rússia em geral, com 9 em 16 (mais de 80%) votando a favor da manutenção da URSS.

Outra forma de se analisar a questão é através da lente da memória histórica. Em 2013, o instituto de pesquisas Gallup entrevistou pessoas em algumas das ex-repúblicas soviéticas perguntando se elas sentiam que a dissolução da União causou mais danos do que benefícios ao seu país atual. A Armênia, o Quirguistão e a Ucrânia tiveram uma porcentagem maior daqueles que diziam que a dissolução causou mais danos do que benefícios do que a Rússia, com o Tajiquistão apenas 3% atrás da Rússia.

Em 2005, foi feita uma pesquisa no Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão, perguntando às pessoas se elas concordavam ou discordavam da afirmação: “O governo soviético respondeu às necessidades dos cidadãos”. 82,4% dos entrevistados no Cazaquistão concordaram que o governo soviético, de fato, respondia às necessidades dos cidadãos. 87% dos entrevistados no Quirguistão tiveram opinião semelhante, e 70,2% no Uzbequistão concordaram.

Em um artigo da Reuters de 2011, “A nostalgia soviética liga os estados divergentes da CEI (Comunidade dos Estados Independentes)”, uma dona de um salão de beleza de 46 anos do Quirguistão declarou à rede de notícias: “Talvez nossos salários não fossem tão bons e eu odiava a ‘Cortina de Ferro’ acima de tudo, mas havia estabilidade. Ali perto estavam as repúblicas fraternas, e você sentia o apoio de seus vizinhos.”

No mesmo artigo, Saijon Artykov, um geólogo aposentado de 67 anos, refletiu: “Tínhamos bons salários e comprei um apartamento em Dushanbe. Agora lutamos […] para sobreviver”. Disse ainda que: “A União Soviética me deu uma educação de primeira classe, pela qual eu não paguei.”

Divisões administrativas da União Soviética, 1989.

Mudanças desafiadoras

As várias contradições do modelo soviético tiveram um forte impacto na questão da nacionalidade. Particularmente perturbadores para os soviéticos eram as questões da terra, distribuição de recursos e idioma. Embora os “impulsos nacionais” fossem vistos como naturais, eles não eram vistos como inerentemente bons. Como socialistas, o Partido Comunista da União Soviética procurava construir uma sociedade “internacionalista” de acordo com os valores socialistas.

O marxismo postula que o nacionalismo é, em última análise, uma criação do capitalismo, a luta dos capitalistas em ascensão para criar um território consolidado e politicamente distinto para conduzir seu comércio. O processo de demarcação de fronteiras dentro do qual línguas, culturas e recursos naturais se combinam para criar sistemas de trabalho de compra e venda com “pesos e medidas” unificados (dinheiro, impostos, etc.) é o processo de “construção da nação”.

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O socialismo e, em última análise, o comunismo, buscam transcender o capitalismo, entre outras coisas, eliminando essas barreiras artificiais para facilitar o uso do “mercado mundial” profundamente interconectado para atender democraticamente às necessidades e desejos das pessoas – em vez de servir aos caprichos de lucros obtidos por um pequeno punhado de pessoas, como existe sob o capitalismo.

Os soviéticos então viram sua tarefa de acabar com a opressão nacional como uma ponte para um estado multinacional que incorporasse os princípios socialistas mais amplos. Isso significava ter imperativos essencialmente simultâneos de acabar com a opressão nacional, celebrar as culturas nacionais e situá-las dentro de uma nova cultura “união completa” baseada no desenvolvimento econômico coletivo da classe trabalhadora e do campesinato, que agora comandavam os recursos da sociedade.

No campo da língua, isso criou alguns desafios claros. A história brutal dos czares já havia feito do russo a língua comum para a população soviética em geral. No entanto, essa “russificação” foi imposta pela brutalidade da turbulência econômica czarista. Também veio com a concepção chauvinista de que a cultura russa representava uma “forma superior de civilização” – relacionada à cultura urbana moderna em que muitas pessoas da classe trabalhadora estavam integradas em algum grau. Isso era um problema de maior importância, dado que uma área em que a sociedade avançou após a revolução foi na abertura dos domínios culturais tradicionais para milhões que antes estavam excluídos disso por sua posição de classe.

Isso significava que, mesmo entre as nações oprimidas, poderia haver resistência a novas políticas linguísticas, principalmente entre os trabalhadores urbanos, que associavam as línguas nacionais à cultura rural e muitas vezes reacionária dos camponeses.

A URSS e os impérios anteriores cobriam um vasto território e, como mencionado anteriormente, os russos frequentemente recebiam concessões de terras para se estabelecerem entre diversos povos oprimidos. Essa política criou intencionalmente uma população favorecida de colonos que muitas vezes possuíam parcelas preferenciais de terra. Isso lançou as bases para conflitos agudos sobre quem pertencia legitimamente onde e quem detinha o poder político. Também levantou sérias questões sobre a terra como um recurso e, olhando para o futuro, quem tinha o direito de vetar quem vivia onde, se isso entrasse em conflito com as necessidades de desenvolvimento.

Uma questão que se estendeu para o ponto mais profundo de como distribuir recursos limitados foi o fato de que a União Soviética estava correndo para alcançar um nível de pelo menos paridade aproximada com o Ocidente em vários aspectos, como uma salvaguarda contra a invasão e a derrubada por esses mesmos poderes hostis. Esses se tornariam os pontos fracos da política de nacionalidades na URSS. Em última análise, todos eles foram resolvidos inclinando-se mais para o lado “ampla união”, do que para o lado “nacional”. Isso significou conciliar em certa medida com os elementos de “ampla união” existentes, que eram principalmente resquícios da semi-homogeneização forçada dos tempos do czar.

Em relação à língua, isso significava, em última análise, um recuo em relação aos esforços ambiciosos de exigir o uso de várias línguas nacionais, limitando-os mais ou menos ao que era mais viável: a educação elementar; atividades culturais nacionais, que foram expandidas e promovidas intensamente; e o incentivo à adoção voluntário. Isso significou que o russo permaneceu a língua dominante da União, mas também que línguas nacionais anteriormente reprimidas eram frequentemente utilizadas.

Isso obviamente representou um grande avanço em relação aos tempos do czarismo e levou a um florescimento mais pleno de muito mais idiomas do que jamais havia sido possível antes. No entanto, isso tendeu a significar que a cultura “russa” permaneceu dominante em certa medida, continuando a ser a principal língua na qual os assuntos sociais, econômicos e políticos cruciais da União Soviética eram conduzidos. Por exemplo, isso significava que seria mais fácil para Tchaikovsky se tornar popular no Tajiquistão do que uma ópera tadjique decolar em Moscou. Embora também significasse, ao mesmo tempo, uma expansão enorme para a ópera tadjique em Dushanbe.

De uma perspectiva territorial, em última análise, as realidades contextuais da URSS favoreceram um status quo menos modificado. Até 1927, os soviéticos fecharam vastas áreas territoriais, especialmente na Ásia central, para qualquer tipo de novo assentamento. No entanto, isso se tornou insustentável frente a questões relacionadas à alimentação, desenvolvimento econômico e segurança nacional.

A base para a soberania no mundo imperialista moderno é, em última análise, o controle sobre o que se come. Nações que não conseguem se alimentar estão sempre em grande desvantagem. Muitos territórios nacionais continham terras muito além do que poderia ser cultivado somente pelos que já estavam lá. E, mesmo em ambientes rurais mais densos, às vezes a terra mais produtiva era habitada por colonos. Além disso, os soviéticos, de forma vacilante e depois em uma marcha forçada, queriam mudar a estrutura da agricultura, afastando-se de grandes propriedades e pequenas fazendas atomizadas e substituindo-as por um setor cooperativo e coletivo. As exigências introduzidas por essas várias questões poderiam facilmente colidir.

Em primeiro lugar, se o nível geral de produção de alimentos para todo o país puder ser elevado tendo mais pessoas de X lugar em Y lugar, isso seria um imperativo estratégico – garantindo tanto o desenvolvimento quanto a distribuição equitativa –, que poderia acabar reforçando mudanças demográficas que favoreciam uma nacionalidade em detrimento de outra. Uma questão semelhante poderia surgir em casos como, por exemplo, o de uma área da Ucrânia que tinha uma população 45% etnicamente alemã, mas que controlava 75% da terra; se, durante a coletivização, os alemães adotassem políticas coletivas mais rapidamente, isso poderia significar que a posição dos alemães nas melhores terras continuaria. Na esteira da Segunda Guerra Mundial, a destruição total que a máquina de guerra nazista lançou contra a URSS significava que a única maneira de realmente reviver a produção era permitir o acesso a novas terras, o que, é claro, também poderia exacerbar tensões históricas.

Ou pode-se ter uma situação em que uma determinada população próxima a uma fronteira ou recurso natural chave, onde a trama imperialista representava um perigo especial para a segurança nacional mais ampla da URSS, exigia políticas especiais para garantir que essas questões não fossem exploradas.

Essas várias questões relacionadas ao uso da terra são a base de muitas das políticas mais brutais implementadas contra porções ou populações nacionais inteiras na era de Stalin. Os temas nacionalistas muitas vezes se tornaram pontos de convergência para várias queixas, especialmente quando se tratava de interesses de segurança nacional, o que por vezes resultou em punições coletivas como deportações em massa.

Sem dúvida, muitas dessas ações não têm justificativa, mas frequentemente são falsamente representadas como “anti-nacionais”, quando a questão da nacionalidade era realmente secundária. As pessoas foram visadas porque eram vistas como oposicionistas a um objetivo específico da liderança soviética.

No que se refere aos recursos, é verdade que, como alguns apontaram, nunca houve um mecanismo “oficial” para direcionar uma porcentagem específica de recursos nacionais para nações oprimidas. Por outro lado, muitas vezes havia impostos eventuais nos orçamentos anuais para tratar dessas questões, e como o registro geral mostra, a orientação geral da política soviética significava que o investimento nas diversas nações oprimidas muitas vezes era proporcionalmente igual ou maior do que o investimento na Rússia. De fato, é amplamente notado por estudiosos que a insatisfação entre os russos por estarem sendo prejudicados em comparação com várias nacionalidades foi um fator importante que impulsionou o sentimento anti-soviético.

Da mesma forma, a orientação geral em direção à igualdade paradoxalmente criou mais competição entre as elites nacionais recém-empoderadas pelos recursos ainda relativamente escassos da URSS. Ironicamente, então, o próprio sucesso dos soviéticos em diminuir a opressão nacional começou a criar novas tensões nacionais que contribuíram para o colapso soviético.

Rumo a um futuro socialista

Todas as diversas questões mencionadas aqui, é claro, merecem discussões mais profundas. No entanto, é possível tirar algumas conclusões gerais. Em primeiro lugar, a URSS embarcou na maior experiência que o mundo já conheceu para unir povos além das fronteiras nacionais para o progresso coletivo. Eles eliminaram os pogroms, permitiram que muitas línguas crescessem e florescessem, realmente investiram recursos na promoção das culturas nacionais e tornaram uma prioridade nacional colocar pessoas das nações anteriormente oprimidas em posições de influência e poder.

Em segundo lugar, eles fizeram isso no contexto de elevar os padrões de vida de todo o país muito acima do que tinham sido na época do czarismo, acima de todas as nações do mundo em desenvolvimento, e conseguiram alcançar uma paridade aproximada com as nações mais avançadas da Terra com uma rapidez impressionante.

Nesse contexto, a incapacidade dos soviéticos de eliminar totalmente o antagonismo nacional deve ser vista sob uma ótica diferente. Em última análise, quão provável era que eles tivessem sucesso nesse objetivo sem uma transformação mais ampla em nível mundial? Milhares de anos de opressão nacional vinculados às realidades materiais do desenvolvimento capitalista e da propriedade feudal da terra nunca seriam desfeitos no que, em última análise, foram apenas algumas décadas do ponto de vista histórico.

Além disso, no contexto de uma campanha massiva pela nação mais poderosa do mundo para destruir a URSS, como é possível que a URSS não experimentasse distorções impostas pela sua própria sobrevivência? Isso também afetaria elementos políticos, do social ao nacional.

Não apenas na política de nacionalidades, mas em praticamente tudo, desde os direitos das mulheres até os salários, a política soviética retrocedeu de políticas muitas vezes pioneiras (para o mundo todo) para consolidar um maior senso de unidade nacional em torno do projeto socialista, ou para resolver problemas práticos com métodos antigos quando a experimentação poderia arriscar perder mais do que seria ganho.

A guerra na Ucrânia confirma ainda mais o quão trágico foi o colapso da União Soviética, apesar de todos os seus desafios e problemas. O pluralismo nacional-cultural dos soviéticos deu lugar à agenda de soma zero dos nacionalistas orientados pelo capitalismo em todos os lados. Essas classes dominantes pós-soviéticas têm todas as razões para avançar reivindicações (e nem todas sem justificativa) que lhes dão território e, em última análise, o espaço para garantir seus lucros em um sentido comercial real ou em relação à integridade territorial.

Vinte e sete milhões de soviéticos de todas as nacionalidades morreram na Segunda Guerra Mundial. Apesar das vigorosas tentativas dos nazistas de usar a nacionalidade como uma arma anticomunista, eles falharam e a unidade socialista multinacional impulsionou a máquina de guerra soviética rumo à vitória – um agente funerário antirracista muito adequado para enterrar o nazismo.

Essa unidade socialista desmoronou numa barbárie capitalista, o que não deveria ser uma surpresa. De fato, é o que as forças comunistas genuínas na URSS sempre previram que aconteceria se o país entrasse em colapso. Agora, mais do que nunca, é importante lembrar o exemplo brilhante da União Soviética em confrontar o ódio, a intolerância e a xenofobia, enquanto procuramos novos caminhos para um futuro mais pacífico, sustentável e socialista.

Notas:
[1] – William Mandel, Soviet But Not Russian: The ‘Other’ People’s of the Soviet Union (Ramparts Press, 1985) pp. 40-42
[2] William Mandel, Soviet But Not Russian: The ‘Other’ People’s of the Soviet Union (Ramparts Press, 1985) p. 133
[3] – Ibid. p. 157
[4] – Ibid. p. 160
[5] – Ibid. p. 108
[6] – Ibid. p. 18
[7] – Ibid. pp. 22-23
[8] Terry Martin: Affirmative Action Empire: Nations and Nationalism in the Soviet Union, 1923–1939 (Cornell University Press, 2001) pp. 92-93

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