A imagem que simbolizou a chegada de Lula à presidência para seu terceiro mandato foi a do povo subindo a rampa no dia da posse. O sentimento mobilizado pela simbologia era a esperança. A promessa, a da volta do Brasil aos tempos em que o pobre cabia no orçamento ao lado dos lucros dos ricos, em que as relações internacionais do País se orientavam pela política “ativa e altiva”, em que o que prevalecia era a normalidade democrática e o respeito às instituições.
Menos de seis meses desde a posse, já está claro que esta tentativa de “reconstrução da Nova República”, como escrevi então, dificilmente ocorrerá. A última semana marcou uma verdadeira “guerra relâmpago” contra os interesses populares, com o apoio do governo.
O arcabouço
Primeiro, foi aprovado o arcabouço fiscal proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e alterado pelo relator Cláudio Cajado (PP-BA). O texto de Haddad, que já era ruim, se tornou ainda pior, ficando quase indistinguível do teto de gastos de Temer, que o ministro da Fazenda buscava substituir – a não ser, é óbvio, pelo fato de que o arcabouço fiscal de Haddad é realizável, enquanto o teto de gastos de Temer não era. Ao texto, que já cortava na carne os gastos e investimentos públicos em uma série de áreas, Cajado adicionou “gatilhos” caso o governo não cumpra a sua meta de resultado primário, que incluem a proibição de que o governo crie novos cargos que impliquem aumento de despesas, crie auxílios ou novas despesas obrigatórias, conceda benefícios tributários ou altere a estrutura de carreiras. Num segundo ano de descumprimento da meta, o governo ficaria proibido ainda de reajustar despesas com servidores, fazer contratação de pessoal ou abrir novos concursos públicos. O Bolsa Família também não poderia ter aumento real (acima da inflação). Além disso, Cajado colocou o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) e o piso nacional da enfermagem sob as regras do arcabouço, limitando esses gastos e colocando-os para concorrer com outros. Assim renasceu o teto de gastos de Temer no governo Lula.
A aprovação se deu com 367 votos a favor e 108 contra. As bancadas do PT, PCdoB, PDT, PSB, Avante, Cidadania, e Solidariedade votaram todas a favor do arcabouço. O MDB deu 32 votos favoráveis, de 35 deputados; o Patriota, 2, de 3 deputados; o Podemos 10, de 12 deputados; o PP 39, de 46 deputados; o PSC 3, de 4 deputados; o PSD 40, de 42 deputados; o PSDB 11, de 14 deputados; o PV 4, de 5 deputados; o Republicanos 34, de 39 deputados; o União Brasil 50, de 57 deputados, e o PL 30, de 90 deputados. As únicas bancadas que votaram em bloco contra o arcabouço foram as do Novo (3 deputados), PSOL (12 deputados) e Rede (1 deputado).
Um grupo de 23 parlamentares (22 do PT e 1 do PCdoB) que votou favoravelmente ao arcabouço lançou um documento dizendo fundamentalmente que a proposta não tem seu apoio, mas que votaram a favor por “lealdade” ao presidente Lula. O PSOL chegou a apresentar um destaque para retirar do texto os tais “gatilhos” de Cajado, que limitam ainda mais os gastos do governo em caso de descumprimento da meta de resultado primário. Com somente 20 votos a favor (12 do PSOL, 2 do PT, 2 do PL, 1 do PSD, 1 do União Brasil, 1 da Rede e 1 do Solidariedade), o destaque foi derrotado por amplíssima margem.
O PSOL apresentou um destaque pra tirar do texto do arcabouço fiscal os ataques que Cajado colocou aos servidores públicos, como proibição de concurso e de aumento em caso de não cumprimento de superávit primário por 2 anos. Sabe quantos votos tivemos? Só 20. Confere aí a lista: pic.twitter.com/uz4oFLtFmf
— Glauber Braga (@Glauber_Braga) May 24, 2023
É importante ressaltar que o Partido Liberal (PL) de Jair Bolsonaro foi a sigla que, ao lado do PSOL, mais votos deu contra o arcabouço (60, de 90 deputados). Ao contrário do PSOL, evidentemente, a bancada do PL não votou contra o arcabouço por razões ideológicas – o que é demonstrado pelo fato de somente 2 dos 20 votos no destaque do PSOL contra os “gatilhos” terem vindo do PL. O arcabouço de Haddad, afinal, está em pleno acordo com o tipo de política econômica que Guedes e Bolsonaro promoveram e em consonância com a “Ponte para o Futuro” que Temer construiu depois da queda de Dilma Rousseff. Assim, os 60 votos do PL contra o arcabouço não são mais do que declaração de guerra contra o governo, demonstração clara de boicote. No entanto, mesmo que toda a bancada do PL houvesse votado contra, o arcabouço ainda assim seria aprovado.
Os ministérios
Na última quarta-feira (24), a comissão mista sobre a Medida Provisória 1154/23 aprovou, por 15 votos a 3, o texto do relator, deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL), que altera a organização dos ministérios realizada pelo governo Lula logo após a posse. A proposta de organização agora segue para a Câmara dos Deputados e Senado. Caso não seja aprovada até o 1 de junho, a Medida Provisória de Lula que instituiu a atual organização dos ministérios deixa de valer.
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O texto de Isnaldo Bulhões esvazia o Ministério do Meio Ambiente (perda do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que foi para o Ministério da Gestão, e também a gerência sobre a Agência Nacional das Águas (ANA), que foi para o Ministério do Desenvolvimento Regional, dentre muitas outras) e o Ministério dos Povos Originários, que perdeu a demarcação de terras para o Ministério da Justiça. Retira também o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) do Ministério da Fazenda, o deixando sob a batuta do mesmo Banco Central que insiste em manter vigente a maior taxa básica de juros do planeta. E tira a política de preços agrícolas e garantia de preços mínimos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (Paulo Teixeira – PT) e a concede ao Ministério da Agricultura (Carlos Fávaro – PSD). Nestes aspectos, o texto de Isnaldo Bulhões estabelece, no governo Lula, uma estrutura condizente com o governo Bolsonaro.
Aspecto menos comentado, o relatório transfere a responsabilidade pela inteligência federal ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Isso abre caminho para que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) volte ao controle do GSI, tal como quer o atual chefe do Gabinete, general Marcos Antonio Amaro dos Santos. O presidente Lula havia transferido a ABIN para a Casa Civil em março passado, um mês antes da queda do então ministro do Gabinete, general Gonçalves Dias. É relevante lembrar que a coordenação de atividades de inteligência federal pelo Gabinete de Segurança Institucional e a subordinação da ABIN como “estrutura básica” do Gabinete foi estabelecida por Temer. Alguns meses antes, a presidenta Dilma Rousseff havia fechado o GSI.
O sequestro e os reféns
Em resumo, na última semana o governo Lula viu a aprovação não do texto original de Haddad, que já seguia as premissas do teto de gastos de Temer, mas de um ainda pior, ainda mais restritivo aos gastos e investimentos do governo. Assistiu ainda aos ruralistas “passando a boiada” e tratorando sua estrutura ministerial, com a comissão mista enfraquecendo ainda o próprio Ministério da Fazenda (retirada do COAF) e Casa Civil (retirada da ABIN). Tudo isso com o voto e apoio do governo e de seus parlamentares, que chegaram a considerar a aprovação da MP dos ministérios uma “vitória”.
Há quem diga que, com a atual configuração do Congresso, não haveria como ser diferente. Ocorre que o governo não moveu esforços, antes, durante, ou mesmo depois da aprovação de tais medidas, para mobilizar uma alternativa. No caso do arcabouço fiscal, Haddad já entregou uma proposta rebaixada – contrariando inclusive aqueles setores do PT que propunham apresentar uma regra mais flexível para depois negociar com o Congresso. O PT manteve suas bases sociais imóveis em relação ao projeto, enquanto o governo centralizava seus deputados, punindo os divergentes e obrigando-os a votar junto à proposta (ao ponto de ao menos 23 deputados de sua base terem declarado sua oposição ao arcabouço apesar de terem dado votos favoráveis a ele). Mesmo com as alterações do relator Cláudio Cajado, o governo manteve tal postura – o prova o fato de a emenda do PSOL só ter tido 20 votos, só 2 deles do PT. Ao fim, aprovado o projeto, o governo considerou-o uma “vitória do Brasil”, como Haddad declarou à Veja esta semana: não há perspectiva do governo, portanto, de pressionar o Senado para melhorar o projeto um pouco que seja.
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Quanto à MP dos ministérios, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse que “é natural que o Congresso Nacional […] queira fazer contribuições. São contribuições que mantêm o espírito inicial da reestruturação do governo, ou seja, aquelas questões centrais estão mantidas”. Em outras palavras: é natural que o Congresso Nacional trabalhe para tornar os ministérios de Meio Ambiente e Povos Originários inermes, bem como para que mantenha a inteligência federal sob controle militar, e essas contribuições estão de acordo com o “espírito inicial da reestruturação do governo”, pois não são “questões centrais”.
Ontem (25), durante evento na Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), o presidente Lula disse que o que ocorreu foi “uma coisa normal”. “Até então a gente estava mandando a visão de governo que nós queríamos. A comissão, no Congresso Nacional, resolveu mexer. Coisa que é quase que impossível de mexer na estrutura de governo, que o governo que faz. E agora começou um jogo, vamos jogar, vamos conversar com o Congresso”, disse. “O que a gente não pode é se assustar com a política. Vou repetir: toda vez que a sociedade se assusta com a política e ela começa a culpar a classe política, o resultado é infinitamente pior. Nós já tivemos lições e é importante a gente lembrar.”
A “resistência” do governo à MP, portanto, deve ficar restrita a “conversar com o Congresso”. A sociedade não pode se “assustar com a política” – mas a política do governo tampouco tem tido o sentido de estimular a pressão da “sociedade”. Se conclui disso que a “sociedade” (como os sindicatos e movimentos sociais), tal qual o governo, há de se contentar – com alegria! – a se submeter ao Congresso.
O problema não é que o governo esteja “refém” do Congresso – é que tem colaborado ativamente com seus sequestradores. Diz tudo que esteja considerando vitórias as derrotas a seu projeto de governo, ou “natural” e “normal” a destruição de sua estrutura ministerial.
Só há um prisma pelo qual se pode considerar que o governo Lula teve uma semana de vitórias: se partimos do pressuposto de que o governo quer ser repetição de Temer e Bolsonaro, e não sepultador de sua tradição; que quer reerguer a “Ponte para o Futuro” imposta ao País após o golpe, não cumprir o “compromisso com a sociedade brasileira em torno da superação do Estado neoliberal e da consolidação de um Estado social” e “enfrentar as amarras do neoliberalismo contra as instituições, contra a cultura democrática e contra o crescimento econômico”, como dizia o programa da Federação Brasil da Esperança; que quer manter intocado o poder e tutela militar no governo, não desmantelá-lo; tudo isso sob a luminosa imagem do povo subindo a rampa. Rabo de Temer, corpo de Bolsonaro, mas rosto de Lula.