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O gesto simbólico dos EUA sobre Cuba só aumenta a frustração regional com as sanções ilegais

Se a meta era apaziguar a região, o anúncio de Blinken sobre a remoção de Cuba da lista de países que não cooperam totalmente com o terrorismo teve o efeito oposto
Guillaume Long
Manifestantes em Londres durante ato pelo fim do bloqueio a Cuba, em fevereiro de 2023. (Foto: Steve Eason)

Nas últimas semanas, diversos governos da América Latina e do Caribe renovaram seus pedidos para que o governo Biden retire Cuba da lista de Estados Patrocinadores do Terrorismo (SSOT) do Departamento de Estado, uma designação que restringe drasticamente o acesso dos países ao financiamento internacional. As declarações cada vez mais incisivas feitas por chefes de estado, ministérios das Relações Exteriores e organizações hemisféricas expõem a crescente insatisfação da região com a política do governo dos EUA em relação a Cuba, especialmente porque as medidas dos EUA continuam aprofundando a crise migratória cubana, que agora afeta vários países, inclusive os EUA.

Ironicamente, a recente enxurrada de declarações oficiais denunciando a política dos Estados Unidos em relação a Cuba foi desencadeada pela remoção de Cuba da lista de países que não cooperam totalmente contra o terrorismo do Departamento de Estado, em 15 de maio, pelo secretário de Estado Antony Blinken. Em vez de apaziguar os governos latino-americanos, a retirada de Cuba dessa lista – cuja existência era desconhecida por muitos diplomatas até o anúncio de Blinken – provocou reações cáusticas na comunidade diplomática da América Latina e do Caribe. Se o anúncio de Blinken tinha o objetivo de indicar um futuro melhor para as políticas de Cuba em caso de um eventual segundo mandato de Biden, a medida saiu totalmente pela culatra e, em vez disso, vários governos estão expondo suas frustrações com o fracasso do governo norte-americano em cumprir as reformas prometidas. 

Um diplomata latino-americano de alto escalão disse ao CEPR que “a remoção de Cuba dessa nova lista por Blinken, que não tem impacto concreto nenhum, é vista como uma farsa por muitos governos. E isso causou muita indignação nos ministérios das Relações Exteriores da região”.

Em resposta ao anúncio de Blinken, vários governos latino-americanos emitiram declarações formais pedindo uma ação mais decisiva por parte dos Estados Unidos. Em uma declaração contundente, o Brasil, a maior economia da região e atual presidente do G20, solicitou que “o governo dos EUA exclua Cuba de sua lista unilateral de Estados Patrocinadores do Terrorismo, à qual são impostas sanções pesadas e injustificadas”. E acrescentou: “A manutenção de Cuba na lista de Estados Patrocinadores do Terrorismo é unanimemente repudiada pelos países da América Latina e do Caribe, conforme consta da Declaração Especial aprovada na última Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) (…) e por uma grande maioria de Estados da comunidade internacional”.

O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, deu uma das mais expressivas respostas  ao anúncio de Blinken: 

“É um passo à frente, eu o saúdo, mas eles têm [Cuba] em outra lista, o que eu quero é o que todos os outros países estão pedindo. Apenas dois países no mundo são a favor do bloqueio de Cuba, apenas dois… E terrorismo por quê? Pura desculpa! Isso é ideologicamente distorcido. E há também um grupo nos Estados Unidos que se beneficia muito com essa política às custas do sofrimento do povo cubano, congressistas, senadores, e outros ganharam muito dinheiro com essa política extremista de punir o povo cubano.”

A declaração de López Obrador foi feita poucos dias antes de sua sucessora, Claudia Sheinbaum, que também expressou sua oposição à política dos EUA em relação a Cuba, ser eleita por ampla maioria para um mandato presidencial de seis anos.

A Colômbia reiterou “seu apelo aos Estados Unidos da América para que revoguem a injusta designação de Cuba como Estado patrocinador do terrorismo, que afeta os processos de migração e, acima de tudo, ignora o compromisso de décadas de Cuba com a busca pela paz na Colômbia e na região”. A Colômbia tem sido um dos críticos mais importantes da inclusão de Cuba na lista SSOT. Os diálogos de paz realizados em Havana entre o governo colombiano e o grupo guerrilheiro ELN foram usados como arma pelo governo Trump em 2021 para alegar que Cuba estava hospedando terroristas em seu território e, portanto, deveria ser redesignada como Estado patrocinador do terrorismo. Desde então, o governo Petro na Colômbia vem denunciando essa decisão como prejudicial ao processo de paz colombiano e desleal com os garantidores e anfitriões que mais contribuíram para ele. Em 17 de maio, o ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Luis Gilberto Murillo, declarou: “Continuaremos insistindo que não é justo que a ilha permaneça na lista geral de países que ‘patrocinam o terrorismo’, o que leva à manutenção de condições adversas que afetam a migração”.

O Chile, um aliado próximo dos EUA, “incentivou os EUA a avaliar a pronta remoção [de Cuba] da lista de Estados Patrocinadores do Terrorismo, cujas consequências afetam diretamente a população”. 

Barbados também deplorou a natureza política da inclusão de Cuba na lista e declarou “que não havia absolutamente nenhuma justificativa para Cuba ter sido colocada na Lista de Estados Patrocinadores do Terrorismo em janeiro de 2021. Do mesmo modo, essa justificativa também não existe atualmente”.

Vários governos enfatizaram o impacto humano da política do governo dos EUA para Cuba. Honduras, por exemplo, declarou que a redesignação de Cuba como Estado patrocinador do terrorismo constituía “uma ameaça ao desenvolvimento e ao bem-estar do povo cubano”, enquanto a Bolívia denunciou a inclusão de Cuba na lista como uma “grave violação dos direitos humanos do povo cubano”. Barbados denunciou que “a inclusão injusta de Cuba na [lista] causou e continua infligindo graves danos à economia de Cuba e um tremendo sofrimento ao povo cubano”.

Nos países caribenhos de língua inglesa e francesa, a reação ao anúncio de Blinken foi vigorosa e unânime. A Comunidade do Caribe (CARICOM), uma organização composta por 14 estados membros, renovou “seu apelo para a remoção urgente de Cuba da lista de países considerados Estados Patrocinadores do Terrorismo” e reafirmou “sua rejeição à imposição unilateral pelos Estados Unidos da América do embargo econômico, comercial e financeiro contra Cuba. Tanto a designação como Estado Patrocinador do Terrorismo quanto o embargo de 62 anos são injustos e erroneamente impostos ao povo cubano e devem ser encerrados”.

Não é a primeira vez que países da América Latina e do Caribe expressam frustração com as políticas do governo Biden para Cuba. Além de expressar esse descontentamento na votação anual da Assembleia Geral da ONU sobre o embargo contra Cuba (a votação de 2023 teve 187 países contra o embargo, em comparação com dois a favor e uma abstenção), os latino-americanos deixaram claro que a política dos EUA em relação a Cuba é um dos maiores impedimentos para boas relações hemisféricas. A teimosia do ideário da Guerra Fria sobre Cuba fez com que os Estados Unidos fossem frequentemente desprezados e constrangidos em várias cúpulas das Américas – mais recentemente, na cúpula de Los Angeles de 2022, em que os principais estados latino-americanos boicotaram o evento e muitos dos presentes atacaram os Estados Unidos em relação a Cuba. 

Em uma cúpula da CELAC em março de 2024, 33 países pediram “a interrupção imediata de bloqueios, sanções ilegais e unilaterais e medidas coercitivas unilaterais contra nossos Estados membros, conforme determinado pela Assembleia Geral da ONU, em conformidade com o Direito Internacional. Reiteramos nossa rejeição às listas e certificações unilaterais que afetam os Estados da América Latina e do Caribe”.

A última cúpula UE-CELAC em 2023 mostrou que esse sentimento se estendeu para além do Hemisfério Ocidental, com aliados europeus dos Estados Unidos concordando com os latino-americanos nessa questão. Em conjunto, os 60 países da UE-CELAC pediram o “fim do embargo econômico, comercial e financeiro imposto contra Cuba” e expressaram sua “oposição a leis e regulamentações com efeito extraterritorial. A redesignação de Cuba como Estado patrocinador do terrorismo, e sua manutenção na lista, introduziu obstáculos às transações financeiras internacionais com a ilha”.

Se o objetivo era apaziguar a região e enviar uma mensagem de boa vontade em relação à política dos EUA sobre Cuba, o anúncio de Blinken de que Cuba seria removida da lista de países que não cooperam totalmente com o terrorismo teve o efeito oposto. A atual crise migratória cubana, que agora afeta a região como um todo, é claramente exacerbada pelo regime de sanções, cujo componente crucial é a designação de Cuba como Estado patrocinador do terrorismo. O fato dos Estados Unidos ainda falarem descaradamente em combater as “causas básicas” da migração enquanto mantêm sanções draconianas contra Cuba corrói ainda mais a credibilidade e a posição do governo Biden na região.

(*) Tradução de Raul Chiliani 

CEPR O Center for Economic and Policy Research (CEPR) é um think-tank fundado em 1999 pelos economistas Dean Baker e Mark Weisbrot para promover debates sobre questões econômicas e sociais nos EUA.

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