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Como o assassinato do jornalista Saleh Aljafarawi e a repressão do Hamas a milícias apoiadas por Israel se relacionam

O jornalista Saleh Aljafarawi sobreviveu aos bombardeios israelenses, mas foi morto no caos posterior, na luta entre clãs armados apoiados por Israel e o Hamas

Tareq S. Hajjaj
O jornalista Saleh Aljafarawi, morto em Gaza no último domingo (12). (Foto: Reprodução / Mídia social)
O jornalista Saleh Aljafarawi, morto em Gaza no último domingo (12). (Foto: Reprodução / Mídia social)

O assassinato do ilustre jornalista palestino Saleh Aljafarawi na noite de domingo (12), poucos dias após o anúncio do cessar-fogo entre Israel e o Hamas, foi um choque para muitos em Gaza. Mas o momento da morte do querido jornalista levantou muitas questões sobre o estado de caos e ilegalidade que se espalhou pela Faixa após o fim da guerra.

De acordo com fontes locais, o contato com Aljafarawi foi perdido durante o dia de domingo. À noite, surgiu a notícia de que ele havia sido morto na área de Sina’a, a oeste da cidade de Gaza.

Quando seu corpo chegou ao Hospital Árabe Al-Ahli, fontes locais disseram que havia sinais evidentes de tortura em seu corpo e que ele havia sido atingido por sete tiros. Seus pulsos também apresentavam sinais de que ele havia sido imobilizado. Aljafarawi havia conquistado um número significativo de seguidores nas redes sociais durante os últimos dois anos de genocídio de Israel em Gaza, documentando inúmeros massacres e ataques aéreos na parte norte da Faixa durante a guerra.

Fontes locais indicam que Aljafarawi foi morto por um grupo armado do clã Doghmush, uma das maiores famílias palestinas em Gaza, com uma longa história de inimizade com o Hamas, que se estende por décadas. O clã Doghmush foi acusado pelo Hamas de colaborar com Israel.

De acordo com relatos locais e amigos próximos de Aljafarawi, ele foi morto enquanto cobria os confrontos entre o clã Doghmush e a Arrow Force, uma unidade do Hamas formada durante a guerra para combater gangues armadas israelenses que saqueavam ajuda humanitária.

O Mondoweiss tentou entrar em contato com membros da Arrow Force para comentar sobre a morte de Aljafarawi, mas o andamento dos combates com gangues armadas apoiadas por Israel em Gaza dificultaram o contato.

Um funcionário do Ministério do Interior, que supervisiona a Força Arrow, disse ao Mondoweiss que Aljafarawi foi “deliberadamente alvejado” por um grupo “fora da lei”. O funcionário acrescentou que os membros do grupo foram “tratados no âmbito da lei revolucionária”.

Na segunda-feira, um vídeo viral circulou na internet, supostamente mostrando membros da Força Arrow alinhando e executando um grupo de homens acusados de traição e de colaborar com o exército israelense por meio de um pelotão de fuzilamento.

Hamas lança campanha de segurança contra gangues e milícias apoiadas por Israel

Quando Israel rompeu seu cessar-fogo anterior com o Hamas, em março deste ano, um dos principais alvos das forças israelenses foram os funcionários públicos do Ministério do Interior, que incluem a polícia e as forças de segurança interna.

O ataque sistemático a esses órgãos tinha como objetivo criar um vácuo de poder e semear o caos na Faixa. Durante a guerra, a inteligência israelense financiou e armou gangues criminosas e clãs locais para atacar o Hamas e saquear a ajuda humanitária, aprofundando a polarização social. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, reconheceu abertamente essa política em junho passado.

Um desses grupos armados mais notórios, as chamadas Forças Populares, é liderado por Yasser Abu Shabab, membro do clã beduíno Tarabin. Acredita-se que ele esteja localizado em Rafah, em áreas ainda sob controle israelense.

Imediatamente após o fim da guerra, o caos se espalhou por Gaza, com o Hamas lançando uma campanha de segurança em grande escala para restaurar a ordem e prender colaboradores acusados de trabalhar com Israel durante a guerra. A campanha também buscava desmantelar grupos armados que operavam sob proteção israelense.

O Hamas anunciou a mobilização e o posicionamento de 7 mil agentes de segurança por toda Gaza para “começar a restaurar a ordem, acabar com o caos e perseguir colaboradores do exército israelense”.

Quando questionado por um repórter sobre o “rearmamento” da polícia e das forças de segurança do Hamas na segunda-feira (13), o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse aos jornalistas que “nós entendemos, porque eles querem acabar com os problemas e têm sido abertos sobre isso, e nós lhes demos aprovação por um período de tempo”. Trump mais tarde reforçou sua defesa da repressão do Hamas, admitindo que o Hamas “eliminou algumas gangues que eram muito ruins”.

“E isso não me incomodou muito, para ser honesto com vocês”, disse o presidente dos EUA aos repórteres.

A campanha começou na cidade de Gaza e na área de Tal al-Hawa, quando membros da Força Arrow do Hamas invadiram um bloco residencial pertencente à família Doghmush nas áreas de Sabra e Sina’a. A operação seguiu-se a um cerco completo da área, visando vários membros do clã acusados de colaborar com Israel.

O canal do Telegram al-Hares (“O Guardião”), uma plataforma afiliada ao aparato de Segurança da Resistência preocupada em dissuadir e alertar contra a colaboração com Israel, informou que um plano de segurança interna havia sido lançado para “proteger a frente interna”. De acordo com o canal, os agentes de segurança prometeram perseguir todos os criminosos e infratores da segurança em toda a Faixa.

O primeiro ataque foi contra os complexos da família Doghmush na cidade de Gaza, quando as forças Arrow (Sahm) invadiram um bloco residencial pertencente ao clã e mataram mais de quinze pessoas, de acordo com relatos de campo. As forças Arrow continuaram cercando a área e exigiram que vários membros da família procurados por crimes – não relacionados à colaboração com Israel – fossem entregues.

Esses indivíduos já haviam sido condenados e presos pelo Hamas antes da guerra, mas foram libertados durante o genocídio. Fontes locais disseram ao Mondoweiss que, durante a guerra, eles se envolveram em saques, roubos e espalharam o caos. Quando se recusaram a se render à unidade Arrow, eles buscaram refúgio dentro do Hospital de Campanha da Jordânia em Tal al-Hawa.

O que aconteceu no dia em que Saleh Aljafarawi foi morto

Fontes disseram ao Mondoweiss que membros do clã Doghmush sequestraram Saleh Aljafarawi e Naeem Naeem, filho do líder sênior do Hamas e membro do politburo Bassem Naeem, matando os dois. No mesmo dia, o clã teria matado dois combatentes da resistência, incluindo Muhammad Imad Aqel, filho do comandante sênior do Hamas Imad Aqel, que foi assassinado por Israel em 1993.

A família Aqel divulgou um comunicado acusando o clã Dogmush de ser responsável pelo crime. “No início do cessar-fogo na sexta-feira, 10 de outubro, nosso filho saiu de um dos túneis de combate com um de seus companheiros de luta para verificar como estavam seus companheiros”, escreveu a família. “Eles foram emboscados por um grupo de homens armados que os esperavam perto do Hospital de Campanha da Jordânia.”

O comunicado afirma que os homens armados eram da família Doghmush e pertenciam a milícias apoiadas por israelenses afiliadas à “ocupação sionista”.

“Eles sequestraram nosso filho, o interrogaram, roubaram sua arma pessoal e uma quantia em dinheiro e o executaram a sangue frio”, continuou a família.

A declaração da família responsabilizou o clã Doghmush e pediu que ele retirasse a “proteção tribal” do “grupo criminoso” responsável pela morte de Aqel, que era membro das Brigadas Qassam.

Os confrontos entre o clã Doghmush e as forças Arrow do Hamas continuaram por dias, deixando pelo menos quinze membros da unidade Arrow mortos.

A família Doghmush posteriormente divulgou sua própria declaração condenando os assassinatos.

“Nós, a família Doghmush, condenamos veementemente o assassinato do cidadão Muhammad Aqel e do jornalista Saleh Aljafarawi”, dizia a declaração. “Esses foram atos individuais que não representam nossa família e apenas servem aos interesses da ocupação. Afirmamos que não há conflitos entre nossa família e as famílias Aqel ou Aljafarawi, e que nossa relação com elas é de respeito mútuo e apreço.”

Um membro da família do clã Doghmush na cidade de Gaza, falando ao Mondoweiss sob condição de anonimato, disse que sete indivíduos do clã eram procurados pela segurança do Hamas e haviam sido condenados por crimes antes da guerra.

“Quando a guerra terminou, as forças Sahm vieram e exigiram que esses sete homens se rendessem, mas eles se recusaram e se refugiaram dentro do hospital”, disse a fonte. “As forças Arrow então cercaram completamente o bairro Doghmush, impedindo qualquer pessoa de entrar ou sair. Eles foram de porta em porta com listas de nomes, verificando identidades. Qualquer pessoa cujo nome aparecesse na lista corria o risco de tortura ou execução.”

A testemunha também descreveu cenas de abuso, alegando que combatentes da Arrow atiraram nas pernas de vários membros da família e torturaram jovens, inclusive arrancando suas unhas.

O Mondoweiss tentou entrar em contato com membros da Unidade Arrow e do Ministério do Interior para comentar essas alegações. No momento da publicação, os contatos não puderam ser alcançados devido à campanha de segurança em andamento.

A família Doghmush tem uma história de rivalidade de décadas com o movimento Hamas em Gaza. Quando o Hamas assumiu o controle da Faixa em 2007, lançou uma ampla campanha para reprimir e desarmar todos os clãs armados, muitos dos quais eram afiliados ao Fatah e à Autoridade Palestina. Entre essas famílias estavam o clã Doghmush, o clã Hilles e vários outros.

Os confrontos naquele ano perto dos complexos da família Doghmush nos bairros de Sabra e Tal al-Hawa deixaram mais de 200 membros da família Doghmush mortos.

Hoje, enquanto a campanha de segurança do Hamas prossegue, muitos em Gaza expressaram nas redes sociais sua convicção de que o clã Doghmush aproveitou a oportunidade durante o caos da guerra – e os ataques de Israel às forças de segurança do Hamas – para acertar contas antigas.

Várias contas nas redes sociais acusaram membros do clã Doghmush de até mesmo colaborar com o exército israelense para combater o Hamas.

Na terça-feira (14), o presidente da maior assembleia de clãs de Gaza, Abu Salman al-Mughani, expressou seu apoio à repressão do Hamas, afirmando que os acusados eram responsáveis por matar crianças, colaborar com Israel, saquear ajuda humanitária e casas e perpetuar a fome em Gaza.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Mondoweiss O Mondoweiss é um site independente que fornece informações aos leitores sobre os acontecimentos em Israel/Palestina e sobre a política externa dos EUA. O site fornece notícias e análises sobre a luta dos palestinos pelos direitos humanos que não estão disponíveis na mídia convencional.

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