No dia 24 de agosto de 1954 os rumos do País foram efetivamente alterados – ou, no mínimo, desarranjados – com o suicídio de Getúlio Vargas. As massas saíram às ruas, os carros d’O Globo eram capotados, Carlos Lacerda fugia. A bala que o velho botara no peito atrasou o golpe em uma década.
Anteontem o ex-presidente Lula foi condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) por unanimidade, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, no muito comentado caso do triplex. Nada mudou no Brasil, salvo o pico na Bolsa, que muito alegrou os urubus do mercado financeiro.
Em fevereiro, Lula deve realizar uma caravana pelo sul do país, partindo do túmulo de Getúlio, em São Borja (RS), para o deleite dos que querem estabelecer a comparação. Lula, no entanto, não é Getúlio – e o caso não é distância ideológica, diferença de projeto ou o que quer que seja. Lula não é Getúlio porque não tem a a coragem e a virtude política que o velho tinha.
O ex-presidente deu ontem, durante reunião das lideranças nacionais do PT, algumas demonstrações óbvias disso. Disse ele: “Não vai ser tarefa fácil. Esse partido passou um monte de tempo gritando que não ia ter golpe e teve golpe.” Em outro trecho: “Somente ontem eu compreendi o que era um cartel. Dava até para mandar para o Cade”, em referência aos juízes do TRF-4.
Disse João Pedro Stedile, do MST: “Nós, dos movimentos populares, não aceitaremos de forma nenhuma que nosso companheiro Lula seja preso. O Poder Judiciário nos deu prova de que eles são burgueses. Eles foram didáticos de nos explicar como o Poder Judiciário neste país é antidemocrático e tem lado.”
Vagner Freitas, da Central Única dos Trabalhadores, declarou por sua vez que os movimentos populares vão “enfrentar na rua e desautorizar o TRF-4”, prometendo organizar greves contra os retrocessos dos “senhores capitalistas, pais do golpe”, denunciando por fim que “quem financiou o golpe no Brasil foi a burguesia brasileira” e prometendo “a maior greve geral da nossa história” no dia 19 de fevereiro.
A adição do marxismo ao vocabulário (ainda que de maneira vulgar) e as promessas de radicalização poderiam nos dar esperanças. Afinal, é a realidade enfim batendo à porta e forçando mais clareza à visão. E o Partido dos Trabalhadores parece enfim, quase dois anos após o golpe, ter entendido a que a reação veio. Mas trata-se de uma ilusão; a vista pode ver melhor, mas não trará consequência à prática.
Em resumo; o Partido dos Trabalhadores compreendeu subitamente o que deveria ter compreendido dois anos atrás, e segue agora adaptando a realidade aos seus desejos. Pode enfim dar resposta certa à pergunta “o que aconteceu nos últimos dois anos?”, mas erra quando se trata da questão “o que fazer para reverter o processo?”
Apesar do golpe contra a presidenta eleita e a condenação de seu maior quadro, o partido só pôde tirar a proposta de uma “aliança ampla” para as eleições de sua reunião. Parece não acreditar, como eu disse há alguns meses, na tese que tanto sustentou, de que o que se passava era um golpe, e segue crente na “democracia”, na ética, na institucionalidade. Não percebem: a reação já quebrou com todos os deuses defendidos pela “esquerda republicana” (se é que neles acreditou um dia).
O PT planeja embarcar em um jogo em que já foi derrotado, mesmo após ter tido a ilusão da vitória. Os que embarcarem juntos também perderão. Em caso de mais uma ilusão de vitória, enfrentariam, de novo, a imprensa, o Congresso, o Judiciário, o mercado financeiro e, agora e se necessário, o general Mourão. A derrota é certa.
Para vencer, é necessário que os setores populares compreendam que não basta compreender a realidade, nem denunciá-la, mas combater. Mais: que repetir a fórmula teorizada no final dos anos 70, que teve seu pico com a eleição de Lula, em 2002, não é solução.