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O desdobramento da revolução no Haiti está diretamente vinculado à Venezuela

Ironicamente, foi a solidariedade venezuelana que pode ter adiado por uma década o furacão político que agora afeta o Haiti.
Por Kim Ives | Haiti Liberté – Tradução de Leonardo Justino para a Revista Opera
(Foto: Medialokal)

O caos reina no Haiti pelo sétimo dia seguido enquanto suas massas se levantam ao longo do país para derrubar o presidente Jovenel Moïse do poder por sua corrupção, arrogância, falsas promessas e mentiras descaradas.

A Revolução de hoje mostra todos os sinais de ser tão profunda e imparável como a de 33 anos atrás, contra o ditador playboy Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, cuja fuga do Haiti, em 7 de fevereiro de 1986, que se deu após dois meses de rebelião, para um exílio de ouro na França num avião de carga c-130 da Força Aérea dos EUA fora apenas o começo de 5 anos de tumulto popular.

Apesar de intensas repressões, massacres, eleições fraudulentas e três golpes de estado, este levante culminou numa notável revolução política em 16 de Dezembro de 1990, quando o teólogo da libertação anti-imperialista Jean-Bertrand Aristide foi eleito Presidente numa vitória esmagadora, logo após declarando a “segunda independência” do Haiti, inaugurada em 7 de Fevereiro de 1991.

Em uma época onde os sandinistas da Nicarágua e a URSS foram derrotadas, o povo haitiano derrotava a engenharia eleitoral de Washigton pela primeira vez na América Latina desde a vitória de Salvador Allende no Chile, duas décadas antes. O exemplo haitiano inspirou o jovem oficial do exército, Hugo Chávez, a adotar a mesma cartilha, dando início à “onda rosa” de revoluções políticas via eleições ao longo da América do Sul.

Assim como Washington fomentou um golpe contra Aristide em 30 de Setembro de 1991, um semelhante foi realizado contra Chávez em 11 de Abril de 2002. Porém o último fora frustrado dois dias depois pelo povo venezuelano e militares do exército.

Apesar desta vitória, Chavez entendeu que a revolução política de 1998 que o trouxe para o poder não sobreviveria sozinha, e que Washigton usaria sua vasta máquina de subversão e poder econômico para desgastar seu projeto de construção do “socialismo do século 21” na Venezuela.  Sua revolução tinha portanto que construir pontes e servir de exemplo para seus vizinhos latino-americanos, os quais estavam também sob o controle do Tio Sam.

Assim, usando a vasta riqueza petrolífera da Venezuela, Chávez deu início a uma experiência sem precedentes de exportação de capital e solidariedade. A aliança PetroCaribe, lançada em 2005 e que acabou se expandindo por 17 nações do Caribe e da América Central, forneceu produtos petrolíferos baratos e condições de crédito fabulosas aos países-membros, lançando-lhes uma linha de vida econômica quando o petróleo estava sendo vendido por 100 dólares o barril.

Em 2006, Washington puniu o povo do Haiti por eleger duas vezes Aristide (1990, 2000) com dois golpes de estado (1991,2004) e duas ocupações militares, manejadas através das Nações Unidas. O povo haitiano conseguiu vencer tal impasse, elegendo René Préval (um dos primeiros aliados de Aristide) para a presidência.

No dia de sua posse, em 14 de maio de 2006, Préval assinou o acordo do PetroCaribe, irritando fortemente Washington, conforme delineado pelo Haïti Liberté em sua reportagem de 2011 usando informações diplomáticas secretas dos EUA obtidos pelo WikiLeaks. Depois de dois anos de luta, Préval acabou recebendo petróleo e crédito venezuelano, mas Washington também o puniu. Após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, o Pentágono, o Departamento de Estado e o então chefe da Comissão Interina de Recuperação do Haiti, Bill Clinton, com alguns lacaios da elite haitiana, praticamente assumiram o governo haitiano e em novembro de 2010 a março de 2011, durante o processo eleitoral, eles expulsaram o candidato presidencial de Préval, Jude Célestin, e colocaram no lugar um dos seus, Michel Martelly.

De 2011 a 2016, o grupo de Martelly desviou, desperdiçou e mal colocou a maior parte do capital da conta conhecida como Fundo PetroCaribe, a qual basicamente mantinha o Haiti em pé desde sua criação em 2008.

Martelly também utilizou o dinheiro para ajudar seu protegido, Jovenel Moïse, a chegar ao poder, em 7 de fevereiro de 2017. Infelizmente para Moïse (tendo chegado ao poder como Donald Trump), ele estava prestes a se tornar um dano colateral na escalada de guerra de Washington contra a Venezuela.

Cercado por um bando de neoconservadores anti-comunistas, Trump imediatamente aumentou a hostilidade contra a República Bolivariana, aplicando sanções econômicas de larga escala ao governo de Nicolás Maduro. O Haiti já estava em atraso com seus pagamentos com a Venezuela, mas as sanções americanas tornaram impossível pagar a conta de petróleo da PetroCaribe (ou deram-lhes uma desculpa de ouro), e o acordo com a PetroCaribe no Haiti terminou em 2017.

A vida no Haiti, que já era extremamente difícil, tornou-se insustentável. Com a torneira da Venezuela fechada, o Fundo Monetário Internacional (FMI) disse a Jovenel que ele tinha que elevar os preços do gás, o que tentou fazer em 6 de julho de 2018. O resultado foi uma explosão popular de três dias que foi o precursora da revolta de hoje.

Ao mesmo tempo, um movimento de massas começou a questionar o que havia acontecido com os 4.3 bilhões de dólares em receitas de petróleo venezuelano que o Haiti havia recebido ao longo da década anterior. ““Kot kòb PetroCaribe a?” – “Onde está o dinheiro do PetroCaribe?” – perguntaram milhares de manifestantes. O Fundo PetroCaribe deveria pagar hospitais, escolas, rodovias e outros projetos sociais, porém a população não viu nada realizado. Duas investigações do Senado em 2017 confirmaram que o dinheiro (segundo o relatório 1.7 bilhão de dólares) fora desviado para outros bolsos.

Então qual foi a gota d’água? Foi a traição de Jovenel Moïse contra os venezuelanos após sua solidariedade exemplar. Em 10 de Janeiro de 2019, numa votação na Organização dos Estados Americanos (OEA), o Haiti votou a favor de uma moção patrocinada por Washington que declarou o governo de Nicolás Maduro como “ilegítimo”, depois dele ter vencido a última eleição do país, em maio de 2018, com dois terços dos votos.

Os haitianos já estavam indignados com a corrupção desenfreada, com a fome, com a disparada da inflação e do desemprego, e frustrados com anos de falsas promessas, humilhação e violência militar estrangeira. Mas esta traição espetacularmente cínica de Jovenel e seus comparsas, em uma tentativa de ganhar a ajuda de Washington para resgatá-los dos incêndios crescentes abaixo deles, foi a gota d’água.

Surpreso e paralisado por sua falta de opções (e suas próprias disputas internas), Washington está observando com horror o colapso não tão súbito do podre edifício político e econômico que construiu no Haiti nos últimos 28 anos, desde seu primeiro golpe contra Aristide em 1991 até seu último “golpe de estado eleitoral” que trouxe Jovenel ao poder em 2017.

A embaixada dos Estados Unidos está certamente numa busca febril por uma solução paliativa, utilizando a ONU, OEA, Brasil, Colômbia e a elite haitiana como seus ajudantes. Mas provavelmente os resultados não serão tão duráveis como foram no final da década de 1980.

Ironicamente, foi a solidariedade venezuelana que pode ter adiado por uma década o furacão político que agora afeta o Haiti.

Também é apropriado dizer que a agressão dos EUA contra a Revolução Bolivariana da Venezuela tenha criado uma cascata de consequências não intencionais e reações, alimentadas pelo profundo senso de gratidão e reconhecimento do povo haitiano pela contribuição da Venezuela a eles, assim como Hugo Chávez e Nicolás Maduro frequentemente diziam que o PetroCaribe era dado “para pagar a dívida histórica que a Venezuela deve ao povo haitiano”.

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