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Haiti: Protestos infindáveis em uma república esquecida

No Haiti, revolta com o “capitalismo de desastre” se aproxima de reviver os feitos de 1986, quando os Duvalier foram expulsos do país pelo povo nas ruas.
por Bárbara Ester | Celag – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
(Foto: Jean Nehemy Pierre)

No Haiti, a crise do regime se agrava após semanas de protestos ininterruptos. Os distúrbios atuais são o culminar de mais de um ano de agitação e quase três anos de descontentamento com o atual presidente, Jovenel Moïse. Os manifestantes se reúnem no Palácio Nacional, nos escritórios da ONU e nas ruas para exigir a renúncia do presidente. A crise política não é nova, mas condensa, pelo menos, os dois últimos governos do Partido Haitiano Tet Kale (PHTK). Seu fundador, Michel Martelly (2011-2016), assim como seu discípulo Moïse, são acusados de desviar fundos de ajuda internacional das duas últimas catástrofes climáticas que atingiram a ilha. Como conseqüência, a população foi condenada à fome, pandemia e ao desastre de sua economia. Lucrar, por meio do infortúnio de milhões de compatriotas, parece ser a receita para o “capitalismo de desastre” [1]. Mais uma vez, exatamente como “a desconfortável alteridade” da Revolução Francesa, o Haiti mostra que, acima de qualquer valor universal da humanidade, para a comunidade internacional “negócios são negócios” [2].

O Haiti tem um dos níveis mais altos de insegurança alimentar do mundo, com mais da metade da população – e 22% das crianças do país – com desnutrição crônica. Seu Índice de Desenvolvimento Humano coloca o país entre as últimas posições, não apenas na região, mas no mundo: 168 de 189 países [3]. Os indicadores de qualidade de vida da população são impressionantes e, além disso, o Haiti enfrenta os desastres naturais que assolam o Caribe. O Índice Global de Risco Climático de 2019 coloca o Haiti em quarto lugar entre os países mais afetados por desastres climáticos anuais, ranking que lidera Porto Rico – onde a renúncia de seu governador foi alcançada nas ruas [4], também após ser acusado de desviar fundos de ajuda – e Honduras, sobre cujo presidente pesa graves acusações de fraude, corrupção e tráfico de drogas [5].

Quase dez anos após o terremoto mais devastador e mortal de sua história, o Haiti não apenas continua sem se recuperar desses danos, mas também sofre com uma nova crise política e social que se agravou desde meados de setembro. Num contexto de inflação de 15%, um déficit de 89,6 milhões de dólares e uma moeda (gourde) em rápida desvalorização, espera-se que este ano a crise humanitária apenas piore. Além disso, a crise no fornecimento de eletricidade, devido à falta de gasolina, acabou provocando inquietação social diante de uma vida cotidiana perturbada: o transporte público, o comércio e as escolas não funcionam.

Assim, as catástrofes naturais usuais acabaram naturalizando as consequências sociais dos problemas políticos, que envolvem atores locais que de maneira alguma superariam a crise sem a permissão dos interesses internacionais e a invisibilidade da crise por seus vizinhos latino-americanos, focados na situação venezuelana.

Um presidente ilegítimo, a origem da atual crise

Moïse chegou à política como um “outsider” [6], representando a elite agrária graças ao seu papel de líder da Agritrans, uma empresa de bananas no nordeste do país. Sua experiência política anterior foi nula, mas ele foi escolhido por Martelly (PHTK) como seu sucessor. Nas eleições primárias de outubro de 2015, Moïse obteve o primeiro lugar, com 32,81% dos votos. No entanto, as eleições foram marcadas por alegações de fraude, intimidação de eleitores e protestos de rua, e por fim foram anuladas. Martelly, com o apoio dos Estados Unidos (EUA), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de outros governos estrangeiros, queria, o mais breve possível, resolver a transferência do governo ao seu sucessor. No entanto, as autoridades eleitorais – devido a persistentes protestos sociais e uma nova catástrofe, a passagem do furacão Matthew – atrasaram três vezes consecutivas um novo voto frente à ameaça de violência imparável [7].

A agitação social que aglutinou o arco da oposição, líderes religiosos e empresariais, bem como membros da diáspora haitiana e organizações de direitos humanos, foi condensada na falta de transparência dos processos eleitorais e na necessidade de reformar o processo de votação. Entre fevereiro de 2016 e fevereiro 2017 um governo interino foi estabelecido por Jocelerme Privert, que foi eleito pela Assembleia Nacional para preencher o vácuo de poder após o fim do mandato de Michel Martelly. Novas eleições foram realizadas em novembro de 2016 e, apesar da conjuntura, Moïse foi eleito no primeiro turno com 55,67% dos votos [8]. Novamente, a denúncia de fraude nublou as eleições que levaram mais de um mês para serem validadas.

Além da baixa legitimidade de origem, o aumento do conflito social e a crise política têm três elementos principais: (1) a crise do combustível; (2) uma grande mudança institucional e (3) a corrupção manifesta de seus funcionários.

Quanto ao preço do combustível, desde 2005 o governo de Hugo Chávez criou o Programa Petrocaribe, que permitiu ao Haiti comprar, desde 2006, petróleo a um preço subsidiado. Os recursos liberados por esse benefício permitiram favorecer o desenvolvimento de infraestrutura e programas sociais, de saúde e educação. Como resultado do bloqueio e da crise econômica que atravessa, em março de 2018, a Venezuela parou de enviar barris a um preço subsidiado. Além do fim do benefício, o governo haitiano anunciou em julho do mesmo ano a eliminação dos subsídios à energia. Essa medida impopular estava de acordo com o que foi acordado em fevereiro de 2018 com o Fundo Monetário Internacional (FMI): um pacote de reformas estruturais em sua economia, o eufemismo usado para nomear o ajuste. Em troca, a agência prometeu empréstimos financeiros de 96 milhões de dólares para ajudar o país a pagar sua dívida [9]. O ciclo de uma nova crise política começou com o aumento do petróleo e seus derivados: 38% de gasolina, 47% de diesel e 51% de querosene [10]. Diante dela, a rua explodiu novamente, os protestos se tornaram massivos e a polícia os reprimiu, gerando mais mortes e mais caos. Finalmente, a medida foi revogada.

Como resultado do ajuste promovido pelo FMI, foi aguçada a crise institucional caracterizada por uma rotatividade permanente de funcionários, principalmente o primeiro-ministro, posição cuja função é a mediação entre o Poder Executivo e o Legislativo para alcançar governança e consenso. Após a onda massiva de protestos em julho de 2018, Jack Guy Lafontant apresentou sua renúncia. Moïse, então, procurou substituí-lo por um conhecido advogado e ex-rival presidencial, Jean-Henry Céant, tentando assim alcançar a unidade com a oposição. Apenas seis meses depois, Céant foi removido. Seu sucessor foi Jean-Michel Lapin, que durou apenas quatro meses no cargo, para finalmente apresentar sua demissão proclamando a falta de acordo entre os atores políticos. Horas depois, o presidente Moïse nomeou seu quarto primeiro ministro, Fritz-William Michel, portador de um perfil mais tecnocrático e até então um funcionário do Ministério da Economia e Finanças. Ao contrário de seus antecessores, Lapin nem sequer conseguiu a ratificação de sua posição pelo Senado – não porque o partido no poder não tinha maioria, mas por causa dos distúrbios causados -, de modo que todo o Gabinete carece formalmente de institucionalidade. A última tentativa de conseguir a indicação de Lapin, em setembro deste ano, culminou com um senador do partido no poder, Jean-Marie Ralph Féthière, descarregando uma arma de fogo contra os manifestantes no Parlamento com o saldo de um fotógrafo e guarda-costas feridos. [11]

Finalmente, em fevereiro de 2019, o escândalo de corrupção popularizado como #PetroCaribeChallenge estourou. A hashtag se originou através de um tweet que perguntou em crioulo: onde está o dinheiro da PetroCaribe? Desde então, começaram o ativismo por uma auditoria coletiva e uma nova onda de mobilizações contra o governo haitiano, acusado de desviar bilhões de dólares do subsídio venezuelano. Como corolário da grande mobilização cidadã, no final de maio o Tribunal de Contas entregou ao Senado um relatório segundo o qual concluía que pelo menos 14 ex-funcionários desviaram mais de 3.8 bilhões de dólares do programa Petrocaribe entre 2008 e 2016. Sobre o atual presidente, o relatório detalha que a Agritrans recebeu os contratos para construir projetos bananeiros e estradas que nunca foram executadas, apesar de receber o dinheiro para tais fins [12].

Ajuda ou ingerência internacional?

O Haiti é um estado falido? Desde sua independência e sua primeira Constituição, em 1804, o Haiti passou por 30 golpes e teve 20 constituições. Atualmente, ele vive uma de suas maiores crises sociopolíticas desde a que ocorreu no bicentenário (2004) com o golpe contra Jean Bertrand Aristide, depois de declarar que o Haiti exigiria um reparo histórico frente à França, sua antiga metrópole. Finalmente, a França tomou a iniciativa de solucionar a crise haitiana e forçou Aristide a renunciar. Em fevereiro de 2004, o presidente deixou o Haiti em um avião norte-americano, escoltado pelos militares daquele país. Desde então, até outubro de 2017, o país foi interposto pela ONU (Organização das Nações Unidas) através da Missão de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti (MINUSTAH) [13]. Posteriormente, foi adotada a forma de Missão das Nações Unidas para Apoiar a Justiça no Haiti (MINUJUSTH), uma missão que buscava padronizar o sistema de administração da justiça haitiana aos modelos implementados nas últimas duas décadas na região. O MINUJUSTH garantiu um contingente policial como forma de “aliviar” o uso da força. No entanto, com a tendência regional de militarização das forças de segurança, isso se traduz na manutenção da ocupação e repressão. A extensão da existência da missão concluiu seu mandato em 15 de outubro de 2019, o que não implica que a ONU abandone o Haiti, mas busque novas formas de interferência [14] [15].

Embora a ajuda humanitária vise fornecer alimentos, saúde e assistência psicológica com a aprovação do governo e sem violar sua soberania – especialmente em face de desastres naturais – na prática, ela foi distorcida para intervir militarmente em nações, derrubar governos e aproveitar sua riqueza natural [16] Após o terremoto de 2010, a MINUSTAH “colaborou” com uma comissão de 7.000 soldados e policiais. A balança: centenas de denúncias de abuso sexual e uma epidemia de cólera causada por quem foi prestar “assistência” [17] [18].

Segundo o ex-diretor do Fundo de Assistência Econômica e Social (FAES) do Haiti entre 2012 e 2015, Klaus Eberwein, apenas 0,6% das doações internacionais acabaram nas mãos de organizações haitianas, 9,6% nas mãos do governo haitiano e os 89,8% restantes foram canalizados para organizações não-haitianas. Infelizmente, Eberwein foi encontrado morto com um tiro na têmpora em um hotel em Miami antes de aparecer diante de uma comissão anti-corrupção do Senado haitiano sobre os fundos Petrocaribe e más práticas da Fundação Clinton [19].

Os recursos foram traduzidos na proliferação de ONGs que começaram a fornecer funções que o Estado costumava cobrir, consolidando uma nova etapa na agenda do sistema neoliberal. Enquanto as ONGs avançavam, o Estado se retirou, afetando tanto a soberania quanto a autodeterminação do país [20]. A intermediação de organizações permite que quem as financia, como o Banco Mundial, o governo dos EUA , o Fundo Monetário Internacional ou empresas transnacionais, obtenham a liberação de barreiras tarifárias, que acabam devastando a produção doméstica e, portanto, a economia do país através da privatização de serviços públicos e da contratação de empresas privadas internacionais para oferecê-las. Este mapa configura o que a economista Naomi Klein chamou de “capitalismo de desastre”, que opera em conjunto com a “doutrina do choque”. Segundo sua tese, crises decorrentes de catástrofes, como no Haiti, possibilitam oportunidades de negócios para investimentos privados, de forma que os poderes e interesses das multinacionais consigam se ancorar no território devastado pelas ONGs.

Para concluir

O PHTK é o atual garantidor dos negócios do capital internacional, principalmente através da transferência de terras camponesas para as transnacionais dos EUA. Para isso, conta com um pequeno setor da oligarquia local, que se beneficia de uma parte do desvio de fundos às custas da maioria da população. A exacerbação da dependência da ajuda internacional combina o colonialismo tradicional com uma nova fase do neoliberalismo como gerente de desastres. A influência dos EUA consolidou uma economia haitiana predominantemente extrativa – aproximadamente 2 bilhões em depósitos minerais operados principalmente por empresas americanas e canadenses [21]. No momento, essa influência é o único apoio de um presidente impopular, cuja renúncia o povo continua exigindo em seus protestos massivos.

Enquanto os líderes da oposição pedem que os manifestantes não desistam até Moïse renunciar, o slogan se torna carne: “estamos dizendo às pessoas que vivem na área de Cité Soleil e à população haitiana que se levante para derrubar a este governo ”, disse à Associated Press François Pericat, participante dos protestos de 27 de setembro, em referência a um bairro pobre e superlotado de Porto Príncipe. “O presidente Jovenel Moïse não está fazendo nada por nós, apenas está nos matando” [22]. Moïse assumiu a Presidência em 7 de fevereiro, data emblemática que lembra o fim de quase 30 anos de ditadura (1957-1986) da família Duvalier, François (Papa Doc) e seu filho Jean-Claude (Baby Doc), que finalmente fugiram da ilha por conta de protestos generalizados. Após o anúncio do fechamento da MINUJUSTH, Moïse afirmou que não apresentará sua renúncia e diz que não quer outro 1986 [23]; no entanto, a revolta popular está se aproximando de repetir o feito.

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[1] Naomi Klein, La doctrina del shock. El auge del capitalismo de desastre, Paidós, Argentina, 2008.

[2] https://www.celag.org/haiti-herida-abierta-de-america-latina/

[3] https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Haiti%20Country%20Brief_%20August_2019.pdf

[4] https://www.celag.org/puerto-rico-afilando-cuchillos/

[5] https://www.celag.org/honduras-una-decada-de-golpes-e-inestabilidad/

[6] https://www.voanoticias.com/a/haiti-presidente-moise-investidura-trump-eeuu/3705034.html

[7] https://www.nytimes.com/es/2016/02/06/editorial-haiti-democracia-en-pausa/

[8] https://www.celag.org/informe-electoral-haiti/

[9] https://www.nodal.am/2019/10/decadas-de-neoliberalismo-neocolonialismo-e-injusticia-climatica-han-llevado-a-haiti-al-limite-por-keston-k-perry/

[10] https://pulsonoticias.com.ar/8911/el-fmi-agita-las-llamas-de-la-insurreccion-en-haiti/

[11] https://www.ap.org/ap-in-the-news/2019/ap-photographer-wounded-in-haiti-shooting

[12] https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-48711839

[13] http://www.ieee.es/Galerias/fichero/cuadernos/CE-131.pdf

[14] https://news.un.org/es/story/2019/10/1463911

[15] https://mundo.sputniknews.com/america-latina/201910161088993267-mision-de-paz-de-la-onu-concluye-mandato-en-haiti-sin-impedir-brotes-de-violencia/

[16] https://www.theguardian.com/world/2019/oct/11/haiti-and-the-failed-promise-of-us-aid

[17] https://www.celag.org/haiti-resultado-intervencion-humanitaria/

[18] https://www.nytimes.com/2017/06/26/world/americas/cholera-haiti-united-nations-peacekeepers-yemen.html

[19] http://www.resumenlatinoamericano.org/2017/08/08/hallan-muerto-a-un-funcionario-de-haiti-que-iba-a-denunciar-a-la-fundacion-clinton/

[20] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-37614689

[21] https://www.nodal.am/2019/10/decadas-de-neoliberalismo-neocolonialismo-e-injusticia-climatica-han-llevado-a-haiti-al-limite-por-keston-k-perry/

[22] https://www.nytimes.com/2019/09/28/world/americas/haiti-protests-moise.html

[23] https://www.jornada.com.mx/2019/10/16/mundo/026n4mun

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