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Haiti, sem carnaval nem Parlamento

No Haiti, governo Moïse aperta as rédeas, fechando Parlamento em meio ao caos neocolonial e se alinhando aos interesses internacionais, que se calam.
por Bárbara Ester | CELAG – Tradução de Gideão Gabriel Oliveira Feliciano para a Revista Opera
(Foto: RNW.org)

O autoritário governo de Jovenel Moïse está levando o Haiti à beira de uma irrupção social, especialmente desde que suspendeu, via twitter, a atividade parlamentar.

O Haiti chega a um mês de governo por decreto, depois da dissolução do parlamento por parte do atual presidente. Há dez anos do mais devastador terremoto de sua história, e depois de dois surtos de cólera importados por órgãos internacionais, o país segue batendo recordes. Desde julho de 2019, não consegue designar um primeiro ministro e já leva mais de um mês desde a dissolução do Parlamento. Esta determinação, que horrorizaria os paladinos da democracia em outras latitudes, foi anunciada à meia-noite da segunda-feira, 13 de janeiro de 2020, mediante um tweet do presidente Jovenel Moïse, passando por cima de qualquer norma constitucional e abstendo-se das regras do jogo da democracia representativa que se baseia no sufrágio e na divisão de poderes. O problema consiste em que os intermináveis protestos que pediam a renúncia do presidente comoveram o país a tal ponto que não foi possível realizar as eleições para a renovação de funcionários eleitos no Senado e na Câmara de Deputados, previstas para outubro de 2019.

Sem nenhuma base constitucional ou legal para suprimir o órgão legislativo, Jovenel Moïse anunciou que tinha retirado fundos públicos para o tratamento parlamentar e que, em vez disso, esses fundos seriam destinados à construção de dez escolas secundárias, sobre as quais não se detalhou nem a localização tampouco os prazos. Para qualquer republicano que se atenha aos princípios básicos da divisão de poderes, a ausência do legislativo, a sucessão de protestos em 2019 resultante da corrupção e do ajuste, juntamente com a evidente ingerência externa que sustenta o governo, seriam suficientes para questionar o fato de o governo haitiano ser democrático. Porém o Haiti é, antes de mais nada, um paradoxo e, juntamente com a Bolívia, se incorporou oficialmente ao Grupo de Lima no mês passado. Nem Bolívia nem Haiti se caracterizam por serem paladinos da democracia. O primeiro é um governo “transicional” que assumiu posteriormente ao golpe de Estado comandado pelas Forças Armadas, e o Haiti é o país onde o presidente decidiu unilateralmente que um Congresso é demasiado oneroso, ignorando a uma multidão que exige sua renúncia.

As tentativas de negociação entre Moïse e a oposição têm sido infrutíferas. A última, propiciada pelo Vaticano na Nunciatura Apostólica de Puerto Príncipe, fracassou após três dias devido à falta de consenso sobre a governança e o tempo que devia permanecer o presidente atual no poder, embora coincidissem na necessidade de redigir uma nova Constituição. O chamado “Core Group’’ – integrado por representantes da Alemanha, do Brasil, do Canadá, da Espanha, dos Estados Unidos da América, da França, da União Europeia, das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos – lamentou a falta de acordo e insistiu com os dirigentes políticos que assumissem suas responsabilidades frente aos desafios da nação, enquanto isso praticamente todo o arco político haitiano coincidia em que a única solução era a renúncia do presidente. Incluído aí o ex-presidente da Câmara dos Deputados e aliado de Moïses, Gary Bodeau, que admitiu ser a renúncia do presidente uma possível saída à catástrofe política. Apesar disso, Moïse inverteu o sentido da responsabilidade política afirmando que seria irresponsável de sua parte renunciar ao mandato popular e insistiu em um diálogo, mesmo que sem negociação, já que se negou a pôr seu cargo à disposição. 

Até agora, nem a ONU tampouco outro organismo internacional se pronunciaram sobre a falta de democracia do governo de Moïse, que tem tomado as rédeas do país com uma gestão à base de decretos.  

Se a vida é uma farsa, que comece o carnaval

Para o Centro de Análisis e Investigación de los Derechos Humanos (CARDH), membro consultivo do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, as violações do direito à vida, à segurança e à livre circulação no país caribenho são alarmantes. Somente desde o início de 2020, registrou-se um aumento dos sequestros em troca de resgate que, somados à violência habitual dos grupos armados nos bairros que operam como exércitos mercenários, terminam por ofuscar o panorama de 2019.  

Em Puerto Príncipe os apagões diários aumentam o medo dos habitantes, que evitam as ruas à noite, por temerem os sequestros. É por isso que em 17 de fevereiro os policiais manifestaram-se na capital exigindo melhores condições de trabalho e o direito a formar um sindicato. O protesto terminou em tumultos e no incêndio dos postos preparados para o carnaval. Em meados de fevereiro, o Haiti voltou a ser sinônimo de tragédia, assim que um incêndio em um orfanato tirou a vida de quinze meninos e meninas. O orfanato, gerido por um grupo religioso norte-americano, não contava com a licença oficial tampouco garantia condições de salubridade mínimas aos menores. Fruto da crise energética e do gerador danificado, a iluminação foi restabelecida por meio de velas e esta teria sido a causa do incêndio

Posteriormente, as forças de segurança voltaram a se enfrentar a tiros em uma autêntica batalha campal. O desmando produziu-se entre policias que estavam se manifestando e os militares que estavam encarregados da segurança no lugar onde no domingo (23 de fevereiro) se celebrariam as festas de carnaval. Apesar da situação delicada, à beira de uma irrupção social fruto da crise política (o Haiti está praticamente paralisado desde julho de 2018) e econômica, Moïse decidiu não suspender as festas, porém diante do enfrentamento armado das forças de segurança se viu obrigado a, finalmente, suspendê-las.

O enfrentamento entre a Policia e o Exército provocou a solicitação do secretário geral da OEA para que se retomem as negociações para formar governo e se convoquem as eleições parlamentares adiadas e, ademais, um pronunciamento, mesmo que abstrato, contra a violência. Devido a esta situação, as autoridades militares da República Dominicana, tanto do Cuerpo Especializado en Seguridad Fronteriza (CESFRONT) como do Exército dominicano têm mobilizado dispositivos de segurança em toda a zona para estarem atentos frente a qualquer eventualidade que se possa apresentar. No entanto a tensão, longe de minguar, parece acentuar-se na ilha.

As eleições na República Dominicana, parte direita da ilha São Domingos, previstas para 16 de fevereiro, não se realizaram por alegadas falhas técnicas na apuração automática de votos. Isso provocou manifestações por parte de toda a oposição, que denunciava o adiamento das eleições como uma estratégia fraudulenta para impedir possíveis eleições prejudiciais ao atual governo. Esse fato provocou o pronunciamento da embaixada norte-americana contra possíveis manifestações e episódios de violência. O medo principal era que as manifestações massivas no Haiti, que seguem há mais de um ano, contagiem o país que ocupa o lado direito da ilha em repúdio ao governo de Danilo Medina. Recentemente, diante da onda de manifestações, a Junta Central Electoral pediu à OEA que permaneça na ilha para a observação das eleições municipais de 15 de março e para o Congresso, no 17 de maio. O órgão internacional prolongaria sua estadia até junho, em caso de eventual segundo turno da eleição presidencial. 

República Dominicana e Haiti têm tido conflitos fronteiriços e, ao largo da história, houve vários episódios de massacres racistas e xenofóbicos contra a imigração haitiana, ao passo que nos últimos oito meses ocorreram três reuniões entre ambos os países – a pedidos da embaixada norte-americana – buscando acordos para resolver temas de segurança e controle fronteiriços. O governo do Haiti pretende aumentar a colaboração aduaneira com a República Dominicana para combater o contrabando e aumentar a arrecadação de impostos. O ministro de Economia e Finanças, Joseph Jouthe, afirmou que ambos os países têm “reativado’’ um acordo firmado em 2017 para aumentar a colaboração entre suas respectivas aduanas. Em 2017, Haiti e República Dominicana concordaram em reativar a Comissão Mista Bilateral criada em 1996 para impulsionar as relações econômicas. Porém, os trabalhos desta comissão, igualmente a ocasiões anteriores, detiveram-se por desacordos entre estes países vizinhos, que compartilham a ilha São Domingos.

Sem máscaras, controle dos corpos e controle do território 

De 1993 em diante, nove missões cívico-militares desembarcaram em território haitiano: A Missão Civil Internacional em Haiti (MICIVIH), a Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH), a  Misión de Apoyo de las Naciones Unidas en Haití (UNSMIH), a Misión de Transición de las Naciones Unidas en Haití (UNTMIH), a Misión de Policía Civil de las Naciones Unidas en Haití (MIPONUH), a Misión Internacional de Apoyo Civil en Haití (MICAH), a Missão de Estabilização da ONU no Haiti (MINUSTAH), a Missão da ONU para o Apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH) e, agora, o Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH). Ademais, dois golpes militares, apoiados ou promovidos pelos Estados Unidos da América, pela França e pelo Canadá, removeram do poder por duas vezes em sequência o sacerdote e ex-presidente Jean-Bertrand Aristide nos anos 1991 e 2004.

Apesar da notória ingerência, a resposta da comunidade internacional diante da iminente guerra civil é no mínimo “frouxa’’. A ONU insiste com os políticos haitianos para que resolvam o que qualifica como “impasse’’ e evitem “uma maior deterioração’’ da situação, mesmo sendo difícil de imaginar como isso poderia ser possível. Helene La Lime, representante do dito organismo no Haiti, compareceu ante o Conselho de Segurança com sede em Nova Iorque para entregar o primeiro relatório da BINUH, estabelecida em outubro de 2019, herdeira da MINYJUSTH que se prolongou por 15 anos com um saldo de centenas de estupros de menores e jovens de ambos os sexos e o abandono de seus filhos por parte dos Capacetes Azuis.

Se bem que a ONU reconheceu – ainda que seis anos depois – que a negligência do seu pessoal introduziu a cólera no Haiti e, também, reconheceu a exploração e o abuso sexual praticados pelos Capacetes Azuis, comprometendo-se a tratar dos casos quando ocorressem e  a dar apoio às vítimas e às famílias, isso não condiz com os fatos. Ainda há centenas de meninos e meninas gerados por membros da missão de ‘’paz’’ que permanecem em desamparo. Tampouco tem se pronunciado sobre o tormento das violações sistêmicas por parte do Partido Haitiano Tèt Kale (PHTK, oficialismo), o qual explicitamente apela à cultura do estupro como forma de garantir a governabilidade, empregando o abuso sexual como meio de repressão para neutralizar a mobilização e recriando o controle territorial no corpo das mulheres. Ainda assim, a virada do governo de Moïse – que deixou de participar dos benefícios do PetroCaribe mesmo que a custo de desatar uma crise energética profunda em meio de uma recessão que parece não ter fim – e sua recente incorporação ao Grupo de Lima parecem proteger o governo antidemocrático diante da comunidade internacional. 

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