A imprensa está realmente exagerando ao nos dizer que os dias do livre mercado acabaram com as novas políticas econômicas de Biden. O presidente dos EUA tem implementado de forma bastante explícita políticas destinadas a remodelar a direção da economia norte-americana, promovendo a energia limpa e mais produção doméstica de semicondutores avançados e outros produtos. Ele também tem revigorado a política antitruste, que foi em grande parte descartada por seus antecessores.
Mas a ideia de que as políticas das últimas quatro décadas traduziram, de alguma forma, a postura de simplesmente deixar as coisas para o mercado é uma mentira grotesca que nenhuma pessoa minimamente familiarizada com a política econômica deveria repetir.
A fossa do setor financeiro
Inverterei o curso habitual de minha diatribe e começarei pelo setor financeiro. Suponhamos que, em 2008-09, deixássemos o mercado operar sua mágica quando o Citigroup, o Bank of America e outros gigantes financeiros foram efetivamente levados à falência por sua própria ganância e estupidez. Teríamos nos EUA um setor financeiro radicalmente reduzido, com muito menos pessoas ganhando salários de sete e oito dígitos nos bancos. (Não, não teríamos tido uma segunda Grande Depressão. Keynes nos ensinou como evitar uma recessão: gastando dinheiro).
Também teríamos um setor financeiro muito menor se tributássemos as vendas de ações, títulos e derivativos da mesma forma que tributamos as vendas de roupas, carros e móveis. É o poder do setor financeiro, e não o livre mercado, que nos diz que essas transações financeiras devem ser isentas dos tipos de impostos sobre vendas que se aplicam a praticamente tudo o que compramos.
Também não há nada de “livre mercado” no tratamento tributário especial que algumas das pessoas mais ricas dos EUA recebem quando têm renda de “juros transportados” como sócios em fundos de investimentos especulativos ou fundos de capital privado. Tampouco se trata de livre mercado quando esses fundos se aproveitam dos fundos de pensão públicos, prometendo altos retornos que raramente cumprem.
O “livre comércio” é uma história para crianças e comentaristas da elite
Os acordos de “livre comércio” dos últimos quarenta anos tiveram pouco a ver com livre comércio. Queríamos, sim, remover as barreiras comerciais sobre produtos manufaturados para submeter os trabalhadores do setor manufatureiro dos EUA à concorrência direta com os trabalhadores mal remunerados do mundo em desenvolvimento. Isso teve o efeito previsto de nos custar milhões de empregos no setor de manufatura e reduzir substancialmente a remuneração dos empregos que permaneceram.
Mas poderíamos ter feito com que o foco do “livre comércio” fosse remover as barreiras que protegiam médicos, dentistas e outros profissionais altamente remunerados da concorrência com seus colegas com salários mais baixos nos países em desenvolvimento. Isso teria tido o efeito de reduzir os empregos e os salários dos profissionais nascidos nos EUA.
Por alguma razão, isso nunca fez parte de nossos acordos de “livre comércio”. Poderíamos especular que isso se deve ao fato de que as pessoas que decidem sobre a política comercial têm muito mais probabilidade de ter amigos e familiares que são profissionais altamente remunerados do que amigos e familiares que foram operários da indústria automobilística ou têxtil, mas isso seria rude. De qualquer forma, essa parte dos acordos de “livre comércio” tratava de um comércio mais livre em um setor específico da economia, em que o efeito previsto e real era reduzir o salário de trabalhadores sem formação universitária.
Monopólios de patentes e direitos autorais
A outra parte realmente importante de nossos acordos de livre comércio foi tornar os monopólios de patentes e direitos autorais, e as proteções a eles relacionadas, mais amplos e mais fortes. É incrivelmente orwelliano que esses monopólios concedidos pelo governo sejam, de alguma forma, discutidos como parte do livre mercado.
E seu impacto não consiste em um pequeno espetáculo secundário. Nos EUA, gastaremos mais de 550 bilhões de dólares este ano com medicamentos prescritos. Se os medicamentos fossem vendidos em um livre mercado, sem patentes ou proteções relacionadas, o custo seria quase certamente inferior a 100 bilhões de dólares. A diferença de 450 bilhões de dólares é mais de quatro vezes o orçamento anual de programas sociais de cupons de segurança alimentar. É mais da metade do que gastamos com as Forças Armadas a cada ano. É o equivalente a mais de 3 mil dólares por família norte-americana.
Se fizermos uma projeção para dez anos e levarmos em conta o crescimento dos gastos, esse valor se aproximaria de 6 trilhões de dólares. Esse valor é seis vezes maior do que o programa de infraestrutura amplamente divulgado pelo presidente Biden.
E isso tem um enorme impacto sobre a desigualdade. As pessoas que se beneficiam desses monopólios são muitas das pessoas mais ricas do país. Bill Gates é o exemplo mais conhecido. Ele provavelmente ainda estaria trabalhando se o governo não ameaçasse prender as pessoas que copiam os softwares da Microsoft sem sua permissão.
Desde a pandemia, criamos cinco bilionários da Moderna pagando à empresa para desenvolver vacinas e permitindo que ela mantivesse o controle sobre as vacinas. Não tente me dizer que esse é o livre mercado.
Pelos meus cálculos, transferimos mais de 1 trilhão de dólares por ano para os beneficiários de monopólios de patentes e direitos autorais, em comparação com uma situação em que itens como medicamentos, equipamentos médicos, softwares de computador e outros itens fossem vendidos pelo preço de livre mercado. Isso representa cerca de 40% de todos os lucros corporativos líquidos.
Por que mentem sobre o livre mercado?
Eu poderia continuar descrevendo longamente outras áreas em que o governo estruturou o mercado de forma a redistribuir a renda para cima (confira meu livro Rigged; é gratuito). Deveria ser óbvio para qualquer pessoa familiarizada com a política econômica das últimas quatro décadas que ela não consistia em um livre mercado – tratava-se, de fato, de estruturar a economia de forma a tornar os ricos mais ricos.
É compreensível que os defensores dessas políticas queiram afirmar que se tratava apenas do livre mercado. Afinal de contas, soa muito melhor dizer ao público, a grande maioria que perde com essas políticas, que “o mercado cria tanto vencedores quanto perdedores”, em vez de dizer “estamos implementando políticas para transferir dinheiro de vocês para nós”.
Mas por que as pessoas que se opõem a essas políticas concordam com essa farsa? Aparentemente, há um grande mercado para esse tipo de fingimento nos principais meios de comunicação, mas seria bom se pudéssemos ter mais discussões sobre políticas com base na realidade.