“Teoria sem prática é tão incompleta
quanto prática sem teoria,
ambas devem andar juntas.”
(Assata Shakur)
Um antigo vídeo de Eduardo Galeano voltou a circular na minha “bolha” de esquerda, em que o escritor uruguaio diz, de forma contumaz: “eu não sou um intelectual!”. A sua explicação para negar tal coisa é que os intelectuais separariam a cabeça do corpo, e que seria preciso ter cuidado com “aqueles que somente racionalizam”, pois podem criar monstros. Algumas questões e considerações.
Gostaria de saber como qualquer ser humano consegue fazer isso: a cabeça não faz parte do corpo? (até hoje não vi nenhum corpo sem cabeça a saltitar por aí – desculpem a ironia macabra). Se somos “um todo” como o mesmo diz, que habilidade especial têm esses intelectuais (na “cabeça” do Galeano) que conseguem tal proeza? Tal justificação biologista não esconde a questão fundamental da sociedade capitalista: a classe? Portanto, bastariam os intelectuais orgânicos-tradicionais da classe dominante conectarem a cabeça ao corpo para ganharem consciência de que também são subalternos? O perigo latente desse tipo de fala é reforçar um mantra ideológico liberal de que existe uma racionalidade desinteressada na academia, no jornalismo e afins; sem paixão ou coração, isto é, supostamente neutra e sem interesses de classes.
Galeano recorre às gravuras de “Los Caprichos” de Francisco de Goya para dizer que as pessoas que só utilizam a racionalidade se arriscam a criarem monstros. Outras perguntas: como alguém consegue atingir só a racionalidade, sem sentir? Seria possível separar o sentir da racionalização? A razão não é um modo de sentir/ser afetado, que nos ajuda a perceber e entender o mundo? Como se reconhece a nossa dimensão irracional/inconsciente se não pela própria “monstra” racionalidade? Um certo apelo à irracionalidade enquanto negação da razão moderna – com todos os seus problemas e contradições – me parece se inscrever na corrente teórica contrarrevolucionária do irracionalismo de estirpe nietzschiana.
As interrogações que enunciei acima destino especialmente àquelas pessoas de esquerda que partilharam efusivamente e propalaram por todos os lados o quanto Galeano estava certo. Pois, além dos problemas supracitados, penso que o brilhante escritor de As veias abertas da América Latina (obra que ensinou a muitos de nós acerca da nossa condição periférica e de latino-americano), comete um erro ao tratar como sinônimos o intelectual e o acadêmico. Fazermos uma crítica implacável contra o academicismo em geral, mas especialmente no campo da esquerda moderada e radical/comunista, é urgente e mais que necessário. É preciso evidenciar e denunciar a lógica mercadológica do capital predominante no âmbito universitário/acadêmico, por ser domesticadora, castradora e conservadora da ordem: desde a sua versão moderna do século XIX, são pouquíssimos os/as intelectuais que escapam desse armadilha. Lutar contra o academicismo e os intelectuais tradicionais-orgânicos da classe dominante deve fazer parte da nossa militância política em todos os espaços.
O ponto central é que todo acadêmico (pressupõe-se) que seja um intelectual (enquanto atividade e função), mas nem todo intelectual é um acadêmico – de um ponto de vista estrito. O sentido forte do adjetivo intelectual se refere a todo o ser social que tem a capacidade de intelecção, de pensar, refletir, de antecipar e organizar uma determinada atividade/ação. Nesse sentido, Gramsci é categórico: “todos os [humanos] são intelectuais, mas nem todos os [humanos] têm na sociedade [capitalista] a função [divisão social do trabalho] de intelectuais”. Sinteticamente, os estudos do militante sardo apontam que na sociedade de classes (com as suas franjas e frações), cada camada tem os seus intelectuais orgânicos, isto é, os que vão atuar na direção de conservação da ordem ou os que lutarão para superação e transformação, portanto, na formulação teórica e organização de uma força social contra-hegemônica capaz de fazer a revolução. Nitidamente inspirado na formulação de Lênin de que “não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária”.
Esse setor da esquerda, em nome de combater o academicismo, os intelectuais da ordem, os que se dizem de esquerda mas não têm ligação com realidade mais imediata da classe, acaba por cair numa cruzada anti-intelectual, o que no meu entender é extremamente perigosa, para não dizer outras coisas mais duras. Ao invés de fortalecer o anti-intelectualismo abstrato, por que não criarmos um campo e espaços em que os intelectuais orgânicos da nossa classe trabalhadora, fora da esfera da universidade, possam produzir conhecimento crítico da realidade, formulação estratégica, na preparação dos nossos quadros-militantes e afins, a partir do contato com as necessidades mais imediatas, mas sem perder de vista as nossas tarefas históricas (a construção do socialismo/comunismo)? Arrisco dizer que num largo espectro da esquerda desapareceu a cultura do estudo sistemático e aprofundado dos autores fundamentais do marxismo; pelo visto, parece ser mais confortável ficar horas a passar o dedo num smartphone nas redes sociais ou a simularem conhecimento na internet com frases de efeito e a reproduzir jargões – isso é uma responsabilidade coletiva e não uma culpabilização individual. Os partidos, movimentos sociais, organizações, etc. devem organizar espaços para desenvolver a consciência e o hábito da necessidade da leitura e estudo. Conhecermos a estrutura e sistema social que enfrentamos, através do conhecimento científico, é mais um momento de luta e urdirá da nossa intervenção.
Outra faceta da falta de esmero pelo estudo é a influência de correntes pós-modernas no interior dos movimentos, partidos e organizações da classe trabalhadora; como o “culto da experiência”, o “eu-pirismo”, o “lugar de fala” (enquanto primazia e condição epistêmica do conhecimento). Não é porque um sujeito vive/sente uma determinada realidade que ele tem a capacidade de entender essa realidade do ponto de vista teórico – são dimensões distintas do mesmo contexto. Por outras palavras, não se pode colocar como equivalente a formulação teórica e capacidade analítica e a experiência/vivência fechada na sua singularidade. Uma sem a outra é um conhecimento “incompleto”, e quem capta de forma primorosa o espírito dessa contradição é o já citado militante e dirigente do Partido Comunista Italiano: “Passagem do saber ao compreender, ao sentir, e, vice-versa, do sentir ao compreender, ao saber. O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, menos ainda, ‘sente’ (Gramsci).” Por isso que Gramsci irá categorizar o marxismo como filosofia da práxis (teoria e prática).
O deputado estadual Renato Freitas (PT-PR), um dos quadros políticos mais importantes e vibrantes que emergiu no seio da classe trabalhadora e periférica brasileira, tem enfatizado muito que “a cabeça pensa onde os pés pisam”. Uma verdade in conteste, mas é preciso ressaltar que ele fez uma longo caminho de estudo, preparação e formação para se apresentar como sujeito político-coletivo que tem a possibilidade de representar uma esperança de futuro para os subalternos no Brasil. Foi a integração entre teoria e a experiência que ele entendeu o motivo da fome e o pauperismo que imperar nas periferias de Curitiba. Porque onde ele pisa tem muita gente sem casa e muita casa sem gente.
Por mais intelectuais orgânicos como Renato Freitas, Jones Manoel, Natan, Oliveira, Jodi Dean, Angela Davis e menos acadêmicos de esquerda elitistas e domesticados pelo liberalismo. Paro por aqui, com algumas das palavras mais belas, emocionantes e profundas de Lise Vogel: “Somente na análise de uma situação real é que a abstração ganha vida, pois é a história que coloca a carne sobre os ossos da teoria.”