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As milícias curdas assinam um acordo ambíguo com Damasco em uma Síria indefinida

Comemorado por todas as partes envolvidas, acordo entre milícias curdas e novo governo da Síria dá tempo aos atores em meio a cenário de instabilidade e disputa
Irene Redondo
Mulheres curdas membros das Unidades de Proteção Popular (YPG) em setembro de 2016. (Foto: Kurdishstruggle / Flickr)
Mulheres curdas membros das Unidades de Proteção Popular (YPG) em setembro de 2016. (Foto: Kurdishstruggle / Flickr)

O governo interino de Damasco e as Forças Democráticas da Síria (SDF), lideradas pelos curdos, assinaram um acordo que, em teoria, representa um passo em direção à reunificação do país. Entretanto, o pacto deixa muitas questões em aberto, especialmente com relação ao modelo de estado e ao papel das SDF dentro da estrutura de segurança da Síria.

O acordo prevê a “integração” de todas as instituições civis e militares no nordeste da Síria sob a administração do Estado, incluindo o controle de passagens de fronteira, aeroportos e recursos estratégicos, como campos de petróleo e gás. Ele também prevê o retorno da população deslocada para suas cidades e vilas, garantindo sua proteção pelo Estado, e compromete os signatários a uma luta conjunta contra o terrorismo ou qualquer ameaça à segurança e à estabilidade do país.

O anúncio do pacto foi recebido com comemorações tanto em Damasco quanto em Qamishlo, embora com interpretações diferentes. Cada lado o considerou como sua própria vitória, graças à ambiguidade do termo-chave, “damayy” (دمج), em torno do qual o acordo se articula.

Esse conceito, que pode ser entendido como união, integração, inclusão ou assimilação, foi deliberadamente usado para oferecer um certo espaço de interpretação a todos os atores envolvidos. Enquanto alguns o veem como uma absorção completa das SDF pelo Estado sírio, outros o veem como um reconhecimento de sua autonomia em uma nova estrutura política ainda a ser definida.

Fontes próximas à Administração Autônoma insistem que o pacto não implica necessariamente na dissolução ou a entrega de armas. A título de exemplo, poucas horas após a assinatura, as SDF anunciaram o início de operações conjuntas com o governo sírio contra o Daesh, uma medida que reforça seu papel militar e contradiz qualquer interpretação do pacto como uma absorção total pelas forças do Estado.

A nível popular, o acordo trouxe calma após dias de execuções e violência sectária que atingiram a comunidade alauíta. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, mais de 1,3 mil pessoas foram mortas, incluindo 830 civis alauítas, muitos deles executados pelas forças de segurança. Os combates provocaram um êxodo em massa para o Líbano, onde 7,6 mil pessoas buscaram refúgio nos municípios de Akkar, com a assistência da Cruz Vermelha e do ACNUR.

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O presidente interino, Ahmed al-Sharaa, anteriormente conhecido como al-Jolani, anunciou a criação de um comitê independente para investigar os assassinatos e processar os responsáveis, e sua liderança continua gerando tensões internas nos círculos islâmicos. Sua abordagem pragmática, que visa a construção de uma administração islâmica com estruturas de governança funcionais, é rechaçada por setores mais fundamentalistas. Esses grupos, que continuam advogando o estabelecimento de um Estado Islâmico, veem sua decisão de priorizar a estabilidade e o reconhecimento político do novo governo como uma traição, o que levou algumas facções a agir de forma autônoma.

Enquanto isso, a Arábia Saudita e a Turquia competem para influenciar nas tomadas de decisão e consolidar seu controle sobre a Síria, cada uma com diferentes interesses estratégicos na reconfiguração do poder na região.

Um pacto que dá tempo a todos os lados

Desde sua criação, a Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (AANES) defende um modelo de Síria federal, uma visão que em parte se reflete no acordo assinado com Damasco. Entretanto, o documento é vago e desprovido de conteúdo concreto, o que o torna mais uma estratégia para aliviar as tensões, ganhar tempo e manter negociações complexas abertas do que uma garantia real de estabilidade.

A Administração Autônoma adverte que o pacto está sendo assinado em um estado sem uma Constituição definida ou um processo claro para sua elaboração. A Conferência Nacional de Diálogo, convocada pelo governo interino há algumas semanas para discutir o futuro político do país, foi denunciada como um espaço exclusivo, onde “não havia representantes legítimos das comunidades drusa, curda, alauíta, ismaelita ou cristã… apenas indivíduos sem apoio real”. “A Constituição síria de 2012, adotada sob o regime de Bashar al-Assad, já continha princípios de não-discriminação com base em sexo, origem, religião ou idioma e previa a proteção estatal de todas as religiões. No entanto, na prática, esses direitos continuaram sendo letra morta, sem mudanças reais para as minorias, inclusive para a comunidade curda”, destacam.

O acordo chega em um momento marcado pelo processo aberto contra o PKK na Turquia, a onda de execuções e o reajuste dos equilíbrios de poder na região. Apesar de sua ambiguidade, o pacto oferece uma oportunidade de prolongar o diálogo. Enquanto a Síria permanece em um processo de reconfiguração política e militar, o impacto real desse acordo dependerá tanto de sua implementação efetiva, prometida para este ano, quanto da evolução dos equilíbrios regionais nos próximos meses.

(*) Tradução de Raul Chiliani

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