Em meio à orgia imperial da morte de George H.W. Bush, o ciclo interminável de notícias da saga do Mussolini ignorante, a aparente elevação política sem precedentes na França, e incontáveis outras notícias de última hora, você provavelmente perdeu três tristes, porém reveladores, incidentes ocorridos próximo à região do Sahel na África Centro-Ocidental.
Primeiro, em 18 de Novembro, uma ofensiva massiva contra uma base militar nigeriana pela facção Boko Haram, grupo terrorista conhecido como Estado Islâmico da África Ocidental (ISWAP, em inglês), que matou cerca de 100 soldados. O ataque surpresa veio em um momento em que o presidente nigeriano Muhammadu Buhari, o qual notoriamente (e repetidamente) tem declarado vitória contra o Boko Haram e o terrorismo, enfrenta uma crise de legitimidade, taxas de aprovação declinantes e uma eleição iminente no começo de 2019.
Apenas poucos dias depois, em 22 de Novembro, enquanto a maioria dos americanos estavam juntos de suas famílias e comendo peru no Dia de Ação de Graças, um contingente de cerca de 50 militantes armados sequestrou ao menos 15 meninas no Niger, do lado de fora de uma cidade na região de Diffa, próximo à fronteira com a Nigéria. Enquanto Boko Haram não reivindicou a responsabilidade oficialmente, muitos têm atribuído a ação ao grupo terrorista, ou a alguma de suas facções, dada a sua propensão a usar sequestros para propaganda e arrecadação de fundos.
E no mesmo dia, também em Diffa, perto da fronteira Níger-Nigéria, suspeitos militantes do Boko Haram mataram 7 empregados da Foraco, uma companhia francesa de perfuração e mineração.
Esta onda de ataques mortais e bastante descarados contra civis ao longo da fronteira Níger-Nigéria pinta um quadro inquietante de uma contínua instabilidade na região, e desmente a ideia de que as operações de combate ao terrorismo, em andamento há vários anos, colocaram o Boko Haram e outros grupos terroristas na defensiva.
Esta realidade é sem dúvida uma responsabilidade política para o presidente nigeriano Buhari, que foi eleito com a promessa de erradicar o terrorismo, de trazer estabilidade e o estado de direito para a Nigéria. Certamente, um número de perguntas inconfortáveis podem e devem ser feitas a Buhari, aos seus militares de alto escalão e a outros burocratas de seu governo.
Mas possivelmente as perguntas mais salientes devam ser colocadas não ao governo nigeriano, mas ao próprio governo dos EUA, mais especificamente ao seu Comando dos Estados Unidos para a África (AFRICOM). Pois é Washington, não Abuja, que tem despendido bilhões de dólares em contraterrorismo e vigilância no Sahel e na África Ocidental. Considerando a longa lista de ataques e assassinatos, pode-se naturalmente fazer a pergunta: o que exatamente os EUA estão fazendo ali, se não contra o terrorismo?
Nigeria, Niger e AFRICOM
Os recentes incidentes pintam um retrato preocupante da realidade da região, onde grupos terroristas não somente continuam a existir, mas aparentemente estão prosperando. Comércio lucrativo de bens ilícitos, drogas, tráfico humano e muito mais continuam a encher os bolsos dessas organizações militantes. Porém o próprio fato destas matanças continuarem põe em questão a eficiência e a agenda por detrás da força do AFRICOM.
Como o Washington Post informou em 2013, os EUA escolheram Agadez, no Níger, como o local de uma nova e enorme instalação de drones que funcionará como uma “base estratégica” na África Ocidental, especificamente no que diz respeito a missões declaradas de vigilância de redes terroristas. E os EUA vêm pilotando drones desta instalação há mais de 5 anos.
Contudo, conforme Nick Turse do The Intercept publicou, o que foi originalmente planejado para ser uma instalação relativamente pequena que abrigaria alguns drones e consultores militares americanos, tornou-se um investimento de mais de 100 milhões de dólares, o que será um dos mais custosos projetos de construção militar no estrangeiro na história dos EUA. E em vez de abrigar simplesmente um punhado de drones Predador, a instalação será base para os drones MQ-9 Reaper antes do final ano que vem. Naturalmente, não está claro quantos drones já estão operando fora da base, embora observadores experientes suponham que um número significante já esteja.
Esta base, que funcionará como um centro de rede de vigilância mais amplo do AFRICOM que se estende por grande parte do continente africano, fica apenas a um curto voo de onde ocorreram esses últimos horríveis incidentes. E, no entanto, parece que os EUA não conseguiram ou não quiseram fazer nada para detê-los. Mesmo com os equipamentos mais avançados de vigilância e comunicação, de alguma forma grupos de dezenas ou centenas de combatentes estão se movendo entre cidades conduzindo sequestros em massa, pilhagem e coisas muito piores sob o nariz de Washington.
E além da base em Agadez, os EUA possuem presença militar no Níger e na Nigéria, com ambos os países hospedando rotineiramente militares norte-americanos e conselheiros militares, frequentemente com a específica intenção de auxiliar forças locais na luta contra o Boko Haram e outros grupos terroristas. Uma emboscada contra quatro soldados norte-americanos no Níger trouxe recentemente a questão para as manchetes dos jornais, já que Washington considera reduzir o número de operações terrestres em que seus soldados participam diretamente.
Também deve ser notado que os EUA operam uma série de outros centros clandestinos de vigilância por todo o continente, pelo menos um dos quais está relativamente próximo do lugar onde os ataques ocorreram. Craig Whitlock do Washington Post publicou em 2012:
“O centro chave da rede de espionagem dos EUA pode ser encontrado em Ouagadougou, capital de Burkina Faso… sob o comando do programa de vigilância confidencial, codinome Creek Sand, dezenas de funcionários norte-americanos e contratantes chegaram a Ouagadougou nos últimos anos para estabelecer uma pequena base aérea no lado militar da base do aeroporto internacional. Aviões desarmados dos EUA sobrevoam centenas de milhas ao norte do Mali, Mauritânia e do Saara.”
Inclusive, o AFRICOM lidera anualmente exercícios militares de larga escala por toda a região, além de se concentrar em amplas iniciativas estratégicas que incorporam forças militares dos EUA nas estruturas de comando militar desses países.
Uma pequena história
Deve-se notar que os Estados Unidos têm se envolvido na região do Sahel desde os primeiros anos do governo George H. Bush, mesmo antes da fundação do AFRICOM, o qual mais tarde foi expandido durante o governo Obama.
Depois do 11 de setembro, os Estados Unidos começaram a aumentar sua presença militar no continente africano sob o pretexto da “Guerra ao Terror”, vendendo essa noção para um EUA dominado pelo medo do terrorismo. Com programas como Iniciativa Pan-Sahel, mais tarde ampliada para Iniciativa Trans-saariana de Contraterrorismo, Washington gerenciou assistência militar e financeira para os países pactuantes do Norte da África – política cuja aplicação prática significou que os militares dos EUA tornaram-se força dominante na região do Sahel, fornecendo os recursos materiais e humanos para os quais governos da região estavam famintos. Naturalmente, isto significou uma subserviência implícita ao comando militar norte-americano.
E com a fundação do AFRICOM, essas relações foram ainda mais consolidadas, de tal forma que vemos hoje exercícios militares massivos anuais, como o Exercício Flintlock, que reúne numerosos países africanos sob os auspícios da liderança militar dos EUA. Enquanto este ano marcou a primeira vez que mais de 20 nações foram lideradas por forças africanas, os militares norte-americanos ainda continuam se sentando na ponta da mesa.
Algum palpite sobre onde aconteceu o Exercício Flintlock em 2018? Isso mesmo, no Níger.
São os recursos, estúpido.
O presidente Obama não foi o arquiteto do AFRICOM, que foi criado em 2007 ainda no governo Bush, mas ele talvez tenha sido seu maior defensor, expandindo enormemente seu escopo e financiamento.
Obama proclamou grandiosamente em 2014:
“A principal ameaça de hoje não vem mais de uma liderança centralizada da Al Qaeda. Em vez disso, vem de afiliados e extremistas descentralizados, muitos com agendas focadas nos países onde atuam…precisamos de uma estratégia que corresponda a essa ameaça difusa; uma que expanda nosso alcance sem enviar forças que sobrecarreguem nossos militares ou causem ressentimentos locais.”
Como tudo quando se trata de Obama, a verdade e a desinformação estão tão perfeitamente misturadas que se torna difícil separar uma da outra. Enquanto não há dúvida que há verdade no que ele declarou, o subtexto subjacente é muito mais interessante a se considerar. Embora Obama e suas cortes encenariam poeticamente sobre segurança e estabilidade, a verdadeira missão do AFRICOM é de natureza neocolonial.
Sim, é preciso dizer que, de fato, o AFRICOM é uma força ocupante que não garante, de forma alguma, a segurança dos povos africanos (ver a Líbia, dentre outros), mas sim garantir o livre fluxo de recursos para fora da África e em direção ao Norte Global, particularmente as antigas potências coloniais como França e a Grã Bretanha e, claro, os EUA.
Caso haja alguma dúvida, considere as seguintes declarações do vice-almirante Robert Moeller, vice comandante do ex-comandante do AFRICOM, General William ‘Kip’ Ward, que disse na conferência do AFRICOM em 2008 que o objetivo do Comando era “proteger o livre fluxo de recursos naturais da África para o mercado global”. Ademais, Moeller escreveu em 2010, “Para não deixar nenhum engano: o trabalho do AFRICOM é proteger vidas americanas e promover os interesses americanos.”
Então, se despirmos a retórica florida sobre estabilidade e segurança, ambos, é claro, vitais para extração e exportação, fica claro que são, de fato, recursos naturais que impulsionam o interesse estratégico dos EUA na África, juntamente com o combate à crescente presença chinesa no continente.
A última década viu grandes descobertas de petróleo em toda bacia do Lago Chade, que transformaram a forma como os Estados da África Ocidental enxergam seu futuro econômico. No coração da bacia está o Lago Chade, rodeado pelos países da Nigéria, Chade, Camarões e Níger. De acordo com uma avaliação de 2010 do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), a bacia do Chade possui “estimados volumes de 2.32 bilhões de barris de petróleo, 14.65 trilhões de metros cúbicos de gás natural e 391 milhões de barris de gás natural líquido.” O potencial tamanho deste recursos tem atraído a atenção de líderes políticos e de empresariais, tanto na região quanto internacionalmente.
Essas reservas de petróleo ganharam a atenção de cada um dos Estados litorâneos do Lago Chade e levaram a uma espécie de disputa entre eles para extrair o máximo possível de petróleo de seus vizinhos. Certamente, não é só petróleo e gás que interessam, especialmente desde que os EUA se tornaram exportadores líquidos de petróleo.
Mas para a França, antiga potência colonial na região, a qual ainda mantém presença militar uma larga presença militar no Sahel sob os auspícios da Operação Barkhane, o petróleo continua sendo uma prioridade essencial na África.
Como o alto executivo do petróleo no Chade disse ao jornal nigeriano This Day, “Atualmente, o petróleo do Lago Chade está sendo perfurado pela República do Chade é… transportado através de navios-tanque para refinarias internacionais no porto de La Havre, na França.”
E no Níger, um país rico em depósitos minerais como o urânio, os quais são vitais para o vasto setor energético nuclear francês, a França continua sendo um ator econômico dominante. Conforme o Think Africa Press publicou em 2014:
“Atualmente, a França obtém mais de 75% de sua eletricidade a partir da energia nuclear e depende do Níger para grande parte do seu abastecimento imediato e futuro de urânio. Esta dependência pode crescer ainda mais quando a produção do recém-descoberto depósito de urânio de Imouraren estiver em funcionamento em 2015. A mina deverá produzir 5.000 toneladas de urânio por ano e ajudaria a tornar o Níger o segundo maior produtor de urânio do mundo. Areva, que é detida 87% pelo Estado francês e detém participação majoritária em três das quatro empresas de mineração de urânio em operação no Níger, está financiando a nova mina.”
E, por falar nisso, o presidente do Níger, Mahamadou Issoufou, é um ex-funcionário da Areva, a companhia francesa que domina o comércio de urânio na África.
Talvez devêssemos retornar nosso pensamentos ao recente ataque que matou sete funcionários da empresa de perfuração francesa Foraco. Fora isso parte de esforços mais amplos dos capitalistas franceses para continuarem extraindo urânio e/ou outros minerais para o transporte de volta à “pátria mãe”? Há de se questionar, considerando que a Foraco não se limita apenas a perfurar poços por água.
A arquitetura do serviço de vigilância dos EUA é tão frágil e inepta a ponto de simplesmente errar o movimento de centenas de membros das muitas organizações que Washington está alegadamente combatendo na região? Simplesmente os EUA são incapazes de espionar efetivamente a área até que sua grandiosa base de Agadez esteja completa? Será que esses grupos terroristas se sofisticaram de tal maneira que são capazes de evitar as mais avançadas capacidades militares e de espionagem do mundo?
A respostas a essas perguntas talvez levem um tempo para emergir. Mas o que sabemos realmente é que a presença militar dos Estados Unidos na África é efetivamente uma ocupação e uma força de extração de recursos a qual utiliza forças militares locais como marionetes para sua própria agenda. Os grupos terroristas operantes na região fizeram incontáveis milhões e cometeram inúmeras atrocidades bem debaixo dos narizes das pretensamente benevolentes forças militares norte-americanas.
Então, se o contraterrorismo é realmente o que os EUA estão interessados no Sahel e na África Ocidental, logo o AFRICOM é um abjeto fracasso. Agora, se visto como uma força neocolonial de ocupação utilizando tanto hard quanto soft power para entrincheirar a hegemonia norte-americana e garantir o livre fluxo de recursos para fora da África, trata-se de um enorme sucesso.