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Jair, e agora?

Jair Bolsonaro é o presidente da farsa estética pela promessa da força. E, como sistematizado em maio, quando a primeira dissolver, a última triunfará.
por Pedro Marin | Revista Opera
O presidente Jair Bolsonaro participa da solenidade de passagem de comando da Marinha do Brasil. (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Escrevi em 18 de maio de 2017: “Dado o esfacelamento vindouro deste governo, restará como aposta somente três fichas: a da farsa estética, a de um grande pacto, ou a da força. […] A aposta mais certeira das classes dominantes para 2018 seria a de estabelecer um candidato que não ousasse retroceder o projeto de Temer, mas que desse a ele cara nova e oferecesse também aparentes benefícios ao povo. […] O problema, naturalmente, será manter a farsa estética suficientemente luminosa, de forma a cegar o povo de sua dura realidade cotidiana. […] Esgotadas as possibilidades anteriores, restará somente a suspensão das fachadas democráticas. Ela poderá se dar de várias maneiras – mais ou menos institucionais – e é a opção mais perigosa, ainda que a mais lucrativa.”

Pois bem: neste 1 de janeiro assumiu a presidência o capitão reformado Jair Messias Bolsonaro, eleito após receber cerca de 58 milhões de votos nas eleições de outubro de 2018. É o presidente da farsa estética pela promessa da força. E, como sistematizado em maio de 2017, quando a primeira dissolver, a última triunfará.

O Datafolha dá conta de alguns dados interessantes quanto à expectativa dos brasileiros com o novo governo. Primeiro: 65% têm uma expectativa ótima ou boa no novo governo. Ainda que alto à primeira vista, o número é o mais baixo desde Collor (71%), passando por FHC (70%), Lula (76%) e Dilma (73%). Além disso, no que tange às avaliações ruins ou péssimas, Bolsonaro bate recorde, com 12% (Collor tinha 4%, FHC – 5%, Lula – 3%, Dilma – 6%). Segundo: a maior parte dos brasileiros (46%) crê que é no combate à violência que o novo governo mais fará.

Ou seja: desde 1990, Bolsonaro é o presidente que menos conta com um dos componentes fundamentais do Brasil – a fé. E, por outro lado, é o que mais tem dos brasileiros a desconfiança.

Do marrom globalizante ao mar de lama…

“Sabe quando você mistura várias tintas e tudo fica marrom?” – me indaga. Aceno que sim: é contra esse marrom da mistura de tons que nunca se sobrepujam os outros que Bolsonaro fez seus motes e galgou a Presidência.

Na economia, o vazio se caracterizava por uma política que estimulava o consumo sem estimular a produção. Milhões de brasileiros passaram a ter acesso a bens aos quais nunca haviam tido antes – ora básicos, ora não, é bom ressaltar – sem que houvesse uma política de desenvolvimento produtivo (quer fosse industrial, quer fosse mesmo na infraestrutura básica). O resultado é que, por um lado, o Brasil aprofundou sua dependência, enquanto, por outro, tornava-se um novo grande mercado consumidor. Apesar dos aparentes ganhos com o crescimento econômico, tornava-se impossível manter o cálculo econômico acertado, já que a geração de empregos foi, ao menos no que se refere à qualidade, prejudicada. Em outras palavras: aquilo que dona Maria, aos 60, passou a comprar, é o que sua filha, aos 30, não produzia. Os bens mais relevantes para o desenvolvimento do País eram aqueles que o Brasil mais importava. Para pagar a conta, produzia e exportava commodities que, para um projeto de desenvolvimento nacional, não têm grande relevância. Talvez o esforço pudesse dar resultados em 30 ou 40 anos, mas neste continente o mundo político parece sempre girar mais rápido do que o econômico.

Na política, este vazio se caracterizou pelo acordo, pelo amansamento, pela negação das diferenças conflitantes em favor de uma afirmação de diferenças que supostamente comungam. E se isto foi verdade na “alta política” dos acordos infinitos dos governos Lula e na sua continuação nos governos Dilma, que chegou a tentar conceder quase em absoluto ao inimigo, em seu segundo governo, para que este parasse de avançar (e a sua falta de sucesso hoje nos prova que neste país as diferenças de fato não comungam por milagre divino), na “baixa política”, nos costumes, isso também foi real. A percepção de que houve um certo salto ideológico à parte do Brasil durante os governos petistas, em especial entre os mais jovens, ainda que seja absolutamente exagerada e mesmo falsificada por Bolsonaro e sua campanha, tem razão de ser.

À medida em que as demandas tradicionais e concretas das esquerdas foram um tanto paralisadas pelo estímulo ao consumo e pelo burocratismo imóvel do Partido dos Trabalhadores [1], as demandas das chamadas minorias cresceram e se fortificaram, seguindo um movimento mais ou menos alinhado globalmente. Primeiro porque pobres, negros e mulheres passaram a uma outra situação social, ainda que não tivessem um grande salto econômico [2]. Os primeiros foram amplamente inseridos no mercado consumidor, e todos tiveram um avanço imenso no acesso ao ensino superior [3]. Mas a qual ensino superior? Houve uma proposta de reforma educacional ampla, por exemplo? Um direcionamento, por parte do Partido dos Trabalhadores, dessa massa que passava a se politizar nas universidades? Não.

Na ausência de um direcionamento ideológico que conflitasse no real com a dominação à qual são submetidos, estes grupos foram revestidos pela ideologia dominante – mas por uma linha ideológica que abraçasse, ou ao menos que aparentasse abraçar suas demandas: uma concepção de “ativismo” típica do primeiro-mundo cosmopolita em que todos os problemas devem ser resolvidos pela iluminação dos incultos e pela modernização dos atrasados (mas nem no primeiro-mundo isto parece ocorrer, e a vitória de Trump sob Hillary Clinton é um indicativo disso). Tal foi a magnitude deste processo que até a Rede Globo, ora aliada do regime durante a ditadura militar, passou por um processo de “modernização” neste sentido (lembremos de Renata Vasconcellos pressionando Bolsonaro quanto à questão dos salários desiguais, uma temporada de “Malhação” inteira com o mote de “abraçar as diferenças”, etc.)

Este é o primeiro ponto: o embate político real foi desestimulado, e em seu lugar triunfou um embate ideológico que, sob os auspícios de uma certa concepção de modernidade, não foi capaz de conversar com o Brasil, ao mesmo tempo que inflou, também no nível ideológico, a reação conservadora.

[button color=”” size=”” type=”” target=”_blank” link=”http://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2018/12/21/no-ninguem-solta-a-mao-de-ninguem-os-comunistas-ja-viraram-alvo/”]Leia também: No ‘ninguém solta a mão de ninguém’ os comunistas já viraram alvo[/button]

O segundo ponto é que não houve uma alteração, sob os governos petistas, nas relações concretas desses grupos com a sociedade em geral (de novo: porque foi meramente ideológica e, ainda mais, sem direção). Os assassinatos em massa de jovens negros não cessaram, nem houve uma política ampla e radical de enfrentamento ao feminicídio. As relações de trabalho, para ambos, também não foram alteradas – mulheres e negros não passaram a outra situação econômica, ainda que tivessem, cada vez mais, inseridos no ensino superior. Não houve uma reforma política que estabelecesse um mínimo de candidaturas provenientes desses grupos, nem uma reforma nas polícias quanto ao tratamento dispensado a eles.

No discurso, as demandas desses grupos tornaram-se o centro. Mas, no real, seguiram marginalizados. Um exemplo mais lúcido? O principal programa de habitação dos governos petistas foi o “Minha Casa, Minha Vida.” Neste programa, o Estado financiava ou subsidiava a compra de apartamentos, construídos por empresas privadas. E onde foram construídos os apartamentos para as famílias mais pobres, que, no Brasil, são formadas majoritariamente pela população negra? Nas periferias. Literalmente marginalizadas, no concreto, do centro.

A esperança era que, após operadas algumas mudanças sociais, os conflitos se resolveriam por si. Mas o grande estadista não espera nada, de nada. Não espera que certos estímulos bastem para que a economia se acerte, nem calcula em trinta anos as mudanças que, a seu povo, são urgentes. Não espera que o acesso educação a determinados grupos os forcem a demandar, muito menos que os outros grupos compreendam esse avanço como uma oportunidade ampla, para todos, e o conflito cesse. O grande estadista direciona e dirige, com punho firme, tendo sempre em mente o confronto. Há de criar ordem a partir do caos. E, quando a ordem presente não agrada, há de transformá-la em caos, pela convicção contenciosa e intransigente, para estabelecer uma nova ordem. Imaginar criar uma nova ordem a partir da ordem de ontem: este é o pecado do PT. Criar um ordenamento ainda mais duro, pintando como caos o que era ordem: esta é a virtude de Bolsonaro. Esta é a farsa estética.

…lama vermelha

Os governos petistas, tanto no que tange ao campo econômico quanto ao político, significaram portanto muito mais uma certa tentativa de mediação dos problemas brasileiros dentre dois mundos (o dos ricos e o dos pobres) do que o fortalecimento de um desses mundos. Bolsonaro se elegeu precisamente por isso, porque essa mediação representava uma grande mistura de tintas que, ao final, se torna marrom, vazia, sem significado. Triunfou nesse vazio para reafirmar, pela violência, o mundo dos ricos.

Na economia, de fato não propõe nada – quem o faz é seu menino da pasta, Paulo Guedes, com seus planos mirabolantes de ultra-liberalização. Privatizações de estatais, corte de gastos, retirada de direitos: as pautas preferenciais dos ricos, com o apoio esperançoso da classe média (que comprou esses discursos na esperança de melhores empregos, salários, etc.), contra os pobres.

Na política, promete uma nova cruzada moral (e isso aparentemente faz bem, ao contrário dos governos petistas – quer promover uma escola com partido único, fazer comunicação própria, combater contra jornalões não-alinhados, etc.) Confrontos com países dissidentes (aqui também faz bem, ao contrário daquele partido que, até sob espionagem norte-americana, nada fez contra o imperialismo) e o combate à criminalidade que, como vimos, é a esperança de muitos.

E assim nascem os problemas, porque os sonhos de uma noite de verão de Paulo Guedes, ainda que compartilhados pelas classes médias, logo começarão a decepcionar. Afinal, são os sonhos da elite. Há uma variável: a depender do que o governo escolher fazer (por exemplo, liquidar nos próximos quatro anos as reservas internacionais do Brasil e/ou conseguir empréstimos com os norte-americanos), a revolta das classes médias poderá ser contida momentaneamente. A dos pobres, no entanto, é certa. A nova “cruzada moral” também logo se esvairá de importância (seja frente a um desastre econômico, seja frente à dura realidade que insiste em demonstrar que esse tipo de “mudança”, essa farsa estética, pouco altera a realidade). Por fim, o tão esperado combate à criminalidade será inócuo. Não adianta estimular os desejos mais violentos da polícia e da sociedade, nem provê-las de armas, enquanto houver, cada vez mais, a disposição de, para viver com dignidade, perder o corpo numa cela ou para os vermes da terra. E Paulo Guedes fará questão de aumentar tal disposição aos baldes.

Se o projeto de Bolsonaro fosse momentâneo, poderia triunfar com relativo conforto. Mas as elites querem se livrar por algum tempo dos pactos. Quando a festa acabar, a luz apagar, o povo sumir e a noite esfriar, se erguerão as revoltas (direcionadas, se atuarmos com decisão, ou difusas, se não o fizermos) e só será possível seguir com seus planos por meio da violência aberta, pela suspensão dos princípios democráticos que o fizeram presidente, pela guerra. É provável que os planos sejam assegurados até sem Bolsonaro.

Jair, e agora?

Agora vem o prometido mar de lama. Que, nestas terras, é vermelha-sangue. Se de 2015 a 2017 era necessário enfrentar o inimigo e tirar o poder da iniciativa de suas mãos, a tarefa agora parece impossível: ele agora possui toda a iniciativa, todo o aparato do Estado, a promessa da radicalização e do uso da violência e, acima de tudo, a tão amada “legitimidade das urnas.”

À esquerda, o Partido dos Trabalhadores desmorona; seu principal (ou seria único?) líder está preso e assim permanecerá, suas organizações de base enfrentam e cada vez mais enfrentarão o sufocamento econômico, seu novo líder (ou algo do tipo) insiste nas teses já comentadas sobre a iluminação dos incultos e a modernização dos atrasados (e aqui trata-se quase de uma citação ipsis literis de Haddad.) Enquanto isso, os setores liberais da esquerda ficarão cada vez mais isolados. Primeiro porque o descontentamento que surgirá, daqui pra frente, será mais econômico e concreto, e menos político e ideal. Ao mesmo tempo, o novo governo fará questão de avançar no campo ideológico, restringindo o terreno destes setores (ao mesmo tempo que os utilizará em suas táticas de cortina de fumaça.)

Os que se atentarem às demandas concretas que surgirão, que fortificarem e expandirem suas bases e que mantiverem uma posição ideológica radical: só estes poderão enfrentar Jair Bolsonaro. O tempo urge.

Adquira já “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, de Pedro Marin:

 

[1] Lembrem-se que o Brasil, em termos econômicos gerais, ia bem, e que os acordos políticos favoreciam a todos.

[2] Tome-se “econômico” aqui não no que se refere à capacidade de consumir bens, mas sim quanto à capacidade de obter uma certa estabilidade econômica, acumular propriedades, etc.

[3] Em 2017, por exemplo, as mulheres representaram 60% dos inscritos no ProUni (https://extra.globo.com/noticias/educacao/vida-de-calouro/mulheres-sao-maioria-entre-os-inscritos-no-prouni-direito-o-curso-mais-disputado-20887661.html). Desde a criação do ENEM, são maioria entre os inscritos, e vão liderando e aumentando a margem ano após ano (https://querobolsa.com.br/revista/enem-tem-mais-mulheres-que-homens-desde-primeira-edicao-da-prova). De 1988 a 2008, a taxa bruta de escolaridade no nível superior de negros e pardos passou de 3,6% para 16,4%; um aumento de 350% em termos proporcionais (http://www.scielo.br/pdf/cp/v45n158/1980-5314-cp-45-158-00858.pdf).

 

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