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Praça da Paz Celestial, 1989: A história revisitada

Apesar dos fracassos, tragédias e confusões, o incidente da Praça da Paz Celestial está entre as campanhas de propaganda mais bem-sucedidas da história.
por Godfree Roberts | The Unz Review – Tradução de Gabriel Deslandes
(Montagem: Estúdio Gauche)

Nesta segunda parte da série sobre os 30 anos do incidente da Praça da Paz Celestial, o professor e doutor em Educação e Geopolítica pela Universidade de Massachusetts, Godfree Roberts, delineia um panorama completo de todo o episódio – desde o contexto sócio-histórico em que estava inserido na China às suas implicações políticas e geopolíticas posteriores. Roberts explora, com profundo rigor analítico, as próprias contradições do processo chinês de Reforma e Abertura nos anos 1980, bem como as expressões e imbricações da interferência estrangeira nos rumos dos protestos em Pequim, suas fragilidades e sua radicalização propositada.

Imagine que estamos no meio do verão. Estudantes de Yale, Harvard, Princeton, Radcliffe, Columbia, Vassar, Smith, Brown, Wellesley, Cornell, Dartmouth e Penn estão se manifestando diante da Casa Branca e inundando o National Mall com seus moletons Dolce & Gabbana. Eles permanecem lá por seis semanas e, como o número de estudantes aumentou, o humor deles também piorou: a corrupção provocou outra recessão, há uma onda de crimes e inflação desenfreada ameaçando as perspectivas de emprego, e o programa National Merit Scholarship foi cancelado. Líderes estudantis – alguns patrocinados por uma sombria ONG chinesa e que recentemente voltaram de viagem a Pequim – dizem que o fato de eles não conseguirem processar os banqueiros americanos é a prova de uma conspiração criminosa e da ilegitimidade do governo. Os líderes estudantes que retornaram de Pequim estão insultando a multidão por sua covardia, instigando-os a ignorarem os franco-atiradores a postos em todos os telhados e tomarem de assalto a Casa Branca. Dentro, funcionários nervosos – com filhos e filhas, sobrinhas e sobrinhos, entre os manifestantes – tentam descobrir quais deles conspiraram com os agitadores.

De repente, simultaneamente, todas as portas da Casa Branca se abrem e oficiais uniformizados saem correndo com: (a) metralhadoras, com as quais abrem fogo, abatendo os filhos das principais famílias americanas, ou (b) garrafas de água mineral, fatias do bolo de aniversário da primeira-dama e um convite para se juntar ao presidente naquela noite no gramado da Casa Branca para um churrasco e uma discussão séria.

Tanques e bicicletas nos arredores da Praça Tiananmen.

Em 1989, 14 milhões de americanos – 6% da população – estavam na faculdade. Naquele ano, dois milhões de crianças chinesas, 0,2% da população – a primeira geração do pós-guerra cuja educação não foi ininterrupta –, uma geração inteira de seus futuros líderes. A ideia de que qualquer elite assassinaria seus próprios filhos – em especial a chinesa, que cultua a juventude – por manifestarem pacificamente suas queixas legítimas é ainda mais tola do que a noção de que eles estavam se manifestando pela democracia. A manifestação de muitos era sobre dinheiro e sexo. A única “democracia” que lhes interessava era o grande caractere em mandarim “Democracia”, que aprenderam com Mao: daí o reaparecimento de cartazes com grandes caracteres – não vistos desde que o governo des-revolucionou a Revolução Cultural 20 anos antes. Mao lhes dissera o que fazer quando um governo incompetente os forçasse a suportar a carga de sua própria incompetência e corrupção: exibir cartazes de grandes caracteres. Ele tentou até fazer com que a exibição de grandes cartazes fosse uma garantia constitucional.

1989 foi um ano muito incomum: o 40º aniversário da fundação da República Popular, o 70º aniversário do Movimento Quatro de Maio, o centenário da Segunda Internacional Comunista e o bicentenário da Revolução Francesa. A URSS estava se desintegrando, e a Reforma e Abertura de Deng, dizia Orville Schell,[1] “empurrou a sociedade chinesa para a marcha ré, esmagando o país em uma forma de capitalismo desregulado que fez os EUA e a Europa parecerem quase socialistas em comparação”. As radicais reformas de preços de mercado provocaram uma grande inflação e uma inquietação popular, estudantil e operária.

Elizabeth Perry escreveu: “A Revolução Cultural deixou uma marca significativa nos protestos populares na China pós-Mao. Repertórios de ação política coletiva popularizados durante a Revolução Cultural – como cantar canções revolucionárias, marchas, comícios e greves de fome – tiveram um grande impacto no movimento de protesto de 1989. O espectro assombrado da Revolução Cultural também teve um impacto crucial na interpretação daquele movimento pelo governo Deng – e, portanto, na reação a ele. Mais de três décadas após a China ter se aventurado no caminho da mercantilização capitalista, a realidade sombria da desigualdade socioeconômica, degradação ambiental, demissões maciças de trabalhadores de empresas estatais, evisceração de proteções sociais, corrupção oficial desenfreada, apropriação ilícita de bens públicos e a exploração do trabalho migrante rural levou ao desmoronamento do amplo, mas frágil, consenso sobre a direção e a racionalidade das reformas pós-Mao que dominaram as discussões intelectuais chinesas dos anos 1980”. Segundo Suzanne Pepper, a Reforma e Abertura – até onde as pessoas comuns podiam ver na época – eram desastres, e o que faltava para acender o fogo do protesto[2]:

“Com as múltiplas crises econômicas e políticas de 1988 e 1989, as consequências da década de reforma de Deng Xiaoping para, pelo menos, o ensino superior, podem ser melhor categorizadas como uma grande tragédia para todos os envolvidos. A década de Deng começou com grande festa, grandes esperanças e a reversão total das prioridades da Revolução Cultural.

Durante as reuniões acadêmicas da primavera de 1988, os comentários do presidente da Universidade de Pequim, Ding Shisun, provocaram uma reação tanto por causa de sua franqueza quanto por criticarem políticas oficiais: ‘Algumas pessoas me perguntam se, como presidente da Universidade de Pequim, eu tenho medo de protestos estudantis, mas respondo que o que mais temo é não ter dinheiro suficiente’. Isso provocou discussões acaloradas entre os delegados e uma manifestação satírica de um punhado de manifestantes estudantis que se reuniram na Praça Tiananmen, oferecendo-se para lustrar os sapatos dos delegados.

Até então, os imperativos do movimento de protesto estudantil já haviam adquirido vida própria. As questões mais importantes eram os preços altos, a corrupção generalizada e os privilégios especiais desfrutados pelas famílias de funcionários de alto nível, que pareciam se beneficiar mais do que os outros das novas oportunidades de se envolver em comércio e viagens. Os estudantes também começaram a exigir o direito de protestar livremente contra essas consequências negativas, quando ficou claro que as autoridades estavam tentando impedi-los. Entre meados de outubro e dezembro de 1985, praticamente todos os secretários provinciais e municipais do país visitaram todas as principais universidades e ouviram pessoalmente as queixas dos alunos. Inerente à resposta popular, estava uma corrente subjacente da democracia maoísta de linha de massa ou de ‘unidade de trabalho’ que era obviamente diferente das concepções antiburocráticas do Ocidente e de Deng Xiaoping.

Assim, enquanto os manifestantes estudantis ocupavam a Praça Tiananmen em maio, um funcionário de meia-idade e de nível médio de Pequim comentou com um amigo durante uma visita a Shenzhen que, se ainda estivesse vivo, ‘Mao teria enviado alguém para conversar com eles’”.

O funcionário continuou explicando que tanto os operários quanto os quadros no sistema industrial sentiam que tinham muito menos oportunidades de “participação” agora dentro desse sistema do que na década de 1970, quando reuniões eram convocadas para cada problema, e as pessoas podiam levantar opiniões que depois poderiam resultar em sua demissão.

Os preparativos para a próxima fase do movimento estudantil estavam, portanto, essencialmente a postos quando Hu Yaobang morreu repentinamente em meados de abril e forneceu o elo perfeito, ainda que imprevisto. As demandas posteriores incluiriam referências mais precisas à inflação, os privilégios especiais dos quadros, as contas bancárias na Suíça e assim por diante, mas as principais preocupações eram políticas. Entre as primeiras demandas, estavam sete elaboradas em 23 de abril por estudantes de 19 faculdades e universidades de Pequim:

  1. Reavaliar méritos e deméritos de Hu Yaobang (um oficial muito amado pelos alunos);
  2. Permitir que o povo administrasse os jornais;
  3. Aumentar o financiamento educacional e aumentar o salário dos intelectuais;
  4. Reavaliar o movimento estudantil de 1986 e a oposição à liberalização burguesa;
  5. Tornar pública a “verdade” sobre o incidente de 20 de abril de 1989 (quando a polícia supostamente bateu em manifestantes estudantis);
  6. Opor-se à corrupção, opor-se ao burocratismo e punir severamente o lucro oficial;
  7. Relatar com sinceridade todos os eventos desde a morte de Hu Yaobang até as manifestações estudantis na Praça Tiananmen.

Em abril, estudantes e trabalhadores iniciaram grandes manifestações em Pequim e Xangai, denunciando as reformas de Deng Xiaoping em cartazes: “Não importa se o gato é preto ou branco, desde que o gato renuncie”.

Dongpin Han, um estudante da época, conta como a súbita flexibilização dos controles de preços desencadeou corridas bancárias, pânico nas compras e açambarcamento. O crime estava desenfreado, e o país estava maduro para a desestabilização: “A corrupção oficial havia interrompido a economia da China. O governo, que enfrentava falência, havia emitido mais moeda em 1984 do que nos 35 anos anteriores combinados. Os preços das commodities, anteriormente estáveis e controlados pelo Estado, explodiram. A carne subiu 500%. Meus pais guardaram dois mil yuans. Eles compraram sua primeira casa por 400 yuans e, de um dia para outro, suas economias perderam 90% de seu valor. Minha mãe correu para a loja e comprou 200 metros de tecido liso. Seu vizinho comprou 400 quilos de sal e outro comprou 40 televisores. Eles acreditavam que a inflação da época da guerra havia retornado, e seu dinheiro se tornaria inútil. As pessoas começaram a denunciar publicamente funcionários corruptos e a promoção de seus filhos para altos cargos. O Índice de Preços ao Consumidor em Pequim havia saltado 30% em 1988 e os assalariados entraram em pânico na medida em que não podiam mais pagar por produtos básicos. As empresas estatais foram pressionadas para cortar custos. A tigela de arroz de ferro de Mao – segurança no emprego e benefícios sociais, que iam desde assistência médica até moradia subsidiada – estavam subitamente em risco”.

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As empresas estatais despejaram milhões de trabalhadores no mercado de trabalho, e, em função de algumas semanas, a inflação consumiu suas indenizações, projetadas para durarem seis meses. Os graduados se encontraram no pior mercado de trabalho desde a Guerra Civil, em que, aparentemente, somente aqueles com conexões políticas eram contratados. Uma pesquisa mostrou que a média universitária ganhava menos do que os matriculados no ensino médio. Os subsídios do governo foram reduzidos ao osso, e os rendimentos dos professores reduzidos.

Os camponeses que seguiram a admoestação de Deng para “enriquecer” estavam realmente “enriquecendo”, enfurecendo as elites sociais que exigiam “mais dinheiro para a educação e salários mais altos para os intelectuais”. Eric Margolis, do Toronto Sun,[3] escreveu: “Essa reação às políticas de Deng se refletiu não apenas nas simpatias maoístas de alguns estudantes chineses, mas também nas amplas demandas apresentadas pelo movimento estudantil. Os eventos de 1989 foram, em sua essência, uma guerra civil política dentro do PCCh, em que as armas foram retiradas dos quartos dos fundos das casas e foram para as ruas: estudantes e trabalhadores com ressentimentos reais devido a mudanças rápidas acabaram sendo manipulados por facções dentro do PCCh e conspiradores estrangeiros – e as coisas ficaram fora de controle”.

A retirada dos subsídios mensais de Mao esmagou os sonhos de milhões de famílias sedentas por educação, e a decisão do governo de manter bolsas de estudos para estudantes africanos desencadeou distúrbios raciais. Milhares de estudantes de Nanjing entoaram demandas por reformas, levantaram placas como “Matem os diabos negros!” e invadiram os alojamentos estudantis dos africanos, ferindo vários. As manifestações anti-africanas se espalharam para Pequim, onde, na noite de 19 de abril, militantes estudantis carregando cartazes dizendo “Não ofendam as mulheres chinesas”, gritando “Matem os estrangeiros!” e bradando insultos a Deng marcharam pelos alojamentos dos líderes do Partido em Zhongnanhai.

Como testemunha ocular, Lee Feigon relata: “A polícia parecia notavelmente tolerante, sem se abalar com os vaias e gritos constantes. Muitos que assistiram duvidaram que o serviço secreto americano teria reagido de forma tão genial se uma multidão similar estivesse batendo nos portões da Casa Branca no meio da noite. Isso foi levado ao extremo por volta das 2:30 da manhã, quando a polícia tentou limpar a área da multidão, e alguns deles foram empurrados de volta para cima de uma pilha de bicicletas caídas. Um valentão pegou uma das bicicletas e bateu na cabeça de um dos policiais. Ele não foi preso.”

Brigas dentro da Cidade Proibida, na qual a oposição à Reforma e Abertura de Deng ainda era poderosa entre os maoístas, refletia o tumulto na praça. Conservadores e progressistas lutaram para implementar políticas contraditórias, e a morte inesperada de Hu Yaobang não tornou confiável nenhum interlocutor. As manifestações se intensificaram quando os estudantes marcharam para a Praça Tiananmen em 26 de abril cantando A Internacional e segurando retratos de Mao. Lee Feigon continua: “Os líderes de um proeminente grupo de estudantes penduraram grandes fotos de Mao nas tendas que eles montaram na praça. Eles falaram abertamente e corajosamente sobre os bons e velhos tempos da Revolução Cultural. Eles achavam que Mao tinha as ideias certas, embora, às vezes, tivesse usado as táticas erradas. Agora eles estavam determinados a usar aquelas que consideravam as corretas.”

Como seus colegas americanos, cujos sonhos morreram no estado de Kent, a Nova Esquerda da China conhecia o valor da publicidade. Eles esperavam a repressão e a provocavam abertamente, mas, para sua considerável surpresa, provocaram principalmente simpatia. A ala de reforma do Partido os saudou como “portadores do espírito de democracia socialista”, e o jornal O Diário do Povo deu a eles a foto de capa e uma cobertura adulatória com manchetes como: “Um milhão de todas as formas de vida manifestam seu apoio a estudantes em greve de fome” e “Salve os estudantes! Salve as crianças!”. O jornal Guangming Daily publicou matérias de primeira página como “As condições dos estudantes e o futuro do país tocam o coração de todos os chineses conscientes”. Claramente, os estudantes não estavam sozinhos.

No auge da turbulência, os organizadores se reuniram com líderes do Partido, e a CCTV transmitiu a reunião para milhões de simpatizantes de suas demandas pelo fim da corrupção e pela onda de crimes que as reformas de Deng desencadearam. Em 18 de maio, o apoio aos estudantes foi tão forte que O Diário do Povo deixou de lado a cobertura da visita de Estado do presidente russo Mikhail Gorbatchov para mostrar as demandas dos manifestantes. Capitalizando a cobertura televisiva da visita de Gorbachev, os manifestantes bloquearam a Praça Tiananmen e anunciaram uma greve de fome. O governo respondeu enviando dez mil médicos e enfermeiros, cem ambulâncias e equipes de saneamento e banheiros portáteis.

Os grevistas da fome insistiram em mais diálogo e, quando o governo concordou, exigiram que Deng se aposentasse, as tropas estacionadas fora da cidade fossem dispersas, e a lei marcial fosse revogada. Também apresentaram quatro exigências: (1) melhor tratamento para os intelectuais, incluindo mais dinheiro para a educação, melhores salários e cargos após a graduação; (2) o fim da corrupção oficial generalizada e do tratamento preferencial dos parentes de funcionários do Partido na obtenção de empregos lucrativos e melhores condições de moradia e educação; (3) as reformas políticas de Hu Yaobang, incluindo mais responsabilização do governo e capacidade de resposta às ideias e opiniões dos cidadãos e uma contribuição mais ampla nas políticas governamentais; (4) respeito pelas liberdades constitucionalmente garantidas, como liberdade de manifestação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Como essas reformas foram realizadas nos anos subsequentes, as taxas de confiança e aprovação do governo aumentaram de forma constante, atingindo alturas olímpicas com o combate à corrupção política generalizada promovido por Xi Jinping.

“Poder absoluto corrompe absolutamente”, diz o cartaz de um manifestante.

Os estudantes receberam grandes quantias de dinheiro de cidadãos comuns, turistas estrangeiros e organizações no exterior. Trabalhadores ativistas alegaram ter testemunhado um “caos de dinheiro” e acusaram os líderes dos protestos de embolsá-lo para si próprios. O tamanho e a qualidade das tendas e colchões comprados com os fundos doados, eles observaram, “foram alocados entre os líderes estudantis de acordo com sua posição relativa”.

Levados pela auto-importância, como os líderes do Partido que eles desprezavam, eles se tornaram cada vez menos disponíveis à imprensa, e seus guarda-costas recusaram o acesso a jornalistas sem inúmeros documentos de identidade e passes de imprensa. Mike Chinoy, da CNN,[4] recorda: “Na sua República Popular da Praça Tiananmen, os estudantes brigões começaram a exibir as mesmas tendências burocráticas e autocráticas que eles estavam tentando mudar no governo”. Vito Maggioli, produtor da CNN, lembrou como, no final de maio, equipes de câmera e repórteres, após cobrirem os eventos na praça, voltaram reclamando da burocracia criada pelos estudantes, com alguns até chamando os líderes estudantis de “fascistas”.

Nem os líderes estudantis acolheram aqueles que sofreram os efeitos mais cruéis das reformas: os trabalhadores comuns. Andrew Walder e Gong Xiaoxia[5] disseram que um membro da Federação Autônoma dos Trabalhadores achava que os estudantes estavam “especialmente indispostos” em se encontrar com os membros do Sindicato dos Trabalhadores da Construção, considerando-os humildes “trabalhadores condenados”: “Eles estavam sempre rejeitando a nós, trabalhadores. Eles pensavam que éramos incultos. Exigimos participação no diálogo com o governo, mas os estudantes não deixaram. Eles consideravam que nós, trabalhadores, éramos grosseiros, estúpidos, imprudentes e incapazes de negociar”.

Em resposta à exclusividade dos estudantes, os trabalhadores produziram sua própria carta convidando todos a se juntarem a eles, e “os membros se orgulhavam do fato de que seus líderes conversavam livremente com as pessoas da cidade, de todos os modos de vida, e com camponeses, e que o ‘fórum democrático’ da sua estação de rádio estava aberto a todas e quaisquer declarações de sua audiência. Os trabalhadores acrescentaram que eles ‘observaram nos líderes estudantis e em seu movimento muitas das falhas dos líderes da nação e de seu sistema político: hierarquia, sigilo, condescendência em relação às pessoas comuns, faccionalismo, brigas pelo poder e até privilégios especiais e corrupção’”.

A situação era volátil, mas a violência exigiria um catalisador, e a CIA estava pronta e ansiosa para fornecê-lo. Depois de derrubar o governo do Irã em 1953, o Vietnã do Sul em 1963 e o Chile em 1973, a agência transferiu sua equipe de golpistas para Pequim. Como reportou The Vancouver Sun: “meses antes do ataque de 3 de junho contra os manifestantes, a CIA ajudava ativistas estudantis do movimento antigovernamental, fornecendo máquinas de escrever, máquinas de fac-símile e outros equipamentos para ajudá-los a espalhar sua mensagem, disse um funcionário”. A CIA transferiu Gene Sharp, autor do manual de Revolução Colorida, para Pequim, onde o financista George Soros também havia se associado ao homônimo Fundo para a Reforma e Abertura da China.

Antes, o então diretor da CIA, George H. W. Bush, havia retirado de Pequim o embaixador Winston Lord e o substituído por James Lilley, um agente experiente em mudanças de regime. Bush e Lilley eram amigos íntimos desde o início dos anos 1970, quando Lilley era o chefe da estação da CIA em Pequim, e Bush era o chefe da missão e o embaixador de fato. Em 1975, quando Bush retornou de Pequim para dirigir a CIA, ele nomeou para seu lugar o oficial de inteligência nacional Lilley, o especialista em China mais bem-conceituado na comunidade de inteligência americana.

Lilley havia entrado em contato com o premier Zhao Ziyang, que queria que a China adotasse uma mídia privatizada, a liberdade de organização, um Judiciário “independente”, uma democracia parlamentar multipartidária, privatização de ativos estatais, a separação entre o Partido e o Estado e reformas econômicas voltadas para o mercado. Em 1986, Soros investiu um milhão de dólares em seu Fundo para a Reforma e Abertura da China – uma quantia enorme para a China naquela época – para promover intercâmbios culturais e intelectuais com o Instituto de Reforma Estrutural Econômica de Zhao. Em 1988, o National Endowment for Democracy (NED) abriu dois escritórios na China, ofereceu seminários regulares sobre democracia, patrocinou escritores chineses e publicações selecionadas e recrutou estudantes chineses que estudavam nos EUA. Em fevereiro de 1989, dois meses antes de a CIA lançar sua campanha de desestabilização em Tiananmen, o presidente Bush fez sua primeira e única visita à China.

A visita do presidente George H. W. Bush a Pequim em fevereiro de 1989, dois meses antes do início das manifestações.

Quando os protestos estudantis eclodiram no final de abril, a NED enviou milhares de cartas inflamadas de Washington para destinatários na China e despertou a opinião pública por meio de transmissões de ondas curtas da Voz da América (VOA), em mandarim para toda a China nos dias dos protestos. Em Nanquim, os estudantes universitários tinham caixas de som ligadas no máximo com a VOA descrevendo os acontecimentos no país.

Deng mandou prender o estrategista da CIA, Gene Sharp, e o expulsou para a então britânica Hong Kong, de onde passou a dirigir a insurreição, como relata em seu livro de memórias, Luta não violenta na China. Outro agente da CIA, o chefe da VOA em Pequim, Alan Pessin, forneceu encorajamento, provocação, orientação estratégica e aconselhamento tático em transmissões ininterruptas, e os estudantes que estavam nos EUA falavam ainda da terra prometida de “liberdade e democracia” da VOA.

A Aliança Chinesa pela Democracia, financiada por Taiwan, publicou uma Carta Aberta de Nova York que, reproduzida na Universidade de Pequim em 26 de abril, pedia “consolidação dos elos organizacionais estabelecidos durante o movimento, fortalecendo os contatos com os críticos e fortalecimento do apoio ao movimento em todos os setores da sociedade”. O governo taiwanês forneceu US$ 1 milhão para equipamentos e levou seu mais proeminente membro (e futuro nobelista) Liu Xiaobo de Washington para liderar os protestos. A líder local dos estudantes, Chai Ling, detendo secretamente um visto dos EUA, acusou irritadamente Liu de usar o movimento estudantil para “melhorar sua própria imagem”.

Estava montado o palco para a violência. Líderes estudantis moderados argumentaram que, com diálogo, os estudantes deveriam ter se retirado para continuarem vivos para lutar outro dia, mas Chai Ling exigiu que todos ficassem, explicando[6]: “Alguns colegas me perguntaram quais são nossos planos, quais serão nossas demandas no futuro. Isso fez me sentir mal do coração; eu comecei a lhes dizer que o que estávamos esperando era, na verdade, o derramamento de sangue, pois será que os olhos do povo do nosso país serão verdadeiramente abertos somente quando o governo descer às profundezas da depravação e decidir lidar conosco matando-nos? Somente quando rios de sangue corressem na praça? Mas como eu poderia dizer isso a eles? Como eu poderia dizer a eles que suas vidas teriam que ser sacrificadas para que nós ganhássemos?”.

Wang Yam, seu colega organizador, apoiou publicamente o apelo de Chai Ling pela violência e deu aos conservadores do governo a desculpa de que precisavam, conforme disse um veterano da Longa Marcha: “Aqueles malditos bastardos! Quem eles pensam que são, pisando em solo sagrado como Tiananmen? Eles estão realmente pedindo por isso! Devemos enviar as tropas agora mesmo para pegar os contrarrevolucionários! O que é o Exército de Libertação do Povo, afinal? Quais são as tropas da lei marcial para isso? Elas não servem apenas para sentar e comer!”.

À meia-noite do dia 3 de junho, seis semanas após o início dos protestos, as tropas começaram a se mover da estação de trem para a cidade, sob ordens de não atirar, a menos que houvesse disparos. Um oficial mais tarde testemunhou em inquérito: “Se tivéssemos permissão para nos deixar ir, um batalhão teria sido suficiente para acabar com a revolta, mas, com os manifestantes se escondendo atrás de espectadores, tivemos que pesar a nossa mão”. No caminho, um soldado foi pego, jogado de um viaduto e morto, outro encharcado com gasolina e incendiado, um foi espancado até a morte e estripado, e três major-generais foram atacados e hospitalizados. Os amotinados saquearam armas e munições dos caminhões capturados e atacaram prédios do governo. Líderes distribuíram facas, barras de ferro, tijolos e correntes, exortando as pessoas a “pegarem em armas e derrubarem o governo”.

Comboios militares foram atacados e saqueados por manifestantes.

Às seis horas da noite seguinte, os alto-falantes disseram aos pequineses para que permanecessem em casa enquanto as tropas recebiam ordens para reprimir à força a revolta e, quando os soldados se deslocaram, os amotinados queimaram centenas de veículos, incluindo 60 carros blindados e 30 viaturas policiais. James C. Hsiung, professor da Universidade de Nova York,[7] assistiu à ação de seu quarto no Hotel de Pequim:

Depois da meia-noite, vi tropas indo a pé do leste em direção à Praça Tiananmen, sem capacetes ou armas. Ao se aproximarem da praça, foram bloqueadas por enormes multidões e foram forçadas a recuar, deslocando-se de volta na direção (leste) de onde tinham vindo. Em sua rota de retirada, as tropas foram perseguidas pelas multidões, muitas atirando pedras e tijolos. Não muito tempo depois, as tropas voltaram de caminhão, desta vez com capacetes e armas na mão. Até então, as multidões tinham criado mais bloqueios. Enquanto os caminhões estavam negociando o percurso, as multidões os detiveram com uma enxurrada de pedras. Esse salve-se-quem-puder continuou por algum tempo, durante o qual muitos soldados foram mortos ou feridos; e alguns perderam suas armas para os bandoleiros. Então vieram os reforços blindados cuspindo fogo, aparentemente em vingança, na multidão ao longo dos dois lados da estrada. Além dos rufiões e estudantes, muitos eram meramente espectadores. As multidões, todavia, lutaram muito. Eles subiram no topo dos tanques que vinham. Alguns até usavam coquetéis molotov ou os equivalentes de um lança-chamas contra os tanques. Um tanque foi em chamas. Quando os três soldados do lado de dentro abriram o trinco para fugir do calor, alguns vândalos gritaram: “Mate-os, mate-os!”. Um repórter de rádio da BCC (Taiwan) registrou a gritaria. Mais tarde, ele me contou que viu os três soldados mortos por combatentes. Um amigo chinês-americano, em cuja casa eu havia sido hóspede de um jantar apenas duas noites antes, mais tarde me ligou e disse que um ataque semelhante aconteceu em frente ao prédio deles. O cadáver de um soldado, caído em um caminhão de transporte de tropas incinerado, foi incendiado por seus assassinos, que despejaram gasolina no corpo. Em todos os casos que sabíamos, os bandoleiros eram muito mais velhos do que a maioria dos estudantes universitários e não pareciam ser estudantes.

Informados de que as tropas estavam se aproximando da Praça Tiananmen e de que os tiros começaram, os estudantes começaram a se retirar às 5 da manhã e foram embora às 6h30. O jornalista Che Muqi⁠[8] relata sua conversa com Kong Xiangzhi, professor da Universidade do Povo Chinês:

Por volta das 0h10, as tropas marcharam em direção leste da Avenida Chang’an. Eu estava sentado nos degraus do lado de fora da entrada oeste do Grande Salão do Povo. Quando as tropas marcharam em direção à praça, vi um grupo de pessoas atirando pedras nelas. Quando alguns soldados foram até eles, eles correram para o sul. Esses soldados atiraram para o ar. Então alguns outros soldados apareceram, mas eles não atiraram na multidão. Caso contrário eu teria sido baleado, já que eu estava na calçada.

Caminhei até a entrada leste do Grande Salão, onde várias centenas de soldados estavam sentados e algumas pessoas conversavam com eles. A atmosfera parecia amigável. Quando vi alguém amarrando a ferida de um jovem soldado, subi para ajudar e perguntei como ele havia sido ferido. Ele me disse que tinha sido atingido por pedras. Ele também me contou que muitos de seus camaradas também haviam sido feridos. Vi muitos cuja cabeça, braços ou mãos estavam atados com gaze. Eu disse a ele que acreditava que a maioria dos estudantes e residentes não faria isso. Ele concordou comigo. Então, um oficial veio falar conosco. Ele disse que as tropas nunca abririam fogo contra as massas ou os estudantes. Por volta das 3h30 da manhã, as tropas começaram a entrar. O oficial então disse a seus homens: ‘Vamos limpar a praça. Agora, quero deixar claro que ninguém pode atirar nos estudantes ou nas pessoas; essa é a mais alta forma de disciplina’.

Por volta das 4h10, todas as luzes da praça apagaram-se. Muitos soldados saíram da entrada leste do Grande Salão. Sentei-me para observar debaixo dos pinheiros, sentindo-me sobressaltado e nervoso. Eu estava nervoso porque essa era a primeira vez que eu via tantos soldados carregando armas, e eu não sabia como eles iriam limpar a praça. Às 4h30, as tropas da lei marcial anunciaram o alto-falante: ‘Atenção, estudantes. Nós concordamos com seu apelo. Vamos permitir que vocês saiam em paz’. O anúncio foi transmitido repetidas vezes. Por volta das 4h50, os estudantes ao redor do monumento começaram a sair. Olhei em volta e vi que quase não havia ninguém à vista. Então voltei com os estudantes. Isso foi às 5h05 da manhã. Isso foi o que eu vi na época. Ninguém foi morto durante todo o processo. Algumas pessoas com segundas intenções que haviam fugido para o exterior espalharam rumores de que a Praça Tiananmen tinha sido palco de um banho de sangue e que eles tiveram que sair dela debaixo dos cadáveres, o que era pura tolice.

O famoso artista taiwanês Hou Dejian resumiu sua experiência: “Algumas pessoas disseram que 200 morreram na Praça e outros alegaram que dois mil morreram. Havia também histórias de tanques atropelando estudantes que estavam tentando sair. Eu tenho que dizer que não vi nada disso. Eu não sei onde essas pessoas morreram. Eu mesmo estava na praça até as 6h30 da manhã”. O futuro nobelista Liu Xiaobo permaneceu até o final e disse que não viu ninguém machucado.

Em 19 de junho, o secretário do Partido em Pequim, Li Ximing, entregou os resultados do inquérito oficial. Mais de 7 mil foram feridos e 241 mortos, incluindo 36 estudantes, 10 soldados e 13 policiais armados durante um tumulto na Avenida Chang’An.

Cenário de destruição de tanques e comboios militares incendiados pelos manifestantes.

Apesar de todos os seus fracassos, tragédias e confusões, o incidente de Tiananmen está entre as campanhas de propaganda mais bem-sucedidas da história. Muito tempo depois de a história do massacre já ter sido refutada, jornalistas estrangeiros – todos que haviam deixado a praça – disseram a seus leitores que os estudantes estavam reivindicando os valores ocidentais em face do “totalitarismo vermelho chinês”. Seu massacre fabricado deu ao Ocidente uma desculpa para embargar novamente a China e rotulá-la de pária internacional dos direitos humanos.

Alguns jornalistas, sinólogos e funcionários tinham segundas intenções. “Acredito que tentamos colocar um selo de democracia ‘made in USA’ no incidente”, afirmou Jackie Judd,[9] da ABC. O fotógrafo Jeff Widener[10] disse que tirou a foto do homem-tanque em 5 de junho, mais de um dia depois de os estudantes terem deixado a praça (a Associated Press ainda distribui a imagem como se fosse do dia 4 de junho).

A foto de Widener mostra um homem parando quatro tanques, mas outra fotografia, tirada por Stuart Franklin alguns segundos antes, mostra 19 tanques atrás dos quatro de Widener e deixa claro que os tanques estavam deixando a praça, indo para o leste, para fora da cidade.

E a história continuou a vazar para o exterior[11]:

O chefe da CIA interpretou mal a reação, disseram fontes.

WASHINGTON (Reuters) – O chefe da CIA na China deixou o país dois dias antes das tropas chinesas atacarem manifestantes na capital Pequim em 1989, depois de prever que os militares não agiriam, disseram autoridades dos EUA. O governo da China havia declarado lei marcial 12 dias antes e transferiu dezenas de milhares de soldados para os arredores de Pequim, preparando-se para remover os manifestantes da Praça Tiananmen.

A Agência Central de Inteligência tinha fontes entre os manifestantes, bem como nos serviços de inteligência da China com os quais mantinha um relacionamento próximo desde a década de 1970, disseram os funcionários, que falaram esta semana sob condição de anonimato.

Durante meses antes do ataque de 3 de junho aos manifestantes, a CIA havia ajudado os ativistas estudantis do movimento antigoverno, fornecendo máquinas de escrever, máquinas de fac-símile e outros equipamentos para auxiliá-los a espalhar sua mensagem, afirmou um funcionário.

Nas semanas que antecederam o derramamento de sangue de 1989, a CIA monitorou de perto a tensão crescente usando seus oficiais, diplomatas na embaixada dos EUA e uma rede de informantes entre os estudantes que lideraram o protesto. Mas como o protesto perdeu força, o chefe da estação da CIA decidiu que a ameaça de confronto havia sido desativada, disse um funcionário. A CIA se recusou comentar”.

O correspondente da BBC em Pequim, James Miles, confessou ter “transmitido a impressão errada e que não houve massacre na Praça Tiananmen. Os manifestantes que ainda estavam na praça quando o exército chegou foram autorizados a sair depois de negociações com as tropas da lei marcial. Não houve massacre na Praça Tiananmen”. Contudo, mesmo depois de a Columbia Journalism Review desacreditar a história do massacre,[12]  e o WikiLeaks divulgar o telegrama do embaixador James Lilley em 12 de julho (um mês após os eventos), poucos editores ficaram interessados:

“EVENTOS DE 3-4 DE JUNHO NA PRAÇA DE TIANANMEN

      1. CONFIDENCIAL – TEXTO INTEIRO.
      2. Resumo – Durante uma reunião recente, um diplomata latino-americano e sua esposa forneceram um relato dos seus movimentos em 3-4 de junho e seu relato de testemunhas dos eventos na praça de Tiananmen. Embora seu relato siga geralmente as informações previamente reportadas, suas experiências únicas fornecem uma visão adicional e corroboração dos eventos na praça. Eles puderam entrar e deixar a praça várias vezes e não foram assassinados pelas tropas. Permanecendo com os alunos no Monumento aos Heróis do Povo até a retirada final, o diplomata disse que não houve tiroteios em massa na praça ou no monumento. Resumo final. (Ênfase minha)
      3. Gallo [o segundo secretário chileno Carlos Gallo e sua esposa] finalmente terminou na estação da Cruz Vermelha, novamente torcendo para que as tropas não disparassem contra o pessoal médico lá. Observou os militares entrarem na praça e não observaram quaisquer tiros em massa contra as multidões, embora tenham ouvido espingardas esporádicas. Ele disse que a maioria das tropas que entraram na praça estavam realmente armadas com equipamentos antidistúrbio – cassetetes e pedaços de madeira … (Ênfase adicionada)
      4. Embora tiros pudessem ser ouvidos, Gallo disse que, com a exceção de algum enfrentamento com estudantes, não houve tiroteio em massa na multidão de estudantes no monumento. Quando mencionados alguns relatos de massacres no monumento reportadamente com o uso de armas automáticas, Gallo disse que não houve tal chacina, uma vez que um acordo foi alcançado para que os estudantes se retirassem, juntando as mãos para formar uma coluna. Os estudantes deixaram a praça através da ponta sudeste da praça. Essencialmente todos, incluindo Gallo, deixaram a praça. Os poucos que tentaram permanecer atrás apanharam e foram conduzidos para se juntarem ao final do processo de partida. Uma vez fora da praça, os estudantes se dirigiram a oeste com Qianmen Dajie, enquanto Gallo se dirigiu para o leste com seu carro. (Ênfase minha)”

O Ministério da Segurança Pública emitiu mandados de prisão para 21 manifestantes, incluindo Liu Xiaobo, Wang Dan, Wu’er Kaixi, Liu Gang e Chai Ling, mas a Operação Yellow Bird (“Pássaro amarelo”), da CIA, já havia resgatado 400 lideranças e as levado para países ocidentais. O embaixador Lilley afirmou que os EUA estavam envolvidos em “exfiltrações quase exclusivamente legais”, embora mais tarde tenha sido provado que a notória organização criminosa Sun Yee On, tríade de Hong Kong, estivesse envolvida na operação.

Alguns meses após o evento, Deng discutiu o incidente com o acadêmico sino-americano Li Zhengdao: “Ao reprimir o tumulto, nos esforçamos para evitar ferir as pessoas, especialmente os estudantes; esse foi o nosso princípio orientador”. Deng criticou seu colega Zhao Ziyang, que, segundo ele, “estava claramente se apresentando como aliado dos agitadores e tentando dividir o Partido”, e teria afirmado ao chanceler Helmut Schmidt, da Alemanha Ocidental: “Os estudantes não devem ser tão culpabilizados. As raízes do problema estão na liderança do Partido”.

Em O Legado de Tiananmen, James A. R. Miles explicou: “Um ano depois da Tiananmen, Deng comentou seus medos de uma guerra civil durante uma reunião com o ex-primeiro ministro canadense Pierre Trudeau. ‘Você pode imaginar’, disse Deng, ‘como seria a China em turbulência. Se a turbulência entrar em erupção na China, não seria apenas um problema do tipo Revolução Cultural. Naquela época (durante a Revolução Cultural), você ainda contava com o prestígio da geração mais velha de líderes como Mao Tsé-tung e Zhou Enlai. Mesmo que tenha sido descrita como uma ‘guerra civil total’, na verdade, não aconteceram grandes lutas. Não foi uma guerra civil adequada. Agora não é a mesma coisa. Se a turbulência irromper novamente, na medida em que o Partido não for mais eficaz, o poder do Estado não for mais eficaz e uma facção tomar uma parte do exército e outra facção tomar outra parte do exército, isso seria uma guerra civil. Se alguns dos chamados combatentes democráticos tomarem o poder, eles começarão a lutar entre si. Assim que a guerra civil começar, haverá rios de sangue. Qual seria então o significado de falar sobre ‘direitos humanos’? Assim que a guerra civil começar, os senhores da guerra locais surgirão em todos os lugares, a produção despencará, as comunicações serão cortadas, e não será uma questão de alguns milhões ou mesmo dezenas de milhões de refugiados. Haveria mais de 100 milhões de pessoas fugindo do país, e a primeira a ser afetada seria a Ásia, hoje a parte mais promissora do mundo. Seria um desastre global’”.

Lee Kwan Yew, primeiro-ministro de Singapura, disse que teria atirado em 200 mil manifestantes para manter a estabilidade, e o embaixador dos EUA, Charles Freeman, opinou: “Não posso conceber nenhum governo americano se comportando como a contenção mal feita da administração que Zhao Ziyang encabeçou na China, permitindo que os estudantes ocupem zonas que são o equivalente ao National Mall de Washington e à Times Square juntas, ao mesmo tempo que inviabilizam muitas das operações normais do governo chinês”.

A análise operacional da CIA atribuiu o fracasso à “dificuldade de mobilizar jovens ativistas na direção desejada devido à ausência de fortes polarizações na sociedade chinesa”, e os analistas chineses atribuíram a ausência de tais fortes polarizações à Revolução Cultural, que Mao havia conduzido especificamente para esse fim.

Os estudantes flagraram sua líder, Chai Ling, deixando a praça e a detiveram, acusando-a de abandoná-los para morrer. Ela escapou e gravou um discurso dizendo que ela testemunhou, pelo menos, 20 estudantes e trabalhadores sendo massacrados na praça. Ela recebeu uma bolsa de estudos na Universidade de Princeton e foi nomeada para o Nobel da Paz de 1990. Apesar de ter saído da praça horas antes da chegada dos militares, outro líder, Wu’er Kaixi, afirmou ter testemunhado tanques matando centenas de manifestantes ao passarem por cima deles enquanto dormiam. Liu Xiaobo, mais tarde premiado com o Prêmio Nobel da Paz, ajudou os estudantes a evitarem derramamento de sangue e foi perdoado. Ele também disse que ninguém na praça foi machucado.

O vice-presidente do corpo estudantil de Tiananmen e líder do motim na Avenida Chang’An, Wang Yam, foi transferido para o Reino Unido e recebeu a cidadania britânica. Em 2006, ele foi julgado em Londres, no primeiro julgamento de assassinato no Reino Unido a ser realizado em segredo, por espancar até a morte um idoso. O Procurador da Coroa exigiu que o julgamento de Wang fosse realizado a portas fechadas, e o juiz de primeira instância concordou e censurou as especulações da mídia. Wang Yam foi condenado por homicídio em primeiro grau, e o MI6, agência de inteligência britânica, admitiu que ele era seu empregado.

Em 1998, o presidente Bill Clinton discutiu o incidente com o presidente Jiang Zemin, conforme John Border[⁠13] relatou: “O drama do encontrou aconteceu em uma coletiva de imprensa de 70 minutos, transmitida ao vivo pela televisão chinesa, na qual os dois presidentes nitidamente divergiam sobre a natureza da liberdade pessoal, o papel do Estado e o significado das manifestações da Praça Tiananmen, que foram violentamente reprimidas pelo governo chinês em junho de 1989. Clinton disse categoricamente ao líder chinês que seu governo estava ‘errado’ em usar a força para acabar com as manifestações pacíficas da primavera de 1989 e que ampla liberdade pessoal e de expressão política eram o preço de admissão da China à comunidade mundial do século XXI. ‘Apesar de todos os nossos acordos, ainda discordamos sobre o significado do que aconteceu naquela época’, disse Clinton em sua declaração de abertura, referindo-se à repressão violenta na Praça Tiananmen na noite de 3 a 4 de junho de 1989, que deixou centenas de manifestantes mortos”.

Três anos após Tiananmen, em resposta a manifestações em Los Angeles, o presidente Bush enviou milhares de soldados dizendo: “Não pode haver desculpa para o assassinato, incêndio, roubo ou vandalismo que aterrorizaram o povo de Los Angeles. Deixe-me assegurar a vocês que usarei qualquer força necessária para restaurar a ordem”. 66 pessoas morreram, 11 mil foram presas, e a mídia classificou a ação do presidente como “decisiva”. No ano seguinte, quando o presidente Clinton ordenou que as forças federais atacassem uma comunidade cristã em Waco, no Texas, foram mortos 81 homens, mulheres e crianças. Ninguém foi responsabilizado.

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Notas:

[1] – Mandato do Céu: O Legado da Praça Tiananmen e a Próxima Geração. Por Orville Schell.

[2] – Reforma Educacional da China nas Políticas, Questões e Perspectivas Históricas dos anos 80. SUZANNE PEPPER. 1990. INSTITUTO DE ESTUDOS DO LESTE ASIÁTICO DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, NO CENTRO DE BERKELEY PARA ESTUDOS CHINESES.

[3] – China Rising: The Meaning of Tiananmen https://www.amazon.com/gp/product/0929587308/ref=as_li_tl?ie=UTF8&camp=1789&creative=9325&creativeASIN=0929587308&linkCode=as2&tag=inpraiseofchi-20&linkId=fe9aef54d84dbb0f5e056169f9f74077

[4] Mike Chinoy, China Live: Two Decades in the Heart of the Dragon, p. 242.

[5] – Trabalhadores nos protestos de Tiananmen: A política da federação autônoma dos trabalhadores de Pequim. Autor(es): Andrew G. Walder e Gong Xiaoxia. Fonte: The Australian Journal of Chinese Affairs, nº. 29 (Jan. 1993), pp. 1-29.

[6] – Cries for Democracy: Writings and Speeches from the 1989 Chinese Democracy Movement (Princeton Univ Press, 1990), p. 327.

[7] – Quando este autor foi perguntar ao Dr. Hsiung, ele respondeu: “Isso poderia estar em um paper (artigo) que eu apresentei em um encontro em Nova York. O encontro tinha sido marcado muito antes do dia 4 de junho de 1989. Eu deveria entregar um paper no encontro. Mas, como eu havia chegado apenas alguns dias antes do encontro, não tive tempo para escrever o artigo. Então, eu apresentei meu relato sobre o que presenciei na Praça Tiananmen.

Posso assegurar a vocês que recebi em resposta reações muito fortes, quase agitadas. Uma pessoa na plateia até disse: ‘Não pense que você pode nos enganar. Nós também testemunhamos tudo pela TV’. Então, assistir TV fez dele uma testemunha ocular também.

Se você puder ler em mandarim, eu tenho um artigo escrito no 20º aniversário da tragédia de 4 de junho, intitulado “一個 天安門 事件 ‘變相 受害者’ 的 喊冤 回憶” (As dolorosas reminiscências de uma ‘vítima virtual’ do acontecimento em Tiananmen), publicado na Taiwan’s Straits’ Review (海峽評論) n. 223 (julho de 2009), pp. 173-178.”

[8] – Che Muqi: “Turbulência em Pequim – Mais do que se vê”, Foreign language press, Pequim 1990, ISBN 0-8351-2459-2; 7-119-01305-X

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[9] – Cobertura da crise:

TUMULTO EM TIANANMEN

UM ESTUDO DA COBERTURA DE IMPRENSA DOS EUA DA PRIMAVERA DE PEQUIM DE 1989.

[10] – Nos bastidores: Homem-tanque de Tiananmen, NYT

[11] – The Vancouver Sun; Vancouver, B.C. [Vancouver, B.C] 17 de setembro de 1992: A20 (1ª edição)

[12] – O Mito da Tiananmen

[13] – The New York Times: http://www.nytimes.com/1998/06/28/world/clinton-china-overview-clinton-jiang-debate-views-live-tv-clashing-rights.html

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