Esta é a terceira e última parte de uma série. Leia aqui a segunda e a primeira parte.
A entrada soviética na Guerra e a divisão e ocupação da Península Coreana
Apesar de ser comumente reconhecido que a entrada da União Soviética na Segunda Guerra Mundial contribuiu não só para a destruição do Exército Japonês Kwantung, mas também para a divisão da Península Coreana, há alguma incerteza sobre a reação soviética à Ordem Geral n.º 1 emitida pelo general MacArthur. Um documento recentemente revelado dissipa tal incerteza. Em uma carta pessoal e secreta para o presidente Truman, Stálin seria explícito sobre sua aquiescência à ordem geral que dividia a Península:
“Eu, no geral, concordo com o conteúdo da Ordem Geral nº1 a qual você acaba de me enviar, desde que Dairen seja parte da região da Manchúria. Mas sugiro que os seguintes itens sejam revisados: 1) Nos territórios devolvidos pelo Exército Japonês ao Exército Soviético, as Ilhas Kuril devem ser incluídas na decisão dos Poderes Aliados […]”[1]
Stálin não apenas queria adquirir Dairen (Dalian) e a seção da Península Coreana acima do Paralelo 38, mas, também desejava as Ilhas Kuril. Ele não tinha nenhuma objeção quanto à divisão da Península Coreana.[2] A ordem de Stálin de 20 de setembro de 1945 revela, ademais, que ele não somente concordava com a divisão da Coreia; ele também estava tentando instalar um governo pró-soviético no Norte acima do Paralelo 38.
Eventos subsequentes, entretanto, mostram que as intenções de Stálin não eram facilmente implementáveis. Ao contrário, soviéticos e norte-coreanos se encontravam em uma complexa teia enquanto tentavam negociar em meio ao turbilhão revolucionário do período pós-libertação. A União Soviética imediatamente estabeleceu um governo civil em sua “área expandida” e instaurou um comando de assuntos policiais em cada região, mas lhe faltava o poder para exercer controle completo sobre o Norte.[3] Enquanto os coreanos formavam seus comitês populares[4] a União Soviética aprovou, ex post facto, “a participação direta de pessoas do Partido Comunista e do movimento nacionalista burguês” e tentou uni-los sob a “liderança do Alto Comando do Exército Vermelho”.[5] Após isso, os soviéticos seguiram um curso pragmático quando admitiam as atividades políticas autônomas dos coreanos. Como resultado, mesmo estando os coreanos sob forte influência soviética, eles ainda possuíam uma considerável latitude para supervisionar seus próprios assuntos. Os comunistas coreanos adotaram um modelo de desenvolvimento de estilo soviético, por exemplo, mas o adaptaram às suas circunstâncias de tal forma que se tornou o modelo Juche – não apenas diferente do enquadramento soviético, mas também independente de sua influência.[6]
À medida que a balança do poder estava mudando dentro do Norte, uma mudança igualmente importante ocorreu na Conferência de Moscou de Ministros Estrangeiros de dezembro de 1945, na qual o destino da Coreia estava sendo discutido.[7] Na conferência, os Estados Unidos propuseram um conselho de quatro nações no qual a superioridade de três (Estados Unidos, Grã-Bretanha e China) dominaria sobre a outra (União Soviética).[8] A proposta soviética, em contraste, estava centrada no estabelecimento pelos coreanos de um Governo Provisório Coreano.[9] Essas propostas diferentes traziam o paralelismo das diferentes situações políticas no Sul e no Norte da Coreia. No Sul, o governo militar estadunidense mantinha controle em colaboração com uma minoria de políticos de direita. No Norte, os coreanos não somente eram incluídos nos dez maiores comissariados da Administração Norte-coreana, mas estavam, de fato, conduzindo o desenvolvimento político em cooperação com os soviéticos.[10]
Em 27 de Dezembro de 1945, a Conferência de Moscou concordou em resolver a querela coreana na linha seguida pela proposta soviética.[11] A Resolução de Moscou deixou, ao menos, duas coisas claras sobre as relações entre a Coreia e o restante do mundo. Primeiro, ela substituiu uma declaração clara sobre a independência da Coreia pela imprecisão da Declaração do Cairo de 1943 que a Coreia receberia sua independência “em seu devido tempo”. Segundo, ela pressagiava que, a partir de então, os Estados Unidos e a União Soviética influenciariam diretamente o futuro da Coreia.
A decisão de Moscou marcou uma separação do estado contínuo de uma ocupação dividida entre o norte e o sul.[12] Ao tempo que a Conferência fora convocada, os Estados Unidos e a União Soviética já haviam unilateralmente implementado suas políticas de ocupações por um período de três ou quatro meses. Baseados nas circunstâncias previamente constituídas, a discussão da querela coreana poderia começar, visto que cada lado já havia estabelecido as fundações para implementar suas próprias políticas. Mantendo a fachada da aliança do período da Guerra, os dois lados agiam como se estivessem interessados em estabelecer um Estado coreano unificado, mas suas intenções reais eram completamente diferentes.
Em um telegrama de março de 1946 para o secretário de Estado estadunidense, um conselheiro político americano na Coreia, C. W. Thayer, endossa de forma inequívoca um governo separado no Sul enquanto uma política realista e sábia:
“[…] o propósito da política norte-americana em relação à Coreia não é pela sua independência, mas deve sê-lo para bloquear o controle soviético da Coreia […] forçar uma política para o estabelecimento de um governo de direita pró-americano e fortemente antissoviético no Sul é realista e sábio.” [13]
Seguindo a diretiva do secretário de Estado, George Marshal, para o secretário-assistente de Estado, Dean Acheson, para “preparar um esboço de política para criar um governo separado no Sul” em janeiro de 1947,[14] os Estados Unidos propuseram à Rússia que as fronteiras na Península Coreana fossem claramente determinadas.[15] À medida que a Doutrina Truman intensificava a Guerra Fria, a transferência da questão coreana às Nações Unidas pressagiava a tragédia da divisão permanente e do conflito mutuamente destrutivo. A confrontação entre Estados Unidos e União Soviética, por último, forçou o estabelecimento de governos separados nas Coreias do Norte e do Sul.
Se a Conferência de Ministros Estrangeiros de Moscou inequivocamente apresentou a situação internacional relativa à Península da Coreia, então o minju kijiron (argumento da base democrática) efetivamente expressou o conhecimento da Coreia do Norte do estado da situação, bem como sua contra-estratégia. Os comunistas norte-coreanos estavam tentando afirmar o Juche do país – em vez de agir passivamente – sob as circunstâncias internacionais que marginalizavam a voz coreana.
No começo de sua atividade política, Kim Il-Sung falou em termos obscuros sobre o minju kiji noson (linha da base democrática).[16] Em um relatório, ele afirmava que “ainda que apenas na região norte da Coreia, onde a liberdade da atividade democrática está garantida, a tarefa candente é tornar a Coreia do Norte na base do desenvolvimento democrático da Coreia ao estabelecer as fundações política, econômica e cultural para a futura República Democrática Popular.”[17] A 16ª clausula do comunicado da reunião inaugural do Partido Comunista da Coreia do Norte também aludia ao “caráter único da região norte da Coreia”.
Uma ofensiva iniciada, até certo ponto, pelos comunistas coreanos, o objetivo do minju kiji noson era alcançar uma revolução em toda a Coreia para primeiro estabelecer a região norte como a área de suporte e base revolucionária para um movimento comunista coreano. Ao mesmo tempo, também era uma reação defensiva frente aos desenvolvimentos internacionais contínuos: as instituições da liderança central do Partido estavam localizadas em Pyongyang como uma estratégia cautelar contra os potenciais ataques estadunidenses ou outras emergências.[18]
Em 1945, declarações claras sobre a “base revolucionária” e a “base democrática” não foram bem divulgadas, mas a compreensão situacional e a linha estratégica dos comunistas do Norte eram claramente baseadas na política de se estabelecer uma base democrática. Os comunistas do Norte tornaram pública a sua postura na fundação do Comissariado do Ramo norte-coreano do Partido Comunista Coreano. Em outras palavras, é impossível compreender a linha da base democrática sem também considerar o estabelecimento do Comissariado do Ramo Norte-coreano.
A mudança nas relações norte-coreano-soviéticas e a sua influência na formação do sistema político norte-coreano
Desde a época da libertação, a Coreia do Norte já havia começado a desenvolver seu sistema político único, que continua em vigor até hoje.[19] Em abril de 1946, Kim Changman, o líder do Departamento de Propaganda do Partido Comunista Norte-coreano, começou a usar expressões que refletiam as características do sistema político norte-coreano. Dentre elas, “atualização da inimitável orientação”, “a única e unificada segurança da orientação das massas”, “o estabelecimento do sujeito frente a orientação” e “a perspectiva da linha revolucionária de massas”.[20] Acadêmicos da Coreia do Norte também começaram a minimizar o papel da União Soviética na libertação da Coreia e na construção da nação. Após os anos 1960, as histórias gerais da Coreia do Norte praticamente eliminaram as atividades soviéticas no período pós-libertação. Em seu lugar, o povo norte-coreano fora inscrito em uma posição central enquanto os sujeitos da construção nacional.[21]
Por sua vez, os soviéticos criticaram asperamente os julgamentos negativos dos acadêmicos norte-coreanos da União Soviética. Para enfatizar as façanhas do povo soviético, que participou da libertação da Coreia e da construção do socialismo na Coreia do Norte, autores soviéticos publicaram diversos estudos, dentre os quais, Para a benevolência do Povo Coreano (1965), A Benevolência Indestrutível (1971), A Libertação da Coreia (1976) e Pela Paz na Coreia (1985). Todos esses trabalhos argumentam enfaticamente que foi a União Soviética quem “causou o colapso do fascismo alemão e do militarismo japonês e desempenhou um papel decisivo na libertação da Coreia, China e de toda a região nordeste da opressão colonial”.[22]
Por que os norte-coreanos e os soviéticos apresentam o mesmo conjunto de eventos de forma tão oposta e até mesmo contenciosa? Quais eventos e problemas causaram a discórdia entre a Coreia do Norte e a União Soviética nos anos 1950? Em maio de 1955, a União Soviética anunciou a criação da Organização do Tratado de Varsóvia (ou Pacto de Varsóvia). Na Conferência da Cimeira de Genebra dois meses depois, Moscou revisa sua política de apoiar a unificação da Alemanha para a aprovação de “duas Alemanhas” e torna o acordo realidade, ao estabelecer relações diplomáticas com a Alemanha Oriental em setembro. O governo norte-coreano reagiu alarmado a essa sequência de ações soviéticas – as quais, ocorrendo em um Estado dividido como a Alemanha Oriental, definiam uma Coreia unificada enquanto uma agenda prioritária.[23] O governo norte-coreano demandava o direito de lidar com seus próprios problemas de forma independente, de acordo com suas próprias convicções e circunstâncias. Contudo, a Coreia do Norte estava lutando uma penosa batalha, cujo custo poderia ser vultoso contra a então dominante União Soviética.
A ansiedade do governo coreano foi amplificada pelo fato que muitas pessoas percebiam a União Soviética como uma fonte de legitimidade, orientação e suporte. Algumas destas mesmas pessoas desacreditavam o legado cultural tradicional coreano, considerando-o antiquado, e almejavam a cultura soviética, percebida como moderna e avançada. Outros queriam aderir às demandas dos soviéticos porquanto eles priorizavam a educação e estavam despejando recursos em pesquisas científicas e no ensino da história, geografia e costumes soviéticos. Até mesmo alguns membros do Partido dos Trabalhadores da Coreia começaram a dar apoio aos soviéticos. Porém, em 29 de dezembro de 1955, o premier Kim Il-Sung liderou a contraofensiva ao crescente suporte aos Soviéticos conclamando os membros do partido a “eliminar o dogmatismo e o formalismo na atividade ideológica e se manter firme no estabelecimento do Juche”. Esse grande discurso público foi uma medida preliminar para proteger a autonomia da estrutura política norte-coreana no momento em que a taegukchuui (grande poder – chauvinismo) da União Soviética estava penetrando a sadaejuui (política de se servir à grandeza) da Coreia do Norte. “Amar e cuidar de nossas próprias coisas é patriotismo e Juche”, enfatizava Kim nesta campanha.[24] Quando a União Soviética criticou estas medidas como “antissoviéticas” e “promoção do nacionalismo”, o governo da Coreia do Norte respondeu aprofundando a articulação de sua própria ideologia, teoria e métodos.
A morte de Stalin em 1953 não trouxe o fim dos problemas de Pyongyang com Moscou. A campanha de desestalinização de Khrushchev mirou diretamente em Kim Il-Sung, muitas vezes, chamado de “Pequeno Stalin”. À medida que a febre de expulsão de stalinistas varria os países socialistas, Moscou também direcionou o Partido dos Trabalhadores da Coreia para resolver o assim chamado culto de personalidade em torno de Kim Il-Sung. Em abril de 1956, quando o Terceiro Congresso do Partido dos Trabalhadores da Coreia (PTC) foi instaurado, Moscou despachou um grupo de representantes que sugeriu a interlocutores norte-coreanos que o problema do “culto à personalidade” fosse mirado e eliminado. O PTC se opôs tão categoricamente àquilo que foi visto como taegukchuui soviético que a situação culminou em outro impasse. Em uma ação desafiadora que enviou uma clara mensagem a Moscou, o Congresso reelegeu Kim Il-Sung como presidente do Comitê Central do Partido.
Quatro meses depois, o PTC realizou uma reunião geral que, pela primeira vez em sua história, abordou um assunto que não estava na agenda. Apesar de sua agenda principal fosse discutir os resultados da viagem do Premier Kim Il-Sung ao Leste Europeu e a reforma das atividades de saneamento, alguns líderes do partido como Choe Changik e Pak Changok se opuserem às políticas do PTC e questionaram a perspectiva de não se seguir as decisões do 20ª Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Eles também criticaram a posição de liderança que o PTC mantinha sobre os órgãos administrativos do governo, chigop tongmaeng (a aliança de ocupação) e o Exército, e admoestaram contra a direção tomada na construção econômica ressaltando que “a indústria pesada está sendo favorecida enquanto a vida das pessoas continua difícil” e “que a comida não cresce das máquinas”.[25] Tais questões eram intimamente ligadas aos objetivos soviéticos de integrar a economia da Coreia do Norte em sua ordem econômica socialista.
No meio da década de 1950, a União Soviética já estava usando o Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON) – estabelecido em 1949 enquanto a organização para a cooperação econômica dos países socialistas – como um meio para subordinar economias socialistas sob o pretexto de “especialização produtiva”. Os soviéticos tentaram persuadir Pyongyang a se juntar ao COMECON e, quando houve a recusa, a criticaram por exibir “inclinações nacionalistas”, “isolamento do sistema socialista” e “possuir um sistema econômico fechado”. A Coreia do Norte continuou a recusar a adesão ao COMECON, principalmente por sentir que a organização subordinava a economia do Norte à da União Soviética, apesar de a troca desigual de produtos entre a Coreia do Norte e a União Soviética ser um problema contínuo.[26] O lema norte-coreano à época era “não viver o hoje para o hoje, mas viver o hoje para o amanhã”, indicando sua resolução em suportar dificuldades temporárias no sentido de construir um futuro livre da interferência estrangeira, fosse dos soviéticos, fosse de quem fosse.
No Congresso Nacional de Cooperativas Agrícolas de janeiro de 1959, realizado em meio à “controvérsia da transição”[27] que permeava as nações socialistas, o PTC estabeleceu – para além do estabelecimento do sistema socialista – as “três revoluções da ideologia, tecnologia e cultura” enquanto suas tarefas revolucionárias continuadas. Em uma reunião com os secretários do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, Kochelov e Andropov, em janeiro de 1963, Kim Il-Sung, de maneira desafiadora, expressou sua oposição ao taegukchuui soviético. Quando ambos o Partido Comunista da União Soviética e o Partido Socialista Unido da Alemanha (o qual seguia as políticas soviéticas) criticaram a ação de Kim, o Rodong Sinmun, jornal oficial do PTC, publicamente anunciou que o Norte perseguiria uma política de “luta anti-imperialista” em detrimento da “coexistência pacífica”.[28]
Durante os anos 1950 e 1960, a União Soviética forçou suas políticas nos países comunistas fronteiriços. Para aquelas nações que optaram por não aceitar a orientação, a União Soviética não hesitou em interferir em seus assuntos internos e pressioná-las política, econômica e militarmente. A Coreia do Norte não foi uma exceção. Agora que a União Soviética possuía armas e mísseis nucleares – como Moscou argumentava com a recalcitrante Pyongyang –, não havia necessidade para que outras nações socialistas gastassem energia fortalecendo seus próprios Exércitos. Os soviéticos subvalorizavam a necessidade norte-coreana por um programa de autodefesa e buscavam passar a impressão que eles se responsabilizariam pela proteção da Coreia do Norte. Na realidade, os soviéticos estavam pressionando politicamente a Coreia do Norte, que estava sob o guarda-chuvas nuclear soviético. O governo da Coreia do Norte respondeu enfatizando seu direito de decidir autonomamente sobre seus assuntos internos com a seleção e estabelecimento de um sistema estatal socialista, a preparação e execução de suas políticas internas e externas e controle jurisdicional sobre sua própria população e terras. A RPDC resistiu à interferência soviética em seus assuntos internos e buscou uma forma de existir independentemente,[29] desenvolvendo gradual e cumulativamente seu sistema político único que privilegia ao Juche a todos os outros fatores.
Conclusão
As origens do Estado norte-coreano podem ser traçadas de volta até a ocupação japonesa da Coreia. De fato, as complexas imbricações entre os coreanos e os poderes estrangeiros moldaram profundamente a instituição Juche que se desenvolveria como sua consequência. Ironicamente, fora o colonialismo japonês quem propiciou os alicerces para o Estado no Norte, uma vez que engendrou o movimento de libertação da Coreia que combateu a colonização nipônica na Coreia e na China e que mais tarde cresceria até se tornar o Estado norte-coreano. No princípio da década de 1930, a luta armada nacionalista dentro da Coreia, baseada no Exército de Independência, chegou ao seu fim, e jovens socialistas, incluindo Kim Il-Sung, iniciaram uma mudança qualitativa no caráter do movimento, ao abrir novos frontes na luta armada. Enquanto o Japão estendia seu braço imperial até a China, as lutas coreanas pela libertação tomaram um caráter transnacional. Comunistas coreanos se juntaram ao PCCh e colaboraram com os chineses na criação de Forças Armadas Aliadas Antinipônicas que combatiam um inimigo comum, a saber, as forças imperiais japonesas na Manchúria. Os japoneses que freneticamente tentavam assegurar a China contra influências ocidentais responderam com ferozes campanhas anti-guerrilha. Em 1940, tais campanhas forçaram o exército amalgamado sino-coreano a buscar abrigo na União Soviética que havia, até então, mantido uma posição neutra na guerra internacional entre os Aliados e o Eixo. Em mais uma reviravolta irônica, esse movimento forçado deu ao grupo de Kim Il-Sung a oportunidade de expandir sua aliança transnacional e incluir os soviéticos, que, após 1945, viriam a exercer uma influência decisiva na Coreia.
Em agosto de 1945, a Coreia foi liberta do colonialismo japonês apenas para ser dividida ao longo do Paralelo 38 e ocupada pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Esses dois países, por meio de suas políticas de ocupação e pela Conferência de Moscou de Ministros Estrangeiros, agora interagiam com o movimento de libertação coreano que buscava recuperar a soberania e constituir um Estado-nação. Nessa Coreia dividida, as forças do movimento de libertação nacional também foram cingidas. Muitos tentaram ganhar influência ao colidir ou com os Estados Unidos ou com a União Soviética. Cada qual buscou grupos autóctones para falarem em seus nomes.
Após 1947, tornou-se claro que o estabelecimento de um Estado coreano unificado e independente havia fracassado. No Norte e no Sul, aparatos estatais individuais foram formados sob a condução de poderes estrangeiros. No Norte, os comunistas se aproveitaram das circunstâncias propícias criadas sob a ocupação soviética para tomar a liderança, em 8 de fevereiro de 1946, para o estabelecimento do Comitê Provisório do Povo Norte-coreano enquanto a organização central do governo. Mesmo dando apoio aos partidos políticos e grupos sociais, os comunistas colocaram o povo no assento condutor da reforma social. Em 28 de agosto de 1946, o PTC foi criado. Em 3 de novembro de 1946, a primeira eleição regular ocorreu na Península Coreana e resultou na formação da Assembleia do Povo da Coreia do Norte e no Comitê do Povo da Coreia do Norte. Em 8 de fevereiro de 1948, deu-se a fundação do Exército do Povo Coreano. Em abril de 1948, a Conferência Conjunta dos Representantes dos Partidos Políticos e Organizações Públicas nas Coreias do Norte e do Sul ocorreu conjuntamente à eleição geral Norte-Sul de Representantes para Assembleia Suprema do Povo. Em 2 de setembro de 1948, a Primeira Assembleia Suprema do Povo foi inaugurada, e a Constituição da República Popular Democrática da Coreia se tornou o alicerce para o estabelecimento da RPDC, a sucessora do Comitê do Povo.[30]
A Coreia do Norte de hoje continua a usar o epíteto estatal República Popular Democrática da Coreia, e sua soberania ainda reside na Assembleia Suprema do Povo e no Comitê do Povo, tal como quando o país foi fundado. Apesar de muito de suas estruturas formais terem permanecido, a Coreia do Norte passou por muitas mudanças durante o período de intervenções. Porquanto tenha sido o estado formado sob a base de uma ideologia de “democracia progressista”, essa foi gradualmente substituída pela revolução socialista por um “socialismo de características autóctones”. O caráter do governo também mudou de uma “ditadura democrático-popular” para uma “ditadura do proletariado”. Se os papéis-chave do nascente governo foram inicialmente desempenhados pela Unidade de Guerrilha Antinipônica de Kim Il-Sung e seus apoiadores comunistas em cooperação com grupos de centro, o governo é atualmente tocado principalmente por antigos trabalhadores e camponeses recrutados após a libertação dentro de um enquadramento formado pelos membros originais da guerrilha antinipônica e sua segunda geração.
Uma característica não se alterou com o tempo e é pouco provável que se altere no futuro próximo: a estrutura de poder concêntrica predicada na lealdade pessoal a Kim Il-Sung e Kim Jong-Il. A unidade de guerrilha antinipônica e sua segunda geração ocupam o centro desses círculos concêntricos. Em torno deles, estão o Partido, os militares e as instituições governamentais, bem como grupos sociais unidos por firmes conexões, os quais funcionam para manter e fortalecer a estrutura reprodutiva daquilo que principiou na Unidade de Guerrilha Antinipônica. Tal é a estrutura de poder institucionalizada na Coreia do Norte do Juche.
[rev_slider alias=”livros”][/rev_slider]Notas:
[1] – STALIN, Josef. “Choguk haebang chõnjaeng sigi So Mi Yõng sunoeja tůl ui sõhanjip” (Coleção de Cartas dos Líderes da União Soviética, dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha no período da Guerra de Libertação da Terra Pátria* – *O termo no original coreano é “terra pai”, N.T.) nº. 363 Pyongyang: Korean Revolution Museum’s Exhibition, pg. 263-64. [2] – PETUKHOV, V. I. U istokov borby za edinstvo i nezavisimosť Korei (Origens da luta pela Unidade e Independência da Coreia) Moscou: 1987, pg. 13 [3] – Conjuntamente ao avanço do Exército Soviético, o Conselho de Assuntos Militares do Distrito Militar Costeiro estabeleceu comandos de polícia militar na Coreia do Norte em seis províncias, oitenta e cinco condados e sete cidades. Ver “Chu Pukhan Soryõn minjõngguk 3-kaenyõn saõp ch’onggyôl pogo: August 1945-November 1948” (Relatório Compreensivo de três anos de atividades do Comissariado do Governo Civil Soviético na Coreia do Norte: Agosto de 1945- Novembro de 1948) Доклад об итогах работы Управления Советской Гражданской Администрации в Северной Корее за три: Август 1945 г.-Ноябръ 1948 г. (Parte 1: Políticas, Seção 1: A situação política na Coreia do Norte de 1945 a 1948), Russian Manuscript Collection, Kuksa P’yönch’an Wiwönhoe, Seul.Gwang-Oon Kim, “The Making of the North Korean State”, no Journal of Korean Studies, Volume 12, no. 1, pp. 15-42. Copyright, 2007. Responsáveis da Columbia University, na cidade de Nova York. Todos os direitos reservados. Republicado com permissão do detentor dos direitos autorais e da presente editora, Duke University Press. www.dukeupress.edu
* Gwang-Oon Kim é um pesquisador sênior no Instituto Nacional de História Coreana.