Em 1990, Austregésilo Carrano Bueno (1957 – 2008) lançou seu livro “O Canto dos Malditos”. Muito mais que uma autobiografia, o livro é um grito de denúncia frente à violência psiquiátrica e ao manicomialismo como parte da ideologia dominante e suas políticas de repressão e encarceramento. O livro de Carrano foi o primeiro livro a ser censurado e recolhido por ordem judicial após a ditadura militar. Os processos de Carrano contra os médicos que o submeteram à tortura se voltaram contra ele, que foi condenado a pagar 60 mil reais em indenização a estes profissionais citados no livro. O direito, a medicina e outros saberes e práticas, como interfaces da ideologia dominante, estão em embate claro contra a resistência dos usuários, psicoatípicos e neuroatípicos. Nesse campo de batalha, surgem palavras esquecidas ou mesmo desconhecidas à esquerda atual: manicomialismo e psiconormatividade.
A luta antimanicomial, protagonizada especialmente por usuários e suas famílias, sempre orbitou a esquerda organizada em partidos, mas nunca foi de fato impulsionada por ela ou integrada como pauta de discussão e ação entre suas fileiras por períodos significativos de tempo ou com a força necessária. Temos quadros fundamentais dessa luta, como Nise da Silveira e Sérgio Arouca, e até mesmo o histórico de destacamentos de guerrilha urbana destinados a libertar presos de manicômios durante a ditadura. Porém, não há organização de esquerda alguma que tenha atualmente setoriais inteiros, fortalecidos e organizados, para tocar essa pauta com radicalidade. Menos ainda setoriais auto-organizados e destinados a ouvir quem de fato é subjugado pela psiconormatividade.
A opressão psiconormativa descarta corpos e mentes considerados engrenagens quebradas da “máquina do mundo”. Esse setor oprimido é impedido de integrar-se à força de trabalho, aos estudos, aos cuidados dos quais necessita, e tem tolhidos os seus direitos e autonomia de formas específicas. São jogados à margem da sociedade pelo abandono e através da exclusão, higienismo social e encarceramento.
A medicina é um campo fértil para o exercício de controle social dada a relação de poder presente na relação médico-paciente. A violência obstétrica, bastante discutida por feministas, é utilizada para controlar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Da mesma forma, a psiquiatria oferece ferramentas para o exercício da opressão psiconormativa através da medicalização forçada, imposição de verdadeiras sentenças disfarçadas de diagnósticos e protocolos de tratamento degradantes, que tolhem a autonomia e o direito de escolha de pacientes. Tratamentos nos quais o bem estar do paciente não é mais importante do que seu ajuste às condições necessárias para que este funcione como trabalhador obediente, dentro de seus papéis na família, dos papéis de gênero, cisnormatividade, heteronormatividade e, no caso da população negra, da subjugação e opressão racistas de políticas violentas de encarceramento e criminalização.
Com certeza, há uma unanimidade, na esquerda, em se posicionar a favor da luta por uma sociedade sem manicômios. Porém, as discussões sobre o papel estruturante da psiconormatividade na sociedade ainda são escassas. As condições materiais, concretas, das pessoas atípicas e usuários precisam se tornar centrais. Dizer que a psiconormatividade é uma construção social muitas vezes é uma afirmação que resulta em insinuar que é possível desmanchá-la no ar, que acaba por negar as condições materiais da opressão psiconormativa em favor de um debate teórico raso sobre se “doenças psiquiátricas” existem ou não. Ser uma construção social é existir, a partir de condições materiais. Psicoatípicos e usuários existem como tais na sociedade, tanto na luta contra a medicalização forçada quanto na luta pelo direito à medicação adequada. Atípicos e usuários devem adquirir consciência dos mecanismos ideológicos embutidos na medicina, na psicologia e demais saberes, ao mesmo tempo em que devem disputar práticas de saúde e terapia contra-hegemônicas – auto organizados, e não à reboque daqueles que, por sua posição de detentores de saberes e poder, ditam o debate público sobre saúde mental a partir de suas perspectivas, limitadas pelas circunstâncias, por melhores que sejam suas intenções. A destruição da psiconormatividade como ideologia se dá na destruição da sociedade que a absorveu em suas estruturas, porém num movimento histórico dialético. Não discutir a loucura a partir da dialética entre suas expressões concretas e expressões ideológicas é um impeditivo para a criação de um antimanicomialismo radical, junto à população que está no centro dessa forma de opressão, forjando experiências de auto-organização e luta que abram perspectivas revolucionárias.
Diante do sistema penal e manicomial, devemos nos perguntar: quem são os encarceráveis? Dos encarceráveis, quem são os manicomializados? Quais suas semelhanças e especificidades? Em “Hospício é Deus”, Maura Lopes Cançado descreve, a partir de sua experiência, o que determina a louca: encarcerável não pelo que fez, mas pelo que é.
“Dona Dalmatie falou-me:
– Não dão ao louco nem o direito de ser louco. Por que ninguém castiga o tuberculoso, quando é vítima de uma hemoptise e vomita sangue? Por que os “castigos” aplicados ao doente mental quando ele se mostra sem razão?
Compreendi o absurdo disto. É monstruoso. Os médicos são de uma incoerência escandalosa; por mais que queiram negar, estão de acordo com os ‘castigos’, aprovam-nos ou mandam até mesmo aplicá-los. É necessário levar em consideração que são estes mesmos médicos que classificam os doentes, ‘acusando-os’ (é importante) de irresponsáveis. Mas esta responsabilidade de afirmar se o indivíduo é ou não responsável parece terminar no momento que é feito o diagnóstico. Como punir a inconsciência é que não entendo. De que falta o louco pode ser acusado? De ser louco? É o que venho observado e sentido na carne.”
A psiconormatividade não se restringe aos catálogos da psiquiatria. As mais diversas formas de comportamentos “socialmente desajustados” frequentemente caem nesse terreno. Os “desajustes sociais” que geram os manicomializados, assim como demais encarcerados, são imputados majoritariamente aos demais setores oprimidos. Rachel Gouveia Passos e Melissa Pereira de Oliveira em “Luta Antimanicomial e feminismos: manicomialização, Estado e racismo”, trazem diversos dados históricos sobre o racismo, o machismo e a LGBTfobia no sistema manicomial.
“[…] diversos estudos nos aproximam da dura realidade de mulheres internadas, especialmente quando são negras ou são mulheres transexuais, sendo a elas destinados os mais precários espaços físicos e condições de higiene e salubridade, sendo expostas a várias torturas, violências físicas, psicológicas e sexuais que atingem também os homens, mas impactam as mulheres, sob a marca do gênero, assim como da raça, tatuando-as como corpos em relação aos quais humilhações e subjugações podem alcançar limites extremos.”
Mesmo dentro do próprio sistema prisional, Patrícia C. Magno denomina as mulheres com transtornos mentais como as “invisíveis das invisíveis”. Magno cita o documento constituinte da Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional: “a invisibilidade da mulher com transtorno mental, vinculada ao sistema penal, não foi alterada com as conquistas da reforma psiquiátrica”. É inegável que o machismo e as condições atípicas se relacionam mutuamente para dar origem a esse lugar específico de violência. E esse lugar, como construção social, não se dá apenas pela via do diagnóstico formal, mas também na percepção dessas mulheres como “anormais”. Isso se expressa até mesmo na conduta das demais prisioneiras, conforme depoimento coletado por Nana Queiroz:
“Tinha uma que era doente mental, dava tanto problema no presídio que a mandaram pro manicômio. O manicômio a segurava um pouco e devolvia: ‘Está melhor’. Mas, assim que chegava de volta ao presídio, piorava. Isolavam-na, então, até que conseguissem nova vaga no manicômio. Foi e voltou dez vezes. E, numa rebelião, as mulheres, que estavam revoltadas com ela porque aprontava, justamente porque era doente, a mataram.”
O cárcere manicomialista se mostra, então, conforme formulado por Foucault, um nível específico de opressão diante “daquele que não é nem propriamente doente nem propriamente criminoso, mas anormal.”
Entre os usuários, as políticas de criminalização do uso e a “guerra às drogas” criam todo um novo celeiro do manicomialismo: as denominadas Comunidades Terapêuticas, predominantemente religiosas, asilares e com inúmeras denúncias de violência física e psicológica. Segundo levantamento da Agência Pública:
“Comunidades terapêuticas de orientação cristã receberam quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania a essas entidades no primeiro ano de governo de Bolsonaro. Dos aproximadamente R$ 150,5 milhões de repasses a 487 instituições contratadas para oferecer tratamento aos usuários de drogas no Brasil, pelo menos R$ 41 milhões foram para CTs notoriamente evangélicas e R$ 44 milhões para católicas, apurou a Pública com o cruzamento dos dados do mapa geral das comunidades terapêuticas, do próprio ministério, e informações disponibilizadas nos sites e canais oficiais das entidades. Mais de 60% das CTs contratadas pelo ministério da Cidadania em 2019 têm ligações diretas com grupos religiosos cristãos e/ou são presididas por sacerdotes, como padres, missionários e pastores.”
As CTs, embora não tenham os mesmos atributos de instituições clínico-hospitalares e não possam receber internações involuntárias e compulsórias, oferecem serviços de “remoção” em carros e ambulâncias, onde esses tipos de internação são feitas em total desrespeito ao que dispõe a Resolução 01/2015 da ANVISA, que regulamenta os funcionamento das CTs, a Lei 10.216/02 (chamada “Lei da Reforma Psiquiátrica”) e a Lei 13.840/19, que trata especificamente de questões relacionadas à internação de dependentes químicos.
Esse é o campo de luta que está colocado para nós, usuários, atípicos e setores radicais dos trabalhadores da saúde na luta antimanicomial. Dizer que “a esquerda” precisa se fazer presente na Luta Antimanicomial seria negar que nós temos as nossas próprias organizações de esquerda, que são exemplos históricos de resistência, travando lutas árduas, sobrevivendo em meio a camaradas retirados de nós cotidianamente – encarcerados, perdendo seus trabalhos, casa e família; tendo suas mentes, já particularmente vulneráveis, destroçadas pela violência da existência sob um sistema de exploração e exclusão. Não nos falta a esquerda pois também somos a esquerda, ainda que sejamos “os invisíveis dos invisíveis”. O que nos falta é ter nossa luta integrada às propostas estratégicas dos demais setores da esquerda que visam a transformação radical da sociedade.
* Dedicado a Rodrigo e Vanessa.