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O Projeto Pegasus: o Grupo NSO, spyware e direitos humanos

As denúncias sobre o sistema Pegasus revelam a amplitude das redes de espionagem feitas a partir de tecnologias privadas de baixo custo.
As denúncias sobre o sistema Pegasus revelam a amplitude das redes de espionagem feitas a partir de tecnologias privadas de baixo custo. Por Binoy Kampmark | ARENA – Tradução de Victor Klauck para a Revista Opera
(Foto: U.S. Army Cyber Command / Jesse A. Hyatt)

O mercado de spyware [sistemas de espionagem] é um lugar deslumbrante e preocupante. Desde as revelações de Edward Snowden em 2013 sobre a natureza assustadoramente vasta dos processos de vigilância sem mandados judiciais, em grande parte conduzidos por corporações a serviço da comunidade de inteligência dos Estados Unidos, aqueles favoráveis à utilização de tecnologias de criptografia têm estado ocupados. Governos, desesperados em reverter este processo, se voltam para serviços privados buscando subverter tal tendência.

Após as denúncias de Snowden, esses governos não apenas descobriram que poderiam adquirir sistemas de espionagem eficazes; eles poderiam obtê-los a preços bastante acessíveis. David Kaye, ex-relator especial da ONU para a promoção e proteção dos direitos sobre liberdade de opinião e expressão, sabiamente pautou a realização de uma moratória a respeito da venda desses sistemas, descrevendo uma indústria “fora de controle, irresponsável e sem constrangimentos em prover governos com o acesso, a custos relativamentes baixos, a ferramentas de espionagem que até então eram utilizadas apenas pelos mais avançados serviços de inteligência”. 

O grupo israelense NSO se tornou um provedor de spyware por excelência, promovendo-se como um criador de “tecnologias que auxiliam agências governamentais a prevenir e investigar atos terroristas e criminais a fim de salvar milhares de vidas ao redor do globo”. Grande parte de sua missão consiste em visar os “terroristas” e “criminosos” que desaparecem numa tentativa de evitar a lei: “os maiores criminosos do mundo se comunicam utilizando tecnologias destinadas a blindar suas comunicações, ao passo que agências governamentais de inteligência e policiais sofrem para coletar evidências e informações em suas atividades”. O grupo se apresenta como um “bom cidadão”, que desenvolve produtos para ajudar tais agências “a utilizar tecnologias que estejam à altura dos desafios de criptografia para prevenir e investigar crimes e ações terroristas”. 

O Ministério de Defesa de Israel, responsável por emitir licenças para exportação para os sistemas de espionagem do NSO, declarou que apenas concede licenças para os produtos “exclusivamente para entidades governamentais, para uso legal, e apenas para fins de prevenção e investigação de crimes e contraterrorismo”. Nos casos em que tais ferramentas são “utilizadas em violação às licenças de exportação e aos certificados de uso final, medidas adequadas são tomadas”.

Uma das principais armas no arsenal do Grupo NSO é o Pegasus, sistema de espionagem que, ao infectar o celular-alvo, o transforma em uma ferramenta de vigilância. O acesso remoto é concedido sobre os conteúdos, o microfone e a câmera do celular; o dono do aparelho não sabe que as chamadas e o conteúdo do celular estão sendo interceptados e monitorados. Por causa do assustador estado atual, Snowden nos dá um pequeno conselho: “a primeira coisa que faço ao receber um celular novo é desmontá-lo. Isto não é motivado por nenhum ‘impulso de construtor’, mas simplesmente porque não é seguro utilizá-lo”. 

As afirmações feitas pelo Grupo NSO de que opera no fornecimento de seus produtos de vigilância a partir de princípios totalmente honestos são difíceis de engolir.  De forma notória, o Pegasus foi associado à morte do jornalista dissidente Jamal Khashoggi, que foi literalmente esquartejado por um esquadrão da morte saudita em outubro de 2018 nas dependências do consulado da Arábia Saudita em Istambul. Um dos contatos de Khashoggi, Omar Abdulaziz, alega que conversas suas com o dissidente foram interceptadas pelas autoridades sauditas. Seus advogados argumentam que a invasão do celular “contribuiu de forma significativa para a decisão de matar o sr. Khashoggi”.

O NSO também tem sido alvo de uma série de processos legais. Em 2018, dois processos equivalentes foram protocolados em Israel e Chipre por um cidadão do Catar e por jornalistas mexicanos, respectivamente, contribuindo de forma significativa na exposição da cumplicidade da empresa acerca da vigilância ilegal. O grupo também não conseguiu o arquivamento do processo feito por Abdulaziz. O juiz Guy Hyman, ao determinar o pagamento dos custos processuais, definiu o caso como “amplo, especialmente no que diz respeito às raízes dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais”.

Em 2019, o WhatsApp moveu uma ação contra a empresa, alegando que o Pegasus foi utilizado contra 1400 contas de usuários entre abril e maio do mesmo ano em vinte países diferentes. Entre os alvos estavam ao menos cem ativistas de direitos humanos, jornalistas e membros da sociedade civil. Em 16 de julho de 2020, um juiz do Tribunal Distrital dos Estados Unidos na Califórnia autorizou o prosseguimento da ação, não sendo convencido pelos argumentos do grupo de que não teve nenhum papel nas ações contra usuários do aplicativo. De forma significativa, o juiz também definiu que o NSO, enquanto uma empresa privada, não poderia reivindicar imunidade soberana, apesar de prestar serviços a clientes estrangeiros soberanos. 

Em julho deste ano, a Forbidden Stories, uma rede de jornalistas com a missão de “proteger, prosseguir com e publicar o trabalho de outros jornalistas que enfrentam ameaças, encontram-se presos ou foram assassinados”, adicionou novas páginas ao histórico já manchado do NSO. Como parte central deste trabalho está o Projeto Pegasus, um esforço jornalístico coletivo de relevância internacional que é coordenado pelo Forbidden Stories e pelo Laboratório de Segurança da Anistia Internacional.

Em 18 de julho, Phineas Rueckert da Forbidden Stories revelou que cerca de 180 jornalistas em 20 países foram selecionados como alvos por pelo menos dez clientes do grupo NSO. Tanto a rede de jornalistas quanto a Anistia Internacional tiveram acesso ao vazamento de mais de 50 mil registros de números telefônicos selecionados por clientes do NSO para vigilância. Estes clientes variam entre regimes mais autoritários e teocráticos (como Bahrein e Arábia Saudita) e outros mais democráticos (como Índia e México).

Em uma carta direcionada à Forbidden Stories, o grupo NSO alega que não pode “confirmar ou negar a identidade dos clientes governamentais” por “razões de contrato e de segurança nacional”. Rueckert admitiu que seria difícil identificar instâncias em que celulares específicos foram comprometidos sem a análise do aparelho. O Laboratório de Segurança da Anistia Internacional, contudo, ofereceu ajuda para superar alguns desses obstáculos, incluindo “análises forenses em 67 celulares – dos quais mais de uma dúzia pertenciam a jornalistas” que revelaram “infecções bem-sucedidas através de uma falha de segurança em iPhones que ocorreram inclusive neste mês”.

O Projeto Pegasus é relevante por revelar a ampla escala de espionagem estabelecida através desse sistema. Um dos números telefônicos entre os 50 mil registros foi utilizado anteriormente pelo primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan. A esta lista podem ser incluídos uma série de embaixadores na Índia e dezenas de diplomatas de distintos países –  Irã, China, Afeganistão, Nepal e Arábia Saudita – que residem em Nova Delhi.

Além disso, até 14 ministros franceses encontram-se na lista de alvos, todos sendo do interesse dos serviços de inteligência de Marrocos, um dos clientes do grupo NSO. O presidente francês Emmanuel Macron, ao descobrir que também havia sido alvo de espionagem, trocou de aparelho e de número e demandou “um fortalecimento de todos os protocolos de segurança”.

A resposta do NSO à Forbidden Stories foi maldosa e desafiadora. A denúncia, segundo a empresa, é “cheia de falsas suposições e teorias não corroboradas que levantam sérios questionamentos sobre a confiabilidade e os interesses das fontes”. O NSO afirma que não há evidências de que as informações obtidas acerca dos jornalistas em questão não poderiam ter sido obtidas por outros meios: “as alegações de que os dados foram vazados de nossos servidores é ridícula e completamente mentirosa pois nunca existiu registro dessas informações em nossos servidores”.

A respeito do assassinato de Khashoggi, a narrativa desenvolvida pelo NSO logo após o fato foi reiterada: “nós podemos confirmar que nossas tecnologias não foram utilizadas para escutar, monitorar, rastrear ou coletar informações sobre ele ou sobre os membros de sua família citados no inquérito. A alegação foi previamente investigada e reforçamos que trata-se de uma acusação sem sustentação”.

O Projeto Pegasus destaca as tentativas de diversos governos para desafiar a criptografia enquanto princípio e prática. Eles o fazem utilizando-se das capacidades imorais desenvolvidas por empresas privadas. O Grupo NSO, apesar dos processos legais em andamento, continua atuando com uma impunidade pautada no dinheiro, mesmo possuindo uma política que supostamente segue os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre negócios e direitos humanos. O diretor do WhatsApp, Will Cathcart, descreve as investigações do Projeto Pegasus como reveladoras e assertivas, demonstrando “o que nós e muitos outros temos afirmado há anos: os perigosos sistemas de espionagem da NSO são utilizados para cometer horrorosas violações de direitos humanos em todo o planeta e isto deve ser interrompido”.

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