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Peru: confiança e triunfo no primeiro round de Castillo

Sobre um campo minado, o governo recém-eleito de Castillo conseguiu assegurar seu gabinete de ministros perante o Congresso.

Sobre um campo minado, o governo recém-eleito de Castillo conseguiu assegurar seu gabinete de ministros perante o Congresso. Por Yair Cybel | CELAG – Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera
(Foto: ANDINA/ Braian Reyna)

Apenas um mês após assumir a presidência, com um segundo turno disputado e um amplo reconhecimento por parte da oposição, o governo de Pedro Castillo enfrentou no dia 26 seu primeiro round como consagrado no poder. 

O Peru é um estudo de caso para o constitucionalismo internacional. Um sistema herdado do desenho institucional da Constituição fujimorista de 1993, que oscila em uma intrincada zona cinzenta entre o presidencialismo e o parlamentarismo.  

É nessa complexa amálgama de poderes que se insere a “questão de confiança”, um recurso pelo qual o presidente deve submeter seu gabinete de ministros à aprovação do Congresso. Esta validação parlamentar requer maioria simples, ou seja, a metade mais um; que os votos a favor superem aqueles que se posicionam contra e as abstenções. Desta forma, caso seja aprovada a confiança, o presidente valida o gabinete proposto, mas se encontrar uma rejeição majoritária, o ministro deve ser destituído de suas funções e deve renunciar ao cargo. Os artigos, porém, são ainda mais labirínticos: se o Congresso negar a confiança ao gabinete em duas sessões seguidas, o Executivo tem em seu poder a capacidade de dissolver o Parlamento e convocar eleições novamente. 

Esta luta entre poderes não é nova: já teve seus antecedentes nas administrações de Pedro Pablo Kuczynski e Martín Vizcarra, que culminaram na eleição de um Parlamento extraordinário em 2020 para legislar pelo período de um ano. Mas agora, com Pedro Castillo na presidência e uma oposição cada vez mais hostil e radicalizada, a confiança no gabinete se tornou um eixo central para analisar o enfrentamento entre os poderes do Estado e configurar o futuro do Peru.

Na última sexta, após uma jornada que se estendeu por mais de 24 horas, com 73 votos a favor e 50 contra, o professor Pedro Castillo conseguiu a outorga de confiança do Congresso ao seu gabinete e ao presidente do seu Conselho de Ministros.

No entanto, as disputas pelo gabinete presidencial começaram muito antes, com a nomeação de Héctor Béjar como chanceler da República. Doutor em Sociologia, advogado, escritor, artista plástico e professor universitário, Béjar é uma referência histórica da esquerda peruana. Recebeu formação política em Cuba, onde conheceu Fidel Castro e Ernesto Guevara, foi preso por sua ação política na guerrilha e anistiado em 1970 pelo governo do general Juan Velasco Alvarado. Após a liberdade, se incorporou ao projeto de reforma agrária impulsionado pela administração velasquista, coordenando o Sistema Nacional de Apoio à Mobilização Social (SINAMOS), uma das ferramentas de mobilização popular que serviram como defesa das conquistas sociais adquiridas no período. 

O mandato de Béjar à frente do Ministério de Relações Exteriores durou pouco mais de duas semanas: foi removido do cargo por ter declarado no passado que a Marinha havia sido a instituição que iniciou o terrorismo no Peru e que alguns dos seus oficiais foram capacitados pela CIA. A pressão dos legisladores da oposição e o repúdio público das Forças Armadas levaram à demissão de Béjar e abriram uma nova brecha no interior da coalizão governista. O escolhido para ocupar o Ministério de Relações Exteriores foi Óscar Maúrtua, diplomata de carreira e ex-chanceler moderado. 

Leia também – Pivô para a Ásia, condor para a América: as garras ainda afiadas do império [Parte 1]

A nomeação de Maúrtua expressa algumas das contradições que se refletem no governo, especialmente entre o dono do partido Perú Libre e ex-governador de Junín, Vladimir Cerrón, e o presidente em função, Pedro Castillo. Maúrtua ostenta um perfil mais moderado e compartilha com Castillo sua proximidade com o governo de Alejandro Toledo, que teve Maúrtua como chanceler e cujo partido, Perú Posible, teve Castillo como candidato pela primeira vez. 

“O novo chanceler, Oscar Maúrtua de Romaña, não representa o sentimento do Perú Libre. Nosso partido é uma entidade integradora e soberana, aposta em uma América Latina unida independente, recusando qualquer política intervencionista ou servil”, respondeu Cerrón em sua conta no Twitter após a nomeação do novo ministro.

A tensão entre o líder partidário e o presidente aumentou no calor da votação de confiança. Em um primeiro momento, Castillo ameaçou fazer mudanças no gabinete antes da votação, tentando evitar a confrontação com o Congresso e apresentando uma equipe mais dialógica. Por fim, foi imposta a visão de Cerrón, que considerava importante apoiar seus ministros e, em todo caso, reforçar a imagem obstrucionista do Poder Legislativo. A última pesquisa do Instituto de Estudos Peruanos (IEP), realizada entre 16 e 19 de de agosto, indica que 56% dos entrevistados consideram que o Legislativo deveria respaldar os ministros propostos no pedido de confiança. 

A votação legislativa também expressa a construção de alianças parlamentares que o Perú Libre pôde construir até agora. Além das 37 cadeiras do Perú Libre e das cinco do Juntos por el Perú, juntaram-se a bancada de centro-direita do Somos Perú, o Acción Popular, de centro-esquerda, e alguns congressistas do Podemos Perú. Assim, o governo obteve 73 votos, suficientes para referendar o gabinete. Do outro lado, Avanza País, Renovación Nacional e o fujimorismo declararam desde o começo que não acompanhariam a equipe de administração proposta por Castillo. Entre os que votaram contra, soma-se o liberal Partido Morado, que expressou que não acompanhava a proposta por não haver nenhuma referência aos direitos da população LGBTI+. Juntos, eles somaram 50 votos.

A aprovação do gabinete imprime uma aura de esperança em relação ao vínculo entre o Executivo e o Legislativo, sobretudo considerando a aplicação de outra moção que complexifica ainda mais o cenário peruano: a vacância. Este recurso pode entrar em vigor em caso de morte do presidente, incapacidade moral ou física, por sua renúncia perante o Congresso ou por destituição. Para aprovar a destituição por incapacidade moral (a mesma que foi impulsionada contra Martín Vizcarra), são necessários dois terços da Câmara, um número que por agora – e atenção ao turbilhão imprevisível da política peruana – a oposição ficou longe de alcançar.

No centro de todos os olhares esteve Guido Bellido, presidente do Conselho de Ministros (PCM), militante do Perú Libre e braço direito de Cerrón. Bellido tem sido alvo das críticas da oposição tanto pelo peso do seu cargo como por posicionamentos próprios: suas manifestações homofóbicas lhe trouxeram problemas na prévia da nomeação com o economista e ministro da Economia, Pedro Francke. 

Bellido foi encarregado de falar perante o Congresso para pedir o voto de confiança: começou sua apresentação na Câmara falando em quechua e reivindicando a plurinacionalidade do Peru. Com uma mensagem conciliadora, evitando o enfrentamento com o Parlamento, o PCM enfatizou o respeito à liberdade de expressão e afastou-se das acusações de terrorismo. Expôs suas principais propostas de gestão: fortalecer a empresa estatal PetroPerú, impulsionar grandes obras públicas voltadas ao transporte, promover a vacinação e avançar com melhorias concretas para os setores camponeses. Mas não se pode esquecer que havia um grande elefante na sala: a Constituinte, principal promessa de Castillo na campanha, foi a ausência latente durante toda sua exposição. 

A Constituinte não foi ao Congresso. Bellido, Cerrón e Castillo concordaram que não era momento para trazer à cena um dos assuntos mais álgidos que atravessam o país. Esta decisão entrevê alguns indícios e definições: a aposta inicial do professor em tentar modificar a Constituição com a anuência do Congresso parece mais distante diante da hostilidade das bancadas e a ideia do referendo e da consulta popular poderia recuperar força. 

Porém, a conflitividade peruana ultrapassa os corredores dos parlamentos. No dia 24, foi publicado um decreto que endurece as condições de encarceramento dos reclusos de alta periculosidade, o que levou à transferência de Vladimiro Montesinos para a prisão de Ancón II, e espera-se que o ex-presidente Alberto Fujimori tenha o mesmo destino. Ambos contavam com notórias liberdades em suas condições de confinamento e Montesinos havia sido acusada de coordenar, a partir de seu local de detenção, o pagamento de propinas a membros do Júri Nacional de Eleições (JNE) para que favorecessem a candidata Keiko Fujimori. “As prisões douradas acabaram neste governo”, sentenciou Vladimir Cerrón via Twitter.

Em resumo, a confiança é uma primeira vitória da aliança governista. Castillo construiu acordos parlamentares, validou sua equipe de governo e demonstrou que pode transcender os limites de sua própria representação. Fica latente a inviabilidade de um sistema como o peruano, em que a soma de pequenas minorias legislativas podem invalidar a vontade popular das grandes maiorias.

A solução para esta arquitetura institucional extremamente complexa é só uma: a Constituinte. Castillo demonstrou que pode construir maiorias em uma jogada digna do populismo laclausiano: edificou uma cadeia de equivalências e um antagonismo claro para ganhar a confiança do parlamento. Agora resta saber se poderá sustentar essa maioria circunstancial enquanto decide como promoverá a Constituinte, com um Congresso obstrucionista e a latente ameaça de “humalização” [em referência à desilusão com o governo de Ollanta Humala] do seu governo. Por enquanto, terá uma próxima parada complexa com a aprovação do orçamento. Mas esse já será outro capítulo desta história. 

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