A história da humanidade teve infinitas propostas sobre o que significa o conceito de justiça nas relações humanas. Isso determina o sentido da sociedade. Quando Aristóteles definia o ser humano como um animal político – politikón zóion – o fazia atribuindo-lhe a qualidade da razão – logos –, que permitia, por sua vez, diferenciar o vantajoso do prejudicial e, por isso também o justo do injusto. Esta dissertação fundamental é a base da política como exercício do debate para a construção da sociedade.
As comunidades se aproximam da ideia de justiça e definem os elementos que dão suporte aos princípios para as relações entre seus integrantes. Assim vemos como a sociedade liberal moderna estabelece como valor axiológico a liberdade dos indivíduos para a propriedade e a acumulação, ainda que a vocação ilimitada e inevitável deste princípio prejudique o resto da sociedade. Essa é uma forma de ver o mundo, mas não a única.
A Revolução Bolivariana se reconhece no sentido da igualdade e proteção das grandes maiorias, na necessidade de lutar contra a voracidade do capitalismo (que por sua vez diminui a dignidade daqueles que não pertencem ao reduzido grupo que habita o topo do sacrossanto mercado).
Assumimos essa visão como corpo político nacional, representada no pensamento e ação de um homem: Hugo Chávez. A entrega do Comandante, seu pensamento e exercício político nos permite apropriarmos com clareza dessa ideia.
A abstração teórica e idealista se materializa num ser humano concreto com valores e ações que não se desviam nem um milímetro de seu propósito. De forma coerente e consequente.
Outubro, no pensamento revolucionário global, nos oferece a possibilidade de recordar a relação dialógica entre ideia e homem. Para o povo venezuelano de hoje, outubro nos ilumina com a vitória popular do Comandante Chávez, no ano de 2012, e sua heróica campanha eleitoral, apesar do sofrimento de sua repentina doença.
Este épico esforço para manter a proteção da paz e a soberania da sua pátria ficou plasmado nas fotografias daquele inesquecível fechamento de campanha debaixo de um torrencial aguaceiro de 4 de outubro desse mesmo ano.
Desde o início do século XXI, em cada mês de outubro, invocamos, de um lado, o transcendental momento que colocou como realidade a possibilidade de um governo das grandes maiorias: a Revolução Bolchevique sob comando de Vladimir Ilich Uliánov (Lênin). E na dimensão do indivíduo-força, a cada dia 8 deste mês, recordamos a atuação do novo homem latino-americano.
No dia 25 de outubro de 1917 – de acordo com o calendário juliano vigente na Rússia para esse período, 7 de novembro na lógica temporal ocidental – a Revolução Bolchevique liderada por Lênin consegue, através de uma luta difícil por parte de classes subalternas, chegar ao poder e consolidar o primeiro governo contrário à lógica hegemônica liberal burguesa. A vitória dos Sovietes e do povo russo colocaram sobre a arena mundial uma nova forma de ver o governo e, muito especialmente, a distribuição dos recursos que formavam a riqueza geral da nação: o núcleo da luta de classes.
Lênin colocava o debate em termos práticos, no controle sobre os meios de produção que geram bens, serviços e riquezas para todo o país. O líder soviético lutou contra a ideia naturalizada que estabelecia que a burguesia deveria dirigir o Estado e a economia porque seus membros são os únicos capacitados para tal.
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Assim surgia uma nova forma de abordagem da coisa pública, que implica um auto reconhecimento do povo e da classe trabalhadora como garantia de uma nova disposição na sociedade. Lênin nos diz:
“Uma das mais importantes tarefas, se não a mais importante do momento presente, consiste em desenvolver ao máximo a livre iniciativa de todos os trabalhadores e explorados em sua obra criadora de organização. É preciso desfazer a todo custo, o velho preconceito absurdo, selvagem, infame e odioso, segundo o qual as chamadas ‘classes superiores’, somente os ricos ou os que passaram pela escola de ricos, podem administrar o Estado, dirigir, e no terreno da organização, a construção da sociedade socialista, […] é preciso lutar contra o velho costume de considerar a medida do trabalho e os meios de produção desde o ponto de vista do homem escravizado que se pergunta como poderá libertar-se de um peso suplementar, como poderá tirar algo da burguesia. Os operários avançados e conscientes já começaram essa luta e respondem vigorosamente aos elementos oportunistas, que surgiram nas fábricas em número particularmente grande durante a guerra, e que queriam tratar a fábrica, que pertence ao povo, que já é propriedade do povo, como antes, unicamente com o critério de ‘tirar proveito e ir embora’. Quanto há de consciente, honrado e reflexivo entre os camponeses e nas massas trabalhadoras que alçarão nessa luta ao lado dos operários avançados”.
Podemos criticar diversos processos, políticas e desvios da superestrutura da URSS, mas seria absurdo negar que sua proposta de construção política e social se dirigiu ao coração das necessidades das grandes maiorias. Isso não é propaganda. Ao se fazer uma rigorosa revisão dos indicadores que refletem o bem-estar humano, resulta evidente que a expectativa de vida de seus cidadãos esteve sempre acima da média mundial. Em tal sentido é possível comprovar que diminuíram as mortes infantis, e se incrementou a média no número de seus habitantes; em matéria educacional, reduziram-se os níveis de analfabetismo, aumentando os níveis da população escolarizada; quanto à alimentação, a ingestão calórica e de proteínas per capita eram muito superiores às estatísticas apresentadas pelo bloco ocidental; e finalmente diminuíram os níveis de desigualdade, a distribuição da riqueza foi muito mais equitativa entre seus habitantes.
Para revisar a fundo esses elementos que esboçamos resumidamente, recomendamos revisar o seguinte trabalho sobre “O nível de vida na União Soviética“. Ali se comprova, em detalhe, que o enfoque do governo socialista se dirige a satisfazer as necessidades fundamentais da população.
Esses feitos inquestionáveis configuram-se como uma ameaça ao sistema capitalista que opera desde o lado oposto: vela pelos interesses dos mais poderosos, financia o sistema de desigualdade justificando-o através da peregrina ideia do darwinismo social, promove a acumulação desproporcionada, gerando fome e miséria para as grandes maiorias da sociedade, trata setores fundamentais para a vida, como a saúde, a educação e a alimentação como uma mercadoria, e uma longa lista de barbaridades que negam a humanidade em favor do mercado. O capitalismo é o Caim da irmandade humana.
A resposta do capitalismo e o bloqueio hegemônico ocidental foi e é atacar o contra modelo através da mentira, da desinformação e da propaganda insidiosa sobre a insistente e evidente busca da justiça naquela incipiente experiência socialista. Todo o sistema comunicacional imperialista – o cinema, a televisão, a imprensa, a opinião publicada – colocou-se a serviço do desprestígio de uma alternativa que procurava um mundo mais justo, através de um ser humano consciente e solidário.
As meias verdades, a elaboração de mitos desproporcionais, a falsificação de dados, são exercício cotidiano na fábrica corporativa da mídia capitalista. A decaída do bloco soviético, como consequência de seus próprios erros e a confrontação do terreno competitivo do inimigo durante a Guerra Fria, não deteve a máquina de difamação, que chegou até os dias atuais. A ideia de um mundo de igualdade entre todos os seres humanos aterroriza os detentores do capital mundial.
Outro marco de outubro repousa sobre Ernesto Guevara de la Serna, como referência da dignidade e da coerência entre palavra e ação. Quando Fidel Castro o propôs como arquétipo exemplo do novo homem, não o fez sem pensar. Sua tese se amparava numa vida correta e consequente. Seu espírito de luta e sacrifício é a mostra para todos aqueles que buscam construir um mundo mais justo, de igualdade e felicidade. É a outra dimensão da utopia revolucionária, aquela que toma como referência a inspiração de um sujeito que encarna suas principais virtudes.
Se existe algo que caracteriza o Che é seu inquebrável compromisso e constância pela causa revolucionária. No livro de Ignacio Ramonet, 100 horas com Fidel, o líder da Revolução Cubana, amigo, chefe e camarada de Ernesto, refletia essa qualidade que o levava a enfrentar qualquer tarefa, ainda que parecesse impossível para sua pessoa. Em sua memória, relata um exercício de preparação que faziam no México quando se iniciava uma ação guerrilheira e que consistia em subir ao topo do Popocatépetl, a mais de 5 mil metros de altura e com neves perpétuas. Che era asmático e essa missão era inalcançável para ele. Assim relata Fidel:
“Nunca chegou até o topo, nunca chegou ao alto do Popocatépetl. Mas voltou a tentar e teria passado toda a vida tentando subir o Popocatépetl, fazia um esforço heróico, ainda que nunca alcançasse aquele pico. Você vê o caráter. Dá a ideia da fortaleza espiritual, de sua constância, uma de suas características”.
Seu assassinato na selva boliviana foi produzido desde os laboratórios da Agência Central de Inteligência (CIA) como arma de dissuasão contra a febre revolucionária que regava o campo latino-americano. Novamente apareceu a infâmia contra a figura do guerrilheiro heróico, procurando comprometer sua imagem subversiva e impoluta com os mais incoerentes argumentos alienados da verdade. Mas como disse o Che: “Onde quer que a morte nos surpreenda, bem-vinda seja sempre que nosso grito de guerra tenha sido ouvido”.
O efeito foi totalmente o contrário: o sacrifício e a imagem incorruptível do Che se converteram num caminho de reafirmação da convicção dos povos latino-americanos na busca por justiça e igualdade. Seus discursos de fogo inextinguível pela dignidade dos povos, o exemplo de coerência entre sua palavra e ação, fazem parte da tradição libertária do continente, é parte do combustível que sustenta nossa luta.
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Para a Revolução Bolivariana e os processos de libertação universais, outubro é tempo de reflexão e celebração da esperança. Os projetos socialistas do século XXI devem marcar o futuro. O empenho determinista do liberalismo para colocar um ponto final na evolução da consciência humana é inútil. Não se trata somente do que não está dito, mas também de que quase tudo está por dizer-se e criar-se na nova humanidade, a das mulheres e homens novos com que sonhou o Che.
Aproxima-se hoje uma profunda mudança de época. Dependerá do resultado desta etapa na disputa entre a pressão e a libertação, a humanidade e as corporações, a flor e a arma nuclear, o sorriso e o nada. A luta de classes, como o tempo, não se detém, ao menos não por agora. Parafraseando o Libertador: esperamos muito dessa luta definitiva e seus tempos: seu imenso ventre, cheio de contradições virtuosas, contém mais esperanças e vitórias por vir, que acontecimentos passados e derrotas; e estamos seguros que seus prodígios futuros devem ser muito superiores aos pretéritos.
Sempre venceremos!