O texto que segue é uma junção e edição de dois textos da antropóloga e professora peruana Mariana Álvarez Orellana, publicados separadamente nos dias 3 e 6 de fevereiro. Em função do ritmo acelerado que a crise política no Peru tem tomado, decidimos unir os dois artigos, oferecendo um contexto mais amplo da crise e uma análise mais atualizada dos últimos acontecimentos.
Muito distante de encontrar uma saída à crise política instalada no país desde que assumiu seu mandato, o presidente peruano Pedro Castillo apresentou, na noite da última terça-feira (1), seu terceiro gabinete em pouco mais de seis meses de governo, desta vez encabeçado por Héctor Valer Pinto, um advogado de 62 anos claramente conservador.
Valer esboçou um plano de governo que inclui as promessas eleitorais de Castillo, seu discurso de posse e as aspirações de diversas forças políticas. Sobre a promessa de impulsionar uma Assembleia Constituinte, combatida veemente pelos políticos, meios de mídia e empresários neoliberais, Valer declarou que o governo fará uma campanha de conscientização que crie o chamado “momento constituinte” em 2026, quando a gestão de Castillo terminará.
A onda de questionamentos, a partir de distintas posições, recebida pelo novo gabinete de Castillo pôs em dúvida a perspectiva do presidente receber a indispensável confiança ratificatória do Parlamento por meio do “voto de confiança”, enquanto seguem os preparativos de direita para encontrar uma fórmula que viabilize a destituição de presidente, afetado por uma grave crise política gerada pela hostilidade de seus opositores, mas também pelos seus próprios erros.
Mas as mudanças nos ministérios não trouxeram calma para Castillo, porque imediatamente a bancada do partido de extrema-direita Renovación Popular (RP) anunciou que promoverá um recurso de vacância (pedido de impeachment) contra o presidente porque ele “zombou do país” e não tem “competência” para ocupar o cargo.
Em um comunicado, o RP declarou que Castillo “põe em risco a estabilidade econômica e a segurança nacional por suas decisões de aprendiz de governante, que terminarão por destruir nossa nação […] Zombou do Peru desde sua candidatura ao cargo mais importante do país. Não tem competência nem uma base mínima de conhecimento para estar governando”.
Já no final do ano passado a legisladora Patricia Chirinos, do partido Avanza País, apresentou um recurso de vacância contra Castillo, mas não obteve os votos necessários para que passasse a ser debatido no Congresso.
Debilitado por seu escasso jogo de cintura político, sem um partido que o apoie de forma monolítica e com um Congresso hostil, o professor sindicalista de 52 anos deu um cavalo de pau em sua direção e, frente a renúncia de Mirtha Vásquez, que até terça-feira passada exercia o cargo de presidenta do Conselho de Ministros, renovou sua equipe de governo, colocando à sua frente Héctor Valer Pinto, deputado pelo Renovación Popular.
No meio do ano passado – após declarar seu apoio a Castillo no segundo turno – Héctor se retirou do partido, passou brevemente pelo centro-direitista Somos Perú e no começo deste ano terminou formando sua própria bancada sob a denominação Perú Democrático, espaço que conta com sete legisladores, talvez decisivos em um enfrentamento entre o Poder Executivo e o Legislativo.
Sua nomeação significou um notório giro à direita. O primeiro presidente do Conselho de Ministros foi Guido Bellido, do partido de esquerda Perú Libre e muito próximo do líder desta agremiação, Vladimir Cerrón. Quando as pressões o levaram a remover Bellido do cargo, Castillo nomeou Vásquez, advogada de esquerda que vinha do Frente Amplio, coalizão que apoiou a candidatura de Verónika Mendoza.
Para os analistas, a chegada de Valer Pinto confirma a clara falta de rumo do mandatário. Valer Pinto coincide com Castillo em certas posturas ideológicas; por exemplo, em seu total rechaço às políticas de gênero. Valer Pinto fez comentários contra as políticas de igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres: em setembro disse ao parlamentar José Ventura que “pusesse uma saia” se queria se pronunciar em defesa das mulheres.
Otimista, Valer Pinto disse à imprensa que a crise política no país havia terminado e sugeriu uma rodada de conversas. “As portas dos ministérios estarão abertas para conversar com todas as organizações sociais, mas os senhores ministros me acompanharão a algumas visitas pontuais a alguns líderes políticos, econômicos e sociais que até agora foram ignorados”, adiantou.
Mas, além da mudança na liderança do gabinete, Castillo também mudou nove ministérios: Chancelaria, Defesa, Economia, Interior, Desenvolvimento Agrária, Minas e Energia, Mulher e Populações Vulneráveis, Ambiente e Cultura.
A mudança mais importante foi na Economia: Pedro Francke – nomeado porque inspirava confiança nos mercados – ressaltou a necessidade de fortalecer a luta anticorrupção ao renunciar. Para o lugar de Francke, Castillo nomeou o economista óscar Graham Yamahuchi, funcionário de longa data do Ministério da Economia.
Dois parlamentares do Perú Libre foram nomeados para liderar ministérios. O novo ministro de Ambiente será Wilber Supo Quisocala, um geógrafo de 31 anos oriundo da região andina de Puno, e Katy Ugarte Mamani, cusquenha de 50 anos, ocupará a pasta de Mulher e Populações Vulneráveis.
A questão de fundo
Juan de la Puente, diretor do portal Pata Amarilla, observa que o governo de Pedro Castillo está acabado. Ele segue no poder, mas uma nova administração começa. “Caído o gabinete, esta fase da crise confirma o fim do governo Castillo I inaugurado em 28 de julho de 2021. O que virá é novo, novidade. Castillo II ou Castilo 2.0 será outro governo”, afirma o advogado e politólogo.
As saídas de Avelino Guillén e Mirtha Vásquez, e a de outros ministros e ministras que indicavam a abertura do governo aos movimentos sociais, também é o fim da coalizão que desde outubro tentou manter algumas propostas de reforma de pé. Ilhado em seu Palácio, com 28% da aprovação e rechaçado por dois terços do país, o presidente tem pouca margem de manobra.
A questão de fundo, como observa Jorge Agurto – diretor do site Servindi –, é como as representações populares adquirem a capacidade de governar, de que maneira o sujeito político histórico pode conduzir o país por um caminho viável e democrático, que proteja os bens comuns e defenda os interesses das maiorias. Para ele, o estado-nação e o sistema domicrático formal vigente não é mais viável no país, e é necessário mudá-lo por um sistema edificado “debaixo para cima”.
Esse novo poder, segundo ele, seria em essência um “não-poder” que deve ser cimentado no protagonismo e na autonomia das comunidades e na livre determinação dos povos indígenas e originários.
Agurto aponta que os setores progressistas, sejam ou não de esquerda, não poderão satisfazer a necessidade de mudança estrutural se não voltarem o olhar para a realidade, se dedicarem ao ensino político, à construção programática e à promoção da formação de líderes com valores, honestos e capazes.
Castillo de areia: rumo ao quinto gabinete em sete meses
A crise política que gerou as más decisões e nomeações do presidente Pedro Castillo levou à nomeação de quatro gabinetes ministeriais em menos de sete meses de governo. A nomeação do deputado de direita Héctor Valer como chefe de gabinete causou tamanha indignação, com críticas de todos os setores, que ele durou três dias no cargo.
O presidente Pedro Castillo finalmente conseguiu unificar o país, mas o fez gerando uma oposição praticamente unânime ao gabinete ministerial que ele nomeou na terça-feira passada. Apesar de a ex-primeira-ministra Mirtha Vásquez ter apontado que sua saída se deveu “à impossibilidade de chegar a um consenso em benefício do país”, Castillo assegurou que decidiu “renovar” o gabinete com a nomeação de Valer, um político contra quem há várias denúncias por violência familiar (agressões contra sua esposa e filha).
E novamente disse Castillo, no dia 4, em uma declaração televisiva de cinco minutos: “Tomei a decisão de recompor o Gabinete Ministerial, e essas mudanças serão feitas tomando em conta a abertura às forças políticas, acadêmicas e profissionais do país”.
Ante tal declaração, o analista Antonio Collantes se pergunta “o que significa verdadeiramente ‘recompor’ para Castillo”, porque o presidente não fez referência alguma ao boletim de ocorrência da esposa e da filha de Valer, por supostamente ter-las agredido a chutes e socos. Talvez “recompor” seja persistir no mesmo, mas com outros nomes.
Somada à pouca autocrítica que mostrou em sua mensagem, Castillo responsabilizou o Legislativo por ter negado o voto de confiança, o que o levou à decisão de “recompor” um novo gabinete.
A conformação de seu efêmero terceiro gabinete expressou uma corrente política conservadora em relação aos direitos cidadãos, ortodoxa no manejo econômico e contrária às poucas reformas que foram feitas nos governos anteriores no sentido de melhor a educação universitária e o sistema de transporte público, aponta a analista Ariuela Ruiz Caro.
Enquanto Castillo emprestava seu chapéu e se abraçava com Jair Bolsonaro em Brasília, um prepotente chefe de governo ameaçava discretamente dissolver o Congresso, gabando-se dessa “bala de prata” que o presidente Castillo teria na sua manga.
“Se não nos derem o voto de confiança, cumpriremos o que diz o Congresso: nos iremos e se reestruturará o gabinete. E terão perdido sua primeira bala de prata no Congresso, para que logo o presidente utilize sua bala de ouro e dissolva o congresso”, disse Valer. No Peru, a Constituição estabelece pela “morte cruzada” que, se o Congresso não der o voto de confiança ao gabinete ministerial duas vezes, o Presidente pode dissolver o Congresso.
Valer é um advogado ultraconservador de 63 anos ligado à Opus Dei, velho oportunista da política que nas eleições fez campanha contra Castillo pedindo o “voto contra o comunismo”, que passou por vários partidos e que nestes seis meses de gestão como parlamentar esteve em três bancadas diferentes: uma de extrema-direita, outra de centro-direita e uma terceira formada com dissidentes do partido Perú Libre, agrupação que se autodefine como marxista-leninista.
E, ao cair o chefe de gabinete, devem renunciar todos os ministros. A nova equipe ministerial será a quarta em seis meses de gestão, dado revelador da instabilidade do governo. Sem dúvidas, Castillo acabou muito mal com essa tragicomédia de erros, personagens inapresentáveis, marchas e contramarchas, indecisões, traições e mudanças de rumo. Acabou mais debilitado e isolado por esse episódio.
Perdeu aliados na esquerda e o apoio de setores populares, e longe de acalmar a oposição com o giro de direita que significou esse gabinete de curta vida, ao unir-se com um personagem tão questionado e facilmente vulnerável como Valer, deu munição a quem desde o começo queria sua renúncia.
O curioso é que a direita se absteve de dizer que Valer é um dos seus e o atacou por seus sombrios antecedentes, ignorados por ela quando Valer fazia parte de suas bancadas. Aproveitou ao máximo o escândalo em sua estratégia de destituir o mandatário, como o fujimorismo tentou em dezembro. Outros setores da direita pressionam para que um novo gabinete consolide o giro à direita anunciado com o gabinete frustrado.
O partido governante entrou em guerra contra a ex-parlamentar de esquerda Mirtha Vásquez (quando foi nomeada chefe de gabinete), por ela não pertencer às suas fileiras; se distanciou de Castillo por sua aproximação a outros setores da esquerda; rechaçou a nomeação de Valer como uma concessão à direita; e agora exige que o posto vá para um de seus dirigentes.
Os aliados progressistas de Castillo distanciados do partido, como a ex-candidata presidencial Verónica Mendoza, racharam com o mandatário, acusando-o de trair suas promessas de mudança e luta contra a corrupção para pôr um notório direitista na presidência do Conselho de Ministros, além de ministros neoliberais no ministério da Economia e ultraconservadores nos relacionados às demandas sociais.
Mas o único questionado não é Valer. O ministro de Transportes, defensor das máfias de transporte público informal, também foi denunciado por agredir sua companheira, enquanto que o de Defesa foi acusado por sua esposa de violência psicológica e o do Interior por tráfico de drogas e abuso de autoridade quando era policial.
A imprensa destaca, assim, que a ministra de Mulher e Populações Vulneráveis é uma recalcitrante opositora da igualdade de gênero e homofóbica, e que o de Cultura enviou, no passado recente e por meio de redes sociais, mensagens racistas, xenofóbicas e contra a esquerda.
E o novo ministro da Economia é um tecnocrata neoliberal, que pressagia uma volta às políticas que o presidente prometeu mudar. Se permanecesse no gabinete, ratificaria o giro à direita dado por Castillo. A castillo não basta mudar novamente os ministros, e sim pôr em marcha o caminho de mudanças que ele anunciou em sua campanha.