Publicamos a seguir, neste Dia Internacional das Mulheres, o roteiro de um podcast enviado aos nossos apoiadores em agosto de 2021. Considere também ser um apoiador para receber conteúdo exclusivo.
No ano de 1978, sob a ditadura recém-inaugurada de Jorge Rafael Videla, a Argentina sediaria a Copa do Mundo de Futebol. Ao contrário dos exilados que tentavam organizar um boicote ao mundial, a organização guerrilheira Montoneros tomou a diretiva de aproveitar o evento para realizar ações de propaganda armada e “desnudar” a Argentina dos milicos, sob o mote “Argentina campeã, Videla ao paredão”.
O meio escolhido pela direção dos Montoneros na Europa para enviar as instruções sobre as ações a seus companheiros na Argentina foi curioso: um disco de vinil. O lado A do disco tocava, além das instruções sobre o mundial, uma análise de conjuntura, gravadas na voz do poeta Juan Gelman.
No lado B, no entanto, chegava uma música até então desconhecida, na voz do cantor catalão Juan Manuel Serrat. Aquela seria a única gravação de “La Montonera”, a canção clandestina que conta a história de uma guerrilheira que, com “suas mãos de enxugar suor”, suas “mãos de parir ternura”, pintava nas paredes o lema montonero: Luche y Vuelve!
Há duas versões sobre a figura que inspirou a canção: segundo uma delas, Serrat teria escrito os versos para uma amiga chamada Alicia, membro dos Montoneros, que teria sido assassinada pela Aliança Anticomunista Argentina, a Triple A. Numa segunda versão da história, a música fora escrita para Marie Anne Erize Tisseau, uma jovem argentina de pais franceses que, com uma impressionante carreira de modelo, Miss, e capa de revista, era disputada aos tapas para os comerciais de cigarro e companhias de aviação na Argentina. A vida de modelo, porém, não interessava a Marie; era só um trabalho no mundo platinado, que a sustenta para realizar seu verdadeiro trabalho, no mundo real, de lama, junto aos pobres. Ela se organiza nos bairros populares argentinos, levando comida e roupas aos moradores, enquanto mantém sua carreira como modelo. Aos 20 anos, em 1972, ela se aproxima dos Montoneros após uma viagem a Paris, e, de volta à Argentina, passa a trabalhar ao lado do padre Carlos Mugica, membro do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo.
A situação política argentina, porém, se degenera rapidamente com a morte de Perón, em 1974. Marie se muda para Mendoza no ano seguinte, ao lado de seu companheiro, que é detido em 1976. A ex-modelo então se refugia em San Juan, e já não se chama Marie; adota os codinomes “Lucía” ou “Sofía”. O golpe vem em março, obrigando Marie a mais uma mudança clandestina. Em outubro viaja a Buenos Aires; na cidade, no dia 15, vai até uma loja de bicicletas, e o que sucede, nas palavras da jornalista Susana Ceballos, é que “três homens a cercam de forma ameaçadora. O dono da loja tenta ajudá-la, mas eles lhe dão um soco na nuca que a derruba, enquanto o intimidam com uma arma na mão. Ela grita, se debate, perde os óculos e um sapato. Eles a colocam em um carro Ford Falcon. A noite escura começa, o amanhecer nunca chegará. Marie-Anne continua desaparecida. A justiça agiu 35 anos depois. Determinou que os responsáveis por seu sequestro, estupro e desaparecimento são Daniel Vic, Jorge Olivera, Osvaldo Martel, Carlos Malatto e Eduardo Cardozo, que escolheram ser estupradores e assassinos antes de serem homens.”
Não há dúvidas sobre a inspiração de nossa segunda canção, tema que se liga naturalmente à história de Marie. No ano em que os Montoneros se preparavam para a Copa, o poeta Mario Benedetti e o cantor Daniel Viglietti uniram o poema “Muerte de Soledad Barret” e a composição “Soledad” em uma gravação a duas vozes.
Soledad Barret, neta do famoso escritor anarquista Rafael Barret, nasceu no Paraguai, filha de Alex Rafael Barret, membro do Partido Comunista daquele país, e Deolinda Viedma Ortiz. Viveu entre a Argentina e o Uruguai na juventude, em função da perseguição contra sua família, e se aproximou do Partido Comunista do Uruguai ainda antes de chegar à maioridade. Em Montevidéu, aos 17 anos, ela foi sequestrada por um grupo de neonazistas que rasgaram suas coxas, marcando-as com uma suástica nazista, por ter se negado a gritar “viva Hitler”. No ano seguinte, ela é enviada para estudar na União Soviética. De volta à Argentina, passa a atuar junto aos camponeses na fronteira com o Paraguai.
Aos 22 anos, Soledad migra para Cuba, onde conhece o brasileiro José Maria Ferreira Araújo, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Se casam em 1968 e no ano seguinte têm sua primeira e única filha, Ñasaindy. José Maria logo volta para o Brasil e acaba preso, torturado e assassinado aos 29 anos. Soledad, já integrada à VPR, chega ao País em 1971, e passa a atuar em Pernambuco ao lado do sergipano José Anselmo dos Santos, codinome Daniel, de quem engravida. Em 1973, no dia 8 de janeiro, aos 28 anos e grávida de quatro meses, Soledad é capturada junto de outros cinco companheiros. Todos são torturados, amarrados, e executados. “Daniel”, o companheiro de Soledad, pai de sua filha, escapa, porque seu codinome escondia muito mais que seu batismo; era Cabo Anselmo, o militar infiltrado pela ditadura na VPR, que entregou sua companheira grávida, e que vive, até hoje, escapado. Essa história só começou a ser esclarecida na década de 90, mas Soledad ainda é – como a Alicia ou a Marie de Serrat – uma desaparecida. E como Benedetti versa, na canção a seguir, “Soledad não viveste em solidão / Por isso sua vida não se apaga / Simplesmente se enche de sinais / Soledad não morreste em solidão / Por isso sua morte não se chora, simplesmente a alçamos no ar. / A partir de agora a nostalgia será um vento fiel que fará sua morte vibrar para que pareçam exemplares e claras as franjas da sua vida.”