É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe”
(Criolo, Esquiva da esgrima)
“É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe”: a isca neoliberal
Em 2016, logo após o golpe que retirou a presidenta Dilma Rousseff de seu cargo, Michel Temer, um dos articuladores políticos do golpe, deu o pontapé em uma agenda política e econômica para o Brasil chamada de “Uma ponte para o futuro”, elaborada em 2015. O programa, fruto da articulação golpista, visava, principalmente, a aceleração e radicalização da agenda neoliberal. Digo “aceleração” e “radicalização” porque, refém da própria política de pactos conciliatórios pelo alto que a encurralou pelo centrão, por um lado, e pelas forças do mercado de outro, a ex-presidenta Dilma já havia aberto mão de suas promessas eleitorais, quando disse que não cederia às pressões neoliberais “nem que a vaca tussa”. Anunciou um neoliberal de carteirinha para o Ministério da Fazenda, o chicago boy Joaquim Levy, que já havia integrado o governo Lula, anteriormente, como Secretário do Tesouro Nacional e, bem posteriormente, se tornaria Presidente do BNDES, evidenciando a continuidade neoliberal brasileira durante a gestão de Jair Bolsonaro.
Apesar das diferenças, que não são irrelevantes, houve e ainda há uma espécie de linha vermelha de continuidade que costura o aparente caos de fatos e atores políticos: tanto em Levy sob a gestão de Dilma, quanto no projeto golpista de Temer com sua “ponte para o futuro”, e também na radicalização neoliberal promovida por Bolsonaro com Paulo Guedes, outro neoliberal ortodoxo, está a austeridade.
A lógica neoliberal da austeridade parte do senso comum, correto, de que é preciso que haja eficiência no gasto público, com o objetivo de evitar desperdícios desnecessários. Qualquer pessoa concorda que é fundamental que haja cuidado com o dinheiro público, afinal tal cuidado permite que se faça mais com a mesma quantia, potencializando o gasto público com foco no que é importante. O problema é o que se considera, pela lógica neoliberal, como “desperdício” e “importante”. O “importante” é um mercado livre, desregulado e que continue se expandindo ao máximo e infinitamente (como se isso fosse possível), mercantilizando tudo e todos. O “desperdício”, portanto, é tudo que escapa à lógica da mercantilização. Por exemplo: o investimento público que vise a construção de um aparato mínimo de solidariedade social que permita o acesso universal à saúde, educação, moradia, trabalho, alimentação e dignidade para a população. Afinal, para o neoliberalismo, como dizia Margaret Thatcher, não há Estado babá. Ao Estado não cabe oferecer algum tipo de bem-estar, mas – e aqui o que é importante –, intervir para “moldar politicamente as relações econômicas e sociais regidas pela concorrência”[1]. O critério de atuação do estado neoliberal não é o bem-estar humano, mas a manutenção e ampliação da lógica concorrencial, a tal ponto que, como afirma Hayek: “O estado deve ou não ‘agir’ ou ‘intervir’? – apresentar a alternativa dessa forma é desviar a questão. O termo laissez-faire é extremamente ambíguo e serve apenas para deformar os princípios sobre os quais repousa a política liberal. (…) o que importa é mais o caráter da atividade do governo do que seu volume”[2] (grifo nosso).
Cabe observar que toda política econômica não é “apenas” um modo de gestão técnica (ou seja: ideologicamente neutro) da economia, como se, independente de qual alinhamento político seguido, os pressupostos econômicos fossem os mesmos, como querem nos fazer acreditar. Toda visão econômica guarda, em seu núcleo, um modelo de organização social, de percepção do ser humano e de interação institucional. Assim, o neoliberalismo “não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades”[3], que naturalizam o neoliberalismo e, pior ainda, bloqueiam a capacidade humana de imaginar politicamente possibilidades para além dos seus limites. Em resumo, “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é, em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”[4].
Pensar a política econômica sob esse prisma complexifica bastante a forma como se percebe seus conflitos. A adoção do modelo neoliberal não é apenas a aplicação de técnicas neutras – isso é justo o que os ideólogos neoliberais querem nos fazer crer –, mas a aceitação, consciente ou inconsciente, de bases políticas concretas que reproduzem o modo neoliberal de vida baseado na absolutização da concorrência. Um neoliberalismo progressista ou um neoliberalismo conservador, para trazer suas facetas e complexificar a questão, ainda é neoliberalismo em sua essência. Como coloca Nancy Fraser:
“O bloco progressista-neoliberal combinou um programa econômico neoliberal e plutocrático com uma política de reconhecimento liberal-meritocrática. O componente distributivo desse amálgama era neoliberal. Determinadas a libertar as forças do mercado da pesada mão do Estado e da moenda dos ‘impostos e gastos’, as classes que lideraram esse bloco visavam liberalizar e globalizar a economia capitalista. O que isso significava, na realidade, era a financeirização: desmantelamento das barreiras e das proteções à livre circulação do capital; desregulamentação bancária e ampliação das dívidas predatórias; desindustrialização; enfraquecimento dos sindicatos e difusão dos trabalhos precários e mal remunerados”[5].
Um dos efeitos políticos da adesão acrítica ao neoliberalismo, ainda que de cunho progressista – acriticidade essa que no Brasil chega ao auge na argumentação de que criticar o neoliberalismo é fortalecer o neoliberalismo (?) – é, em especial: uma crescente despolitização e paralisia política de trabalhadores e intelectuais ou, em outros termos, a limitação da imaginação política a, no máximo, um progressismo neoliberal.
A expressão mais bem-acabada desse processo de adesão ao neoliberalismo e bloqueio da imaginação política é a famosa frase de Fredric Jameson: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Assim, a esquerda brasileira, ao se entregar à versão progressista do neoliberalismo, encarnou, como poucas no mundo, a expressão de tal bloqueio. Nada, absolutamente nada, pode ser tentado, a não ser a conciliação neoliberal sob uma versão “humana”, “progressista” – como se isso fosse possível. E não estou partindo da visão ingênua de que nossa esquerda hegemônica fosse chegar ao poder para “revolucionar” (até porque não é assim que funciona). Muito menos que Lula, o PT ou outros partidos progressistas partilhem de quaisquer convicções socialistas. Porém, entre o neoliberalismo e a revolução há, como a própria história da América Latina nos mostra, alternativas (vide Hugo Chavez na Venezuela, Evo Morales e Luis Arce na Bolívia, Gustavo Petro na Colômbia, dentre outros), mesmo que dentro das limitações ideológicas de cada um desses exemplos e das próprias dinâmicas institucionais. Ou seja, o argumento é que se a revolução não está palpável no imediato, ou se os comunistas não estão prontos para a revolução amanhã, então não há nada a se fazer e nem o que cobrar: ou se adere ao neoliberalismo ou, se não há uma revolução pronta amanhã, que calemos a boca, deixemos a ingenuidade de lado e aceitemos ainda mais neoliberalismo, em favor de uma suposta governabilidade – afinal, pelo menos não é a direita quem está no poder.
O resultado é que a esquerda brasileira é o retrato, até melhor do que o desenhado por Mark Fisher ao falar da Inglaterra, daquilo que ele chamou por realismo capitalista: “Não se trata necessariamente da ideia de que o capitalismo é um sistema particularmente bom, mas sim de persuadir as pessoas a acreditarem que é o único sistema viável e que a construção de uma alternativa é impossível”[6]. Ainda que crítica do ponto de vista estético e discursivo, a esquerda brasileira age cinicamente como se admitisse para si mesma que é impossível superar os pressupostos neoliberais, quem dirá o capitalismo. Uma postura ideológica cínica, de quem critica e performa criticidade quando conveniente, mas reproduz politicamente a forma de vida neoliberal em sua prática política. Isso é o que Fisher chama de impotência reflexiva: “eles sabem que as coisas vão mal, mas mais do que isso, ‘sabem’ que não podem fazer nada a respeito”[7].
Ao assumir o neoliberalismo progressista como único horizonte possível, por um lado nossa esquerda bloqueia qualquer debate político – afinal, se não há mais alternativas a não ser uma falsa polarização (que nossa mídia ama dizer que existe) de formas de aplicação do neoliberalismo, não há disputa política de fato, pois toda eventual proposta política está inviabilizada de partida, recaindo sempre na impossibilidade a priori de qualquer alternativa –; por outro a esquerda neoliberal-progressista usa muito bem a ausência de alternativas para aparecer como única alternativa real para frear uma barbárie ainda maior, surfando na onda do que Slavoj Zizek apontava como chantagem liberal[8], em que o medo da extrema direita é instrumentalizado de forma a fazer o debate público aceitar de modo acrítico qualquer projeto político, por mais radicalmente neoliberal ou por mais próximo da extrema direita que seja, sob a justificativa de que é a única saída para evitar o pior, num eterno jogo de menos pior em menos pior que só piora com o tempo, alargando a implantação da racionalidade neoliberal e fazendo a alegria da burguesia, que ganha independente de quem ganhe.
Agora podemos fazer o caminho do abstrato ao concreto e pisar em solo brasileiro. A Carta aos brasileiros, a agenda golpista da Ponte para o Futuro, a ascensão bolsonarista capitaneada por Paulo Guedes e a capitulação completa do terceiro governo Lula ao neoliberalismo, mostram que a essência neoliberal, que ganhou maior musculatura com a PEC do Teto de Gastos de Temer e visava limitar o investimento público em serviços e no social em prol de um suposto equilíbrio fiscal que só beneficia os ricos – ou seja, a burguesia brasileira –, se mantém mais viva do que nunca, confirmando a vitória neoliberal e mostrando que, se há alguém ainda não sabe que vivemos numa luta de classes, esse alguém é a esquerda, porque a direita sabe muito bem – tanto assim que estão ganhando com extrema facilidade (ouso dizer que em poucos países tem sido tão fácil ser de direita como no Brasil). Mesmo quando perdem eleitoralmente, suas pautas permanecem sendo aplicadas independentemente da cor da bandeira do governante ou da intensidade de sua aplicação. Assim, o governo Lula III se orgulha de seu pacote de austeridade, que gerará insatisfação popular a médio e longo prazo, insatisfação popular que, certamente, será a bala de prata da extrema direita diante de um governo que, sem forças, negocia dando tudo em troca de nada.
No Brasil o neoliberalismo (do bem) veste vermelho
Porém, o que mudou do golpe para hoje? Certamente a reação e a postura das esquerdas é algo que se nota rapidamente. A forma como a esquerda tem reagido a um governo rendido, e que reforça sua posição de rendição por ter cedido antes da luta, arrogante em sua fraqueza, é um mordaz sintoma de sua morte. Em 2016, naquele fatídico ano do golpe, ocupamos as universidades, escolas e ruas contra a tal PEC do Teto. Na época, uma política tão radicalmente neoliberal e com consequências sociais tão violentas era considerada um absurdo que viria a destruir por inanição a população brasileira, bem como jogar fora a oportunidade de construirmos um país melhor. Eu, que fazia parte da União da Juventude Comunista do Partidão, assim como diversos camaradas e lutadores de todo Brasil, organizados em diversos movimentos e partidos, fomos para Brasília lutar. Por óbvio, a vitória não era certa, como nada na vida é certo e em nenhuma luta há vitória antes da luta. Por isso Mao dizia “ousar vencer”, pois vencer requer coragem de se jogar num horizonte indeterminado. Mas ao menos tivemos a decência e a coragem de tentar, como durante toda história do Brasil o seu povo nunca deixou de lutar. Se não for para lutar contra a desumanização, para que serve a esquerda? A derrota faz parte – já o fetiche pela derrota e a desistência pertence aos covardes.
Sete anos depois, após passarmos por uma pandemia que levou centenas de milhares de brasileiros à morte e serviu como estopim para o aprofundamento do golpismo com o fascismo de Bolsonaro, a esquerda volta ao poder com a eleição de Lula em 2022. Durante a campanha, Lula falou, inúmeras vezes, que não haveria teto em seu governo, e apontou, corretamente, o quanto esse tipo de política era fruto de uma entrega do país aos especuladores e rentistas, representando uma falta de projeto político, que causa miséria, desigualdade e aprofunda opressões – os mais afetados com a escassez do investimento estatal no social são sempre os mais pobres, que no Brasil são a população negra, periférica, sem esquecermos de indígenas, quilombolas, LGBTQIAP+ et al.
Contrariando seu discurso eleitoral, ao iniciar seu governo, Lula toma como principal agenda política justamente um novo teto de gastos, tocado por seu ministro, o mais tucano dos petistas, Fernando Haddad, o assim chamado “arcabouço fiscal”. Tudo isso sem debate com a população. Segundo o próprio Haddad, o arcabouço fiscal é uma das regras “mais duras do mundo”. Em resumo, o arcabouço petista limita o gasto público, impondo uma série de gatilhos que irão travar o investimento estatal no social, na abertura de concursos públicos, na valorização salarial do funcionalismo etc. Tudo isso para garantir o pagamento dos juros da dívida. A título de comparação: o arcabouço só permite que o Estado invista e gaste entre 0,6% e 2,5% acima dos gastos do ano anterior , retirado desse percentual o pagamento dos juros da dívida (ou seja, preservando quem se beneficia com o recebimento desses juros). Lula, para conter a crise de 2008, subiu os gastos públicos em mais de 10% para garantir que a crise não tivesse tanto impacto no Brasil – e tal medida, impossível dentro da normativa do arcabouço, se mostrou acertada. Caso o arcabouço fiscal vigorasse desde 2003, início do primeiro governo Lula, o Brasil teria perdido cerca 8 trilhões (!) em gastos e investimentos, o que impediria a implementação de diversos projetos que sustentam o capital político de Lula (a exemplo da expansão universitária, que seria limitada ou até inviabilizada), como mostra texto do economista da bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, David Deccache:
“O segundo governo Lula, para sair da crise internacional, cresceu os gastos acima da inflação em 9,59% e 16,30% nos anos de 2009 e 2010. Agora temos economistas e políticos dizendo que 0,6% é um mecanismo anticíclico que garantirá ao terceiro governo Lula um piso para sair de eventual turbulência.
Para se ter uma ideia, se as regras propostas no Novo Arcabouço Fiscal estivessem em vigor desde 2003, teríamos cerca de R$ 8,8 tri a menos em serviços públicos oferecidos à população no período!”.
Essa “dureza” quem irá sentir não serão os amigos de Haddad, que formam parte do mercado financeiro e da burguesia, os quais ele tanto se empenha em agradar, mas o povo – esse que elegeu o PT e seu programa que afirmava que não haveria mais teto de gastos. Será a educação, enfermagem, saúde, as políticas públicas, os funcionários públicos, a juventude negra, os povos indígenas, as pessoas com deficiência, as mulheres, as LGBTQIAP+, enfim, todos que subiram a rampa na posse de Lula. Agora descem-na escorraçados depois de terem sido feitos de token para construir uma aparência progressista que, ao final, se mostrou um engodo para a manutenção neoliberal. O brilho da estrela vermelha ilumina apenas os ricos. Como sabemos, toda estrela um dia morre, vira um buraco negro e suga com sua força gravitacional tudo que estava ao redor, deixando de brilhar. O arcabouço, a longo prazo, irá retirar muito dinheiro que, ao invés de ser usado para melhoria da vida do povo brasileiro, irá para o bolso dos barões que financiaram o golpe e o bolsonarismo, eles mesmos, os idealizadores, financiadores e executores do golpe e responsáveis pela ascensão fascista, serão os maiores beneficiários. Basta ver que João Dória, Paulo Guedes e banqueiros (esses, que até ontem eram nossos inimigos, ao que me lembre), não cansam de elogiar a medida.
O Arcabouço Fiscal foi votado na calada da noite. Lembrando os piores momentos das implementações neoliberais da era FHC, que votava projetos no final da noite e início da madrugada para evitar repercussões e protestos. Sabemos bem que é na calada da noite que os ratos fazem a festa. Porém, naqueles tempos em que o neoliberalismo usava azul, ao menos havia luta. Hoje, quando veste vermelho, só há silêncio ou, pior, é considerado um “avanço civilizatório”. As figuras progressistas adoram frases de impacto como “pânico de nada”, “fogo nos racistas”, “venceremos!”, “nunca tenha medo do seu inimigo”, mas apenas no sentido retórico, a fim de aparentar uma militância que tão somente serve para angariar simpatia pessoal, alavancar projetos individuais ou amenizar o peso na consciência diante de sua própria impotência reflexiva.
O que parece é que o problema nunca foi o neoliberalismo, mas apenas a cor vestida por quem nos impõe sua lógica de exploração e opressão. Uma espécie de estetização[9] da política, onde os neoliberais do bem vestem vermelho e os malvados vestem a camisa amarela da seleção brasileira. Como vivemos tempos onde o governo nos estrangula com o boné vermelho da moda, então presenciamos a paz de uma morte anunciada, de uma esquerda que morreu, mas que, como um zumbi, continua andando por aí controlada pelo fungo da austeridade. Um cadáver podre que por apego, negação ou cumplicidade, não enterramos, mas cujo cheiro fétido não deixa de nos alertar de sua morte. O pouco que sobrou é apenas um igualitarismo meritocrático que, apesar de ter sua importância pontual, não afeta a totalidade das relações sociais, não alterando em nada o solo de exploração e opressão. Sobrou – e este é o ponto de separação entre o neoliberalismo progressista e conservador –, “uma política progressista de reconhecimento”[10] profundamente liberal.
“Servindo-se das forças progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. No centro deste ethos estavam os ideais de ‘diversidade’, ‘empoderamento’ das mulheres, direitos LGBTQ+, pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo. (…) Igualdade significava meritocracia.
A redução da igualdade à meritocracia foi especialmente fatídica. O programa neoliberal progressista para uma ordem ‘mais justa’ não visava abolir a hierarquia social, mas ‘diversificá-la’, ‘empoderar’ mulheres ‘talentosas’, pessoas de cor[11] e minorias sexuais para que chegassem ao topo. Esse ideal é inerentemente específico a uma classe, voltado para garantir que indivíduos ‘merecedores’ de ‘grupos sub-representados’ possam alcançar posições e estar em pé de igualdade com os homens brancos e heterossexuais de sua própria classe. A variante feminista é reveladora, mas, infelizmente, não é única. Focados em ‘fazer acontecer’ e ‘quebrar o teto de vidro’, seus principais beneficiários só poderiam ser aqueles que já possuíssem o necessário capital social, cultural e econômico. Todos os outros continuariam presos no porão”[12].
Os efeitos nefastos do neoliberalismo sempre se voltam contra a esquerda, além de continuarem esmagando o já machucado povo brasileiro. O estrangulamento das políticas públicas promovidas pelo arcabouço irá criar um clima de insatisfação que poderá ser crescente e fatal. Afinal, em lugar nenhum as políticas neoliberais surtiram efeitos positivos, nem para a economia nem para produzir ganhos políticos permanentes. A insatisfação popular contra a política, que já sentimos no Brasil (e que foi tão mal interpretada pela esquerda, afinal a limitação da imaginação política também empobreceu a capacidade analítica da própria condição e realidade), se mostrou potencialmente explosiva, ainda que sem direção. Por mais difusa que seja, me parece fazer sentido tal insatisfação: afinal, o neoliberalismo corroeu e corrói a condição de vida da população, precariza as relações, retira direitos e produz a impressão de uma falsa polaridade política (neoliberalismo progressista vs. conservador) que aparece, sintomaticamente, pelo discurso do “todos os políticos são iguais”. Para piorar, a esquerda parece ter vocação para o estelionato eleitoral, desde a Carta aos Brasileiros até 2022, quando Lula é eleito como candidato antineoliberal e, assim que toma posse, mergulha no neoliberalismo. Depois, quando as pessoas se irritarem e apontarem o dedo dizendo, “precisamos mudar tudo isso que está aí porque todos são iguais”, vamos chamar o povo de burro, ignorante e manipulado, voltando para o lugar seguro da superioridade moral, mas de incapacidade política de produzir alternativas.
Espero, talvez ingenuamente, que ao invés de transferirem a responsabilidade dos resultados de suas escolhas para quem os critica, para os que ousam resistir ao charme melancólico do neoliberalismo progressista (como fizeram e fazem até hoje sobre o golpe e o bolsonarismo, cuja a responsabilidade é de todos, menos de quem esteve no poder por 14 anos!), se responsabilizem. Mas, como a história nos apontou, isso não vai acontecer. Haverá, como já começou a haver, a famosa transferência acrítica de responsabilidades. Vão culpabilizar quem critica, quem protesta, quem resiste, quem quer avançar etc., afinal é sempre muito mais fácil fugir dos seus próprios erros transferindo-os para o outro do que tomar para si as responsabilidades das próprias escolhas. O que temos é uma finada esquerda que tem alergia à crítica, medo de rua e incapacidade cognitiva de aprendizado com o passado recente e com os próprios erros. Essa transferência de responsabilidades também é um sintoma do cinismo que todo neoliberal ama, o cinismo do não há alternativas – ou é isso ou algo pior, exatamente como dizia Margaret Thatcher, Mises, Milton Friedman e companhia.
A esquerda que foge da luta, abraça a derrota
“Por que não cuidar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança, e não temer que esse temor de errar já seja o próprio erro?”
(Hegel, Fenomenologia do espírito)
Recentemente, o colombiano Gustavo Petro, eleito o primeiro presidente de esquerda em seu país, nos mostrou que sim, é possível tentar (e numa conjuntura pior que a brasileira). Petro, cercado por uma legislatura conservadora, tal qual nosso Congresso, rompeu com sua coalizão, forçou uma agenda o mais à esquerda possível e mobilizou suas bases, usou sua popularidade para educar o povo da necessidade das reformas à esquerda e o convocou para as ruas.
Por aqui há um apego ao obstáculo e à derrota antecipada, que impede a percepção de alternativas. O mais comum é dizer que o Congresso é conservador – como se alguém imaginasse que, em nossa conjuntura, teríamos um legislativo progressista. Porém é preciso ser taxativo: apesar de ser óbvio que, com um Congresso conservador, haveria uma tensão que imporia uma agenda à direita ao Brasil, a postura do governo nunca foi de enfrentamento, tornando tal argumento apenas uma desculpa pouco consistente para desistir de tentar por antecipação. E, pior ainda, enxergando nessa desistência, que só demonstra impotência, habilidade política e realismo. Vamos tomar o caso da votação do arcabouço fiscal. Não é que o Congresso precisou neoliberalizar e tensionar à direita uma proposta avançada do governo; foi o governo que, por conta própria, enviou uma proposta em cujo núcleo está a austeridade – e que, por óbvio, foi piorada no Congresso. Ou seja, não houve guinada à direita do projeto, o projeto já era essencialmente neoliberal e foi apenas ajustado para ficar ainda mais rígido.
Vejamos, então, como o próprio governo apresentou a proposta. “Há uma banda (piso e teto) para o crescimento real (descontada a inflação) das despesas do governo entre 0,6% e 2,5%”. Perceba que o eixo do projeto coloca o PT diante de um problema: como o crescimento do gasto público depende de um aumento da arrecadação, ou se amplia a arrecadação com o aumento da tributação – e mesmo que a arrecadação seja enorme, o investimento do governo não pode passar do teto de 2,5% em relação ao ano anterior –, ou o governo terá que estrangular áreas sociais importantes para fazer as despesas caberem na nova regra. Por óbvio, a escolha é nítida para os neoliberais progressistas: o governo tem sinalizado para a segunda alternativa, qual seja, a de atacar direitos conquistados com muita luta, que são os mínimos constitucionais para Saúde e Educação, deixando essas áreas submetidas a um teto que, a depender do governo, poderá estrangular ainda mais tais áreas e com respaldo legal, já que não contam mais com uma pressão normativa que os impedia de retirar investimentos:
“Atrelados à arrecadação, os gastos mínimos com saúde e educação determinados pela Constituição serão reavaliados, disse nesta quinta-feira (30) o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron. […] ‘Entendemos que há critérios que podem ser melhores que a mera indexação [em relação às receitas]’, disse Ceron”.
Por outro lado, há sim uma área que ficará fora do teto: o pagamento dos juros da dívida, que beneficia rentistas, banqueiros e o mercado. “O principal balizador dessas normas é a fixação de uma trajetória consistente para o resultado primário do governo Central, que são as receitas menos as despesas deste ente, descontadas as despesas financeiras com a dívida pública”. Perceba que o foco principal do projeto é resguardar as despesas com a dívida e não garantir o investimento (piso esse de apenas 0,6%). Para tal objetivo o próprio governo – e, frise-se, não o Congresso – pretende sacrificar os pisos constitucionais com Saúde e Educação, resguardando o mercado do teto.
Numa espécie de repetição sintomática que remete à Carta aos brasileiros, Haddad, em carta para o FMI (Fundo Monetário Internacional), defendeu seu arcabouço para demonstrar ao mercado e ao grande capital internacional sua devoção aos dogmas neoliberais: “As despesas crescerão abaixo da arrecadação e as metas de resultado fiscal primário serão definidas de forma consistente com o objetivo de manutenção da sustentabilidade da dívida”. E prosseguiu: “Neste novo cenário, o governo poderá registrar um superávit fiscal primário de 1% do PIB em 2026.”. E, me tornando repetitivo, não foi o Poder Legislativo quem produziu o texto do arcabouço e nem mandou carta ao FMI. O Congresso, claro, piorou o projeto, radicalizando-o, mas não o tornando neoliberal, dado que neoliberal o arcabouço já era desde seu princípio. O Executivo lutou pelo arcabouço e não por outra proposta mais avançada, não porque sabia que não iria passar, mas por convicção, tanto que o deputado federal Lindberg Farias, do PT, foi barrado pelo próprio partido na CPI dos atos golpistas por ter criticado o projeto, numa clara sinalização de bloqueio a qualquer debate à esquerda de sua proposta. O Congresso, por óbvio, ao ver que o próprio governo não apenas enviou uma proposta neoliberal, como também que pune quem a critica, partiu para a ofensiva. Do mesmo modo, a bancada do PT e dos demais partidos progressistas, com exceção do PSOL, rejeitou fazer destaques ao texto votado, o que poderia diminuir o impacto do teto nas áreas sociais fundamentais, como afirmou Zeca Dirceu: “A bancada do PT não fará emendas ao arcabouço fiscal”.
Claro que a correlação de forças nas instituições não é favorável, até pela própria característica da circulação de poder nelas, pois as instituições são reflexo do poder dominante de uma sociedade e, por isso mesmo, tendem sempre a ser expressão mais conservadora possível desse poder dominante. Mas a correlação de forças não é um dado da natureza, que só muda por intervenção divina. Como o próprio nome já diz, correlação de forças remete a uma disputa onde quem impõe mais força tende a diminuir os impactos do adversário, numa espécie de cabo de guerra. Por isso mesmo ela é constantemente mutável; cada movimento a altera. Quando um dos lados já parte, de cara, com um projeto que o próprio adversário aplaudiu, o sinal dado é de fraqueza, e não de força. Para ilustrar o ponto, aproveitando o sinal de fraqueza, o Congresso passou a boiada com a MP dos Ministérios – que esvazia as pastas de Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. Em ofensiva, a Câmara dos Deputados também aprovou o Marco Temporal, o sonho de ouro do golpismo e do bolsonarismo. Ou seja, a tão temida boiada não passou com tudo no bolsonarismo porque havia alguma resistência, mas diante de nossa complacência do “não pode criticar”, “é o que dá para fazer” etc., a boiada, enfim, está passando – e silenciosamente. Contraditoriamente, apesar da prepotência em que brada sua superioridade diante de seus críticos à esquerda, a impotência petista reflete apenas uma esquerda hegemônica tão medrosa do fracasso que prefere ela mesma fracassar de antemão. Não é preciso o adversário forçar uma neoliberalização. A própria esquerda faz isso para evitar que a direita o faça, assim se percebe como vitoriosa, ainda que tal mecanismo de defesa não faça nenhum sentido de um ponto de vista racional.
A morte da esquerda guarda algo de trágico: um tipo específico de negacionismo que por óbvio não quer ouvir críticas, afinal não quer ter que se deparar com a realidade de seu próprio esgotamento político e incapacidade de capturar demandas populares.
“Se a extrema direita ao recorrer à desinformação ou a qualquer outro subterfúgio, conseguiu mobilizar as paixões de milhões de pessoas que se sentem desassistidas e deixadas para trás, é porque esses sentimentos existem. Isto é, a mensagem da extrema direita só é convincente porque um grande número de pessoas acredita que há, de fato, algo profundamente errado com o sistema político e econômico atual. Combater essa mensagem não se resume, portanto, a combater as mentiras em que ela vem embalada, mas exige, em última análise, dar respostas às questões que estão na raiz desses sentimentos. Isso não poderá acontecer, enquanto continuarmos negando a existência dessas questões. […]
A maioria das vozes que se dizem ‘realistas’ hoje repete dogmas de uma realidade que sequer existe mais. Desde a crise de 2008, não há perspectiva segura no horizonte global de um novo ciclo de crescimento econômico que produza empregos e reduza a desigualdade. As tendências apontam, pelo contrário, para um capitalismo de baixa produtividade, voltando à extração de renda, e um aumento do desemprego estrutural. Além disso, a evidência inescapável da crise ambiental põe em xeque qualquer promessa de progresso infinito e os cálculos imediatistas de corporações e países. Se uma quantidade crescente de pessoas está se abrindo a posições que antes seriam tidas como ‘extremas’, tanto à direita quanto à esquerda, é em primeiro lugar porque o ‘centro’ não consegue mais convencê-las de que tem condições de manter suas promessas. É por isso que o meio-termo entre o neoliberalismo-conservador e neoliberalismo-progressista perde sua aura de ponto de equilíbrio natural” [13].
Errar não é e nem nunca foi um problema, mas, como diz o dito popular, permanecer no erro é burrice. Continuar na mesma estratégia e esperar resultados diferentes é um tipo bem específico de negação de seu próprio erro, muito comum em nossa esquerda. Como a própria história recente nos mostra, voltando a um passado bem recente: “Dilma não caiu por ter partido para a ofensiva, mas porque já não tinha mais para onde recuar. […] Depois de fazer uma campanha em que se colocava como a única candidata antiausteridade, Dilma adotou um severo programa de ajuste fiscal que alienou sua base de apoio”[14]. Hoje, presenciamos o governo e seus defensores se enxergando como grandes mestres da realpolitik, quando na verdade não passam de falsos realistas que buscam ocultar sua própria incapacidade de enfrentamento e de influir na correlação de forças de maneira efetiva. Até quando o recuo vai sustentar a esquerda no poder, não sabemos. Mas sabemos quem certamente sentirá na pele o preço da genial estratégia política da esquerda.
Eu sei que é doloroso admitir e pode até parecer fatalista, mas não é. Pelo contrário, é preciso uma certa dose de realidade, ainda que ela seja extremamente dolorida. Faz parte do luto a negação e resistência aos fatos, a fim de manter o objeto perdido vivo de alguma forma. Mas isso que chamávamos de esquerda – ou ao menos sua histórica estratégia de conciliação por cima –, sejamos honestos e encaremos os fatos, morreu. Sua morte não começou hoje, como já nos alertou Vladimir Safatle. Sua morte, a despeito de um possível tom melancólico que esse texto aparente ter, não significa seu fim, mas a necessidade de renascimento, como já tinha colocado Safatle:
“Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é ‘não tomar ciência de seu próprio fim’ repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites”[15].
Isso nos força a encarar o momento histórico e qual tarefa temos adiante – não como obrigação, mas como luta por sobrevivência. Cabe agora entender: o que nos levou à morte? Quais caminhos nos levaram ao esgotamento desse ciclo político? Como chegamos até essa situação de impasse político? Para dar um passo firme e definitivo, é preciso antes admitirmos nossa própria luta de vida ou morte. Ter coragem de encarar a possibilidade de nosso próprio desaparecimento é o que nos torna humanos livres e não escravos, permitindo-nos tomar nossa própria história em nossas mãos, e não a entregar de mãos beijadas aos senhores, pois
“é na luta, em que a força do negativo se manifesta pela aceitação voluntária do risco de vida ou pela angústia provocada pelo aparecimento consciente da morte, que o homem cria seu Ser humano, transformando assim, como por magia, o nada que ele é, e que se manifesta a ele e por ele como morte, em uma existência negadora do combatente e do trabalhador criadores da história”[16].
Sem sabermos como chegamos até aqui, tanto como esquerda e como país, como é possível termos as condições de nos percebermos enquanto lutadores entre a vida e a morte? Sem nos depararmos com a verdade que o risco de desaparecimento nos impõe, não saberemos encontrar os rumos necessários para um renascimento. É preciso conter a busca por soluções desesperadas, que só nos leva a repetições improdutivas, quase que neuróticas. Uma luta de vida ou morte está longe de ser uma luta desesperada; é preciso muita perspicácia, estratégia e firmeza para encará-la. Precisamos entender que nas últimas décadas fomos incapazes de capturar dinâmicas de revolta difusas na sociedade, de tal forma que não sobrou nada a não ser uma performance (uma estética) vazia. Os movimentos “de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de médio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim”[17]. Sem encarar nossa própria morte, seremos incapazes de renascer livres das amarras do medo. Encarando-a, ressurgiremos com força suficiente para dizer em alto e bom som: sim, há alternativas!
Para além de uma estética comunista… Por um projeto político comunista
A crítica consequente sempre é radicalmente ampla e, portanto, não pode poupar nem o campo ao qual me alinho (inclusive a dureza deve ser a mesma), que chamarei de esquerda radical. Apesar das poucas vozes que tentaram e tentam dar combate ao arcabouço fiscal, e de sua coragem incrível e louvável, é preciso reconhecer nossa incapacidade de influir de fato no debate público, de mobilizar as ruas e de produzir resistência e avanços efetivos. As poucas vozes que se esgoelam, infelizmente com pouquíssimos resultados em apontar os limites do neoliberalismo progressista, para além da conveniência do momento (como no caso de progressistas que criticavam o neoliberalismo ontem, mas hoje se calam ou tergiversam), só confirmam o quanto há para percorrer no campo radical.
Claro que nossa influência aumentou nos últimos anos, porém ainda é bastante minoritária[18]. Não temos protagonismo em nenhum espaço político, salvo ações muito, mas muito, pontuais – ou seja, estamos longe de construir hegemonia. A esquerda radical, para citar um exemplo, não tem força para convocar um protesto efetivo e, se por um acaso, convocar um protesto e ele fosse massivo, como pensou Fisher, não saberia o que fazer. Afinal, “o realismo capitalista não exclui certo tipo de anticapitalismo” – ou seja, até nos cabe espaço para uma atitude subjetiva de crítica ao capitalismo, contanto que ela não seja efetiva, não tenha impacto e nem estratégia prática, fazendo com que, no fundo, “saibamos” que é impossível superar tal estado de coisas, ainda que nunca se vá admitir[19].
Portanto cabe ao campo radical encarar também sua morte. Para isso, muito humildemente, aponto três quesitos centrais para superarmos nosso próprio esgotamento: 1) sair de um comportamento de superioridade moral ante as demais forças políticas e sociais, como se, por serem os “representantes e conhecedores da ciência imortal do proletariado”, estivéssemos acima das demais forças e possuíssemos um acesso maior à verdade, ainda que sem nenhuma reverberação política. 2) Deixar de lado uma mera verborragia improdutiva de bradar palavras de ordem sem conteúdo prático – como “pelo poder popular”, mas sem um projeto de país que aponte a esse mesmo povo como de fato será esse tal de “poder popular”, o que será feito, quais serão as medidas imediatas, de médio e longo prazo, e como elas irão impactar na vida das pessoas de fato. O problema é “sua incapacidade e indisposição para entender o que ocorre a sua volta, para oferecer e articular medidas concretas e objetivas de melhoria da vida das pessoas, em torno do qual elas se sintam impelidas a lutar coletivamente para realizar. Pois, ‘ir ao povo’ significa ser e resolver com o povo os problemas do povo”[20]. 3) Deixar de lado certo narcisismo que por um lado gera um autoelogio distante da realidade, que aparece como glorificação da URSS, Coreia Popular, Cuba etc. (e cabe atentar que há diferença entre reivindicar as experiências socialistas como aprendizado histórico e que esse comportamento se torne uma mera exaltação que reafirma o comunismo como identidade subjetiva), enquanto não consegue expor com profundidade os problemas do povo brasileiro (pela voz do povo brasileiro); e por outro lado, acarreta uma postura que faz pequenas divergências se tornarem barreiras intransponíveis ao diálogo, como a famosa polêmica Trotsky versus Stalin (os debates e diferenças são importantes quando produtivos e aliados à capacidade de aplicação à realidade local; quando não, se mostram mera incapacidade política de diálogo, deixando de lado o mais importante: a transformação radical do Brasil, que deveria, ao menos, servir como paradigma apesar das divergências). Só quando superarmos tais entraves, enfim, vamos poder sair do campo utópico para pisar em solo científico e político. Pois Poder é quando nossa linha política se torna comum, não no sentido de saber os textos marxistas, mas de circulação de um lugar de enunciação popular:
“a esquerda não se dissemina socialmente apenas quando seus ideais circulam por aí, mas quando sua posição de enunciação se torna cada vez mais comum. E isso não acontece quando os outros passam a assumir a nossa postura, mas quando nossas organizações, sistema de valores e enquadres teóricos são marcados de cabo a rabo pela problemática da reprodução concreta da vida, que é o ponto de inserção da militância no mundo. […] se a gente não confia que a força social de uma organização se mede pela sua capacidade de acolher a fraqueza individual, nem que essa força de transformar a ‘miséria neurótica em infelicidade comum’ é uma orientação capaz de produzir entusiasmo nas pessoas, então acho que não vamos ver graça nem mesmo no comunismo”[21].
É claro que eu não estou desconsiderando todos os problemas por que passaram a esquerda radical. Há de se atentar para o fato de que a Ditadura Militar, com incentivo dos Estados Unidos, impôs uma forte perseguição em todo Brasil que modificou profundamente o quadro das esquerdas. Também há uma forte influência do movimento comunista internacional que, com o fim do socialismo real, gerou uma grande perda de imantação do marxismo e das ideias anticapitalistas, impulsionando, ainda mais, a já pesada propaganda anticomunista (isso sem desconsiderar, claro, os erros da principal experiência de transição socialista, a URSS). O momento de perda de força do campo radical culminou na consolidação do bloco neoliberal no mundo inteiro e também no Brasil, com Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso – com suas políticas de abertura.
É evidente que essa conjuntura não só não era favorável, como quase liquidou com a esquerda radical. Porém, ela já mostrou força para renascer uma vez, podendo sim superar o que a mantém numa posição, por vezes confortável, de minoria que, como numa torre de marfim, se dá ao luxo de tudo criticar sem proposição factual que influa na vida cotidiana das pessoas. Afinal, é na vida cotidiana que a classe operária vive suas alegrias e dores e sente na pele o que é exploração e opressão. Hoje há difusas demandas antissistêmicas evidentes em circulação na sociedade, havendo um claro movimento de ida aos extremos.
Também é explícito observar um efeito importante no imaginário popular acerca do espectro político: do ponto de vista simbólico e do imaginário social, o Partido dos Trabalhadores é a esquerda no Brasil. Os demais partidos de esquerda são apenas uma espécie de extensão do petista. Sempre me recordo que em atividades de rua, como venda de jornais e diálogo com trabalhadores, mesmo com a camisa e material do PCB, as pessoas perguntavam se era do PT. Afinal, por óbvio e até pelo que circula na mídia hegemônica, o PT é a esquerda brasileira. Então seja você progressista, socialista, anarquista, social-democrata, trabalhista ou comunista, sua imagem e discurso estarão ligados, em algum nível no senso comum circulante, ao PT. Essa colonização simbólica faz com que o fracasso petista seja visto como o fracasso da esquerda como um todo, ainda que saibamos que a esquerda é plural e com um amplo campo de divergências (até demais).
Infelizmente o chavão “o socialismo cresce”, excelente para produzir likes na bolha comunista na internet, não passa disso, um chavão para amenizar subjetivamente nossa própria pequenez. É preciso ultrapassar a fetichização de um comunismo estético que vive de URSS, Coreia Popular, China, Cuba, tudo, menos Brasil e seu povo. Vive de treta de cadáveres, como Stalin vs Trotsky vs Mao vs (escolha seu marxista preferido), só não vivencia seu país, que é onde se vive, onde as pessoas passam fome e são destruídas e legadas à desumanidade. Há um déficit de escuta da esquerda que, ao tentar explicar tanto a realidade, ouve muito pouco quem melhor a conhece, que são os próprios trabalhadores, a alma de qualquer revolução. Assim, o “espetáculo confundiu-se com toda a realidade”[22], fazendo da performance em ser visto enquanto o maior de todos os comunistas, criando uma rede de comunistas mais preocupados em se fazer parecer comunista, com uma postura extremamente esquerdista, do que em influir, de fato, na realidade, onde ocorre a luta de classes, pois as pessoas “não parecem buscar apenas a reconfortante compaixão do sofrimento compartilhado, mas uma forma minimamente produtiva – para voltarmos à Igreja, ao tráfico, aos aparelhos do Estado – de encaminhá-lo. O que temos nós a oferecer nesse caso? Onde estamos falhando?”[23]. “Já não existe Ágora”[24], portanto não existe espaço para debate público, além da performance vazia.
Se somos, as forças anticapitalistas, o instrumento da libertação humana, essa libertação não ocorrerá sem ouvirmos esses sujeitos que, em nossa pretensão, dizemos representar – sem sabermos que representar significa justamente a ausência do sujeito que está representada e, portanto, um falar por outro que, se não ouvido, nunca irá se reconhecer naquele discurso pretensamente libertador. Nossa tarefa é para ontem, afinal, por mais apocalíptico que pareça, a existência humana na Terra está ameaçada pela crise climática, e a sociedade padece com a superexploração do trabalhador, guerras imperialistas, retorno do nazifascismo, precarização da vida e altas taxas de adoecimento mental e suicídio. Embora a tarefa seja urgente, a pressa não pode ser inimiga da estratégia, para parafrasear o dito popular. É preciso, antes de agir por impulso (repetindo assim nossos mesmos erros), refletir. Práxis não significa sair fazendo de qualquer jeito, afinal pensar também muda nossa relação com o mundo, mudando assim as questões e respostas para os problemas concretos.
Sim, precisamos renascer também e, por menores que sejamos, um comunista e anticapitalista consequente não se esquiva de suas responsabilidades e da implacável autocrítica, por mais doloroso que seja mexer em nossas próprias fraquezas e feridas. Não há nada a temer em expor nossas vulnerabilidades, pelo contrário, a vulnerabilidade, justamente por ser parte constituinte da existência humana, causa empatia. Não precisamos ser, a todo momento, comunistas ferrenhos, precisamos só nos abrir ao outro de modo a “suspender a exigência da identidade pessoal, ou, mais especificamente, da coerência completa, (que) parece contrariar certa violência ética, que exige que manifestemos e sustentemos nossa identidade pessoal o tempo todo e requer que os outros façam o mesmo”[25]. Ser vulnerável nos livra da obrigação de sermos perfeitos perante o outro, nos aproximando ao nos mostrar humanos como todos – contraditórios, com defeitos, alienados, explorados, com alegrias e tristezas, como qualquer um. Sejamos vulneráveis e seremos capazes de ouvir, compreender e, aí sim, pleitear poder falar, não mais por, mas com os vulnerabilizados pela barbárie capitalista. Como dizia Walter Benjamin, é preciso olhar nossos cacos, não para juntá-los novamente, pois é impossível voltar, mas para nos mobilizar em prol de uma luta justa e consequente contra quem nos oprime e explora. Do jeito que estamos, a realidade, apesar dos chavões, é que não venceremos, afinal, eles não cansam de vencer. E cada vitória deles é o anúncio insistente de nossa morte.
E já que morremos, retornemos para Marx: sejamos novamente o espectro vermelho que ronda o mundo.