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Gaza: se não é genocídio, é guerra total

O governo de Israel pode se proteger da acusação de genocídio, mas não pode negar que move contra Gaza uma guerra total, tal como predicada por Ludendorff
Pedro Marin
Uma mulher palestina anda ao lado de um prédio destruído por bombardeios israelenses em Gaza em 2014. (Foto: UN Photo/Shareef Sarhan)
A recente declaração de Lula durante uma coletiva de imprensa na Etiópia, comparando a situação da população de Gaza com a dos judeus sob a Alemanha nazista, levou a uma reação esperada por parte do Estado de Israel, a uma ampla rejeição da imprensa nacional, a algumas mensagens de solidariedade de líderes latino-americanos mas, até aqui, a quase nenhuma repúdio internacional, a despeito dos esforços do governo israelense.

No debate sobre quão consistente seria a comparação entre a carnificina hitlerista com o massacre israelense, se tem apelado muito a tecnicalidades e “singularidades” para atacar a posição política do presidente – a de que, tal qual o Holocausto, o morticínio em curso em Gaza é inaceitável. Não sou um inimigo da precisão analítica, mas há de se reconhecer quando ela não é fim em si, mas meio, de fato, de abrandar a denúncia do atual massacre.

A mesma operação intelectual é feita sobre uma série de outras classificações do regime israelense. O uso do termo apartheid, por exemplo, é criticado sob o argumento de que a motivação das políticas restritivas contra os palestinos não são motivadas por racismo, mas por “questões de segurança”, e que os palestinos vivendo em Israel têm os mesmos direitos formais que qualquer israelense. Quanto ao colonialismo, o argumento do Comitê Judaico Americano é o de que os israelenses são originários da região, e que “[colonialismo] não pode descrever uma realidade na qual um grupo nacional, agindo em seu próprio nome e não a mando de um poder externo, retornou à sua pátria histórica para alcançar a autodeterminação e, ao mesmo tempo, apoiou a criação de um Estado-nação para outro grupo nacional, juntamente com a criação de seu próprio Estado.” A classificação de genocídio, por sua vez, costuma ser rejeitada sob argumentos legais: para que um determinado evento assim seja configurado, há de se demonstrar que a motivação das ações assim classificadas seja a destruição do povo, parcialmente ou em sua totalidade. Não basta simplesmente que esse povo seja destruído; a sua destruição tem de configurar o objetivo da ação.

O debate é assim feito de uma tal forma que não só o Holocausto seria um evento histórico excepcional, ao qual nenhuma comparação é lícita; também a política de Israel frente os palestinos seria de tal forma singular que não poderia ser comparada a nada, nem, portanto, classificada de forma alguma. É a excepcionalidade servindo à normalização: a singularidade de um Estado se traduz no abrandamento dos crimes que comete contra um outro povo na medida em que essa excepcionalidade não pode sequer ser descrita.

À maioria dos comentaristas, no entanto, tem escapado uma categoria que tecnicalidade ou singularidade alguma pode fazer frente: a de guerra total. O formulador do conceito, Erich Ludendorff, foi um general prussiano que despontou nacionalmente como herói ao comandar os esforços da artilharia alemã durante a Batalha de Liége, na Bélgica, durante a Primeira Guerra, em 1914. Por ter concluído a tarefa de derrubar as fortificações da cidade, foi indicado para dirigir, ao lado de Paul von Hindenburg, a frente oriental alemã durante a Primeira Guerra. Realizando um esforço de guerra brutal e aproveitando-se de sua posição, conseguiu não só isolar Hindenburg no comando oriental, como também o Kaiser Guilherme II dos esforços de guerra como um todo. Em 1916, foi apontado como chefe do Estado-Maior, tornando-se ditador de facto do Império Alemão, embora o próprio Kaiser desprezasse seu “caráter duvidoso” e sua “ambição”. Mesmo que já tivesse então evidências de que a vitória alemã era impossível, Ludendorff mobilizou um esforço de guerra insano em múltiplas frentes, sustentado numa infame noção de “destino manifesto” do povo alemão. Assim, enquanto os corpos de milhões de alemães jaziam destroçados e putrefeitos nos campos de batalha, parte da sociedade alemã, embora se alimentando, quando muito, de ratos, seguia confiante na inevitável vitória. A vitória não veio; no lugar, a morte e a fome tomaram a Alemanha por mais dois terríveis anos.

Incapaz de reconhecer seus próprios erros, e com uma personalidade paranóica, o general passaria a explicar a derrota alemã e a humilhação nacional assinada no Tratado de Versalhes apontando a maçons, comunistas, cristãos e judeus. Adotaria, por fim, o mito da “punhalada nas costas”, segundo o qual a Alemanha não havia sido derrotada nos campos de batalha, mas no front doméstico, pela traição de comunistas, socialistas, social-democratas e especialmente judeus. O mito, amplamente mobilizado pelo exército alemão a partir de então, tornou-se popular: além de oferecer uma explicação suficientemente simples para a derrota do povo escolhido, ele lembrava Siegfried, o herói da mitologia germânica que, após derrotar um dragão, havia sido morto com uma lança fincada nas costas[1].

Exilado após a guerra, Ludendorff retornou à Alemanha em fevereiro de 1919. No ano seguinte, tomaria parte no Putsch de Kapp, contra o governo social-democrata da República de Weimar. O golpe chegou a ter sucesso, mas foi revertido, quatro dias depois, por uma greve geral que mobilizou milhões de trabalhadores. Agora exilado na Bavária, o general se encontraria com Hitler pela primeira vez, em maio de 1923, e passaria a colaborar ativamente com os nazistas. Em novembro, Ludendorff tomaria parte no Golpe da Cervejaria, sendo apontado por Hitler como futuro comandante de seu Exército. Com o golpe derrotado, Ludendorff é absolvido, e no ano seguinte é eleito ao Reichstag pelo Movimento Nacional-Socialista da Liberdade, coalizão de extrema-direita que passou a abrigar os nazistas após a dissolução do partido pelo Golpe da Cervejaria. Em 1925, o general fundaria o partido de extrema-direita Tannenbergbund, considerado até por alguns nazistas como demasiadamente inclinado a teorias da conspiração.

A guerra total contra Gaza

Em 1935, dois anos antes de sua morte por um câncer no fígado, Ludendorff publicou seu livreto “A guerra total”. Em parte descrevendo sua experiência na Primeira Guerra, em parte prevendo o futuro da “próxima guerra” e promovendo uma linha estratégica para seu combate, o livro fundamentalmente predica que o verdadeiro sentido da guerra é a preservação do povoa política serve à guerra[2], chegando mesmo a dizer que a política deve ser substituída pela “Política Total” – isto é, a política, em tempos de paz, voltada para a preparação da guerra; que a “união espiritual” e racial de um povo eram determinantes para os sucessos militares.

Repetindo a lorota antissemita segundo a qual a Alemanha fora derrotada na Primeira Guerra pela ação dos judeus e da Igreja Católica[3], Ludendorff predica uma guerra na qual “a zona de guerra cubra, no verdadeiro sentido da palavra, o território inteiro daqueles que fazem parte da guerra. Não só os exércitos, os povos mesmos são sujeitos às operações diretas da guerra”. A guerra deverá “ocorrer atrás da frente inimiga, atacando locais importantes, indústrias, etc., e tendo a população civil inimiga como alvo geral”; a tarefa da Marinha será “cortar as importações para a população e o exército inimigos”; mesmo cidades industriais devem ser alvo dos bombardeios aéreos. Nesta guerra, em que a população do inimigo são entendidos também como combatentes inimigos, caberiam todos os meios possíveis: os estritamente militares, os econômicos, os políticos, os diplomáticos, os culturais. O comandante-em-chefe “examinará atentamente as notícias sobre a condição espiritual dos exércitos e povos inimigos”, com o fim de alcançar “a destruição da vida econômica dos países e povos inimigos, seu bloqueio, o impedimento do abastecimento por meio de forças marítimas”. O “estudo cuidadoso das tendências existentes nos povos inimigos, suas esperanças, desejos e atitude espiritual em relação ao governo e à guerra” seriam “a preparação necessária para uma propaganda eficaz”.

Olhemos agora à guerra contra Gaza. Os líderes israelenses insistem nas operações militares como medidas de autodefesa, isto é, como medidas de preservação de seu povofrente à ameaça existencial representada pelo Hamas – “os novos nazistas que assassinam qualquer judeu que vêem pela frente”, de acordo com o ministro de Relações Extreriores Israel Katz. A guerra movida não é, formalmente, contra o povo palestino como um todo. Ainda assim, os dados até aqui (21 de fevereiro) apontam 29,3 mil palestinos mortos, dos quais 70% eram mulheres e crianças (20,7 mil). O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, declarou no dia 8 de outubro que a ordem era “estabelecer um bloqueio total na Faixa de Gaza. Não haverá eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível”. De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, “há falta de alimentos, água potável, saneamento básico, serviços médicos e segurança” e “muitos residentes estão em um estado debilitado e correm um risco elevado de morrer de infecções ou doenças comuns.” Segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), mais de 70% da infraestrutura civil de Gaza já foi destruída ou severamente comprometida pelos ataques israelenses, incluindo 84% das instalações de saúde. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), até 31 de dezembro do ano passado, 27,5% das terras agrícolas de Gaza haviam sido comprometidas.

O presidente israelense Isaac Herzog declarou que “é uma nação inteira que é responsávelNão é verdadeira essa retórica sobre civis não saberem, não estarem envolvidos. Absolutamente, não é verdade. Eles poderiam ter se rebelado. Eles poderiam ter lutado contra o regime maligno que tomou Gaza em um golpe de Estado”. A ministra da Igualdade Social e Empoderamento Feminino de Israel, May Golan, declarou-se recentemente “orgulhosa das ruínas em Gaza”. A ministra de Transportes e Segurança Rodoviária, Miri Regev, disse recentemente que “chegou a hora de cortar a dependência de Israel de trabalhadores palestinos. Vamos substituí-los por trabalhadores estrangeiros o quanto antes” – ou tomando os palestinos como um todo como uma ameaça à segurança israelense, ou tomando o corte dos salários palestinos como um instrumento da guerra. Os exemplos “totais” da ação israelense no campo da diplomacia e da propaganda são muitos: a guerra do ministro de Relações Exteriores, Israel Katz, contra a ONU e  seu secretário-geral, António Guterres; a humilhação à qual expôs o embaixador brasileiro em Israel; as perseguições de ONGs israelenses contra jornalistas (para não falar de seus assassinatos); vídeos de crianças cantando que irão “aniquilar Gaza” em canais públicos de televisão.

O governo israelense pode se defender da acusação da genocídio sob o argumento de que seu objetivo não é eliminar, parcial ou totalmente, o povo palestino. Mas não pode se defender da acusação de guerra total. Se ao primeiro conceito cabe a intenção da destruição do povo, ao segundo a destruição do povo é meio. Ao apontar ao Hamas como alvo ao passo que liquida com a infraestrutura de Gaza, mata especialmente mulheres e crianças, declara por meio de seus ministros ter “orgulho” pelas ruínas e bloqueia o acesso a água, comida e medicamentos, o governo israelense toma algumas páginas do livro de Ludendorff.

É importante notar que boa parte do que Ludendorff buscou descrever como “guerra total” ele mesmo havia posto em prática, duas décadas antes, durante a Primeira Guerra. Sob seu comando, centenas de milhares de belgas foram transferidos à Alemanha em trens e forçados a trabalhar sem pagamento. Foi também sob seu comando que a Alemanha adotou os gases tóxicos como armas no campo de batalha – em uma tal escala que a produção de fertilizantes químicos desabou, prejudicando a agricultura alemã e aumentando a fome. É a partir dessa experiência que Hitler teria a monstruosa ideia de matar judeus em câmaras de gás. A propaganda bombástica sobre “vitórias fáceis” asseguradas ao povo alemão pela preferência de Deus, e a promessa de conquista de quase toda a Europa e suas colônias, da França à Estônia, passando por África até a Índia, também remonta à Primeira Guerra e ao comando de Ludendorff. É também importante notar que muitos, após Ludendorff, levaram a cabo os seus métodos de guerra – não só Israel.

Sim, a História ensina; mas não como a maioria dos homens supõe, e certamente não quando a sua descrição não é tolerada. Quando é proibido aos povos olhar ao presente em paralelo ao passado, quando a intelectualidade é de tal forma obcecada com a precisão descritiva que cada novo acontecimento demanda também uma nova categoria, quando as terríveis chagas de ontem são manejadas para encobrir o sangue de hoje, a História já não pode oferecer lições. O general Ludendorff, uma das figuras mais destrutivas e reprováveis do século 20, já está morto. Mas também está vivo entre nós, na medida em que seus feitos e suas ideias se repetem.

“Você se lembra dos ratos e do mau cheiro
Dos cadáveres apodrecendo em frente à trincheira do setor dianteiro?
E do amanhecer, branco-sujo e frio, com um dilúvio desesperançoso?
Você já parou e se perguntou: “Será que tudo isso vai acontecer de novo?”
[…] Você se esqueceu, já?
Olhe para cima e jure pelos mortos da guerra que você nunca se esquecerá!
– “Aftermath”, de Siegfried Sassoon, março de 1919.


Notas:
[1] A etimologia de Siegfried viria do protogermânico. “sigi”= Vitória. “frið” = Paz. Assim, na versão do fascismo alemão, a vitória da paz não teria sido impedida pela obsessão militarista de homens como Ludendorff, que escolheram prolongar uma guerra que já não poderiam vencer, mas sim apunhalada pelas costas pelos judeus.
[2] Embora abra seu livro em tom elogioso a Clausewitz, Ludendorff chega à conclusão de que “Todas as teorias de Clausewitz devem ser jogadas ao mar. A guerra e a política servem à autopreservação do povo. A guerra é só a expressão máxima da vontade do povo de viver (Lebenswillen). Portanto, a política deve servir à condução da guerra.”
[3]  Estudos já demonstraram que os judeus alemães durante a Primeira Guerra combateram e morreram nos campos de batalha na mesma proporção que os não-judeus. Além disso, a Alemanha contou com esforços consideráveis de judeus em posição de poder, como Walther Rathenau (um dos poucos a profetizar o terrível destino para o qual a Alemanha se dirigia durante a guerra) ou Fritz Haber, tragicamente o “pai da guerra química”, cujas invenções depois vitimariam milhões de judeus sob Hitler.
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