Um vídeo lançado recentemente pelo movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel apresentou de forma satírica as atrações turísticas em assentamentos israelenses nos territórios ocupados. “Você vê como os colonos perseguem os palestinos na Cisjordânia e diz ‘uau, eu gostaria de poder passar férias em terras roubadas e normalizar esses crimes’. Bem, uma empresa pode ajudar você: Airbnb”.
Entre as centenas de ofertas de acomodações disponíveis nos territórios ocupados, o vídeo destaca uma “maravilhosa casa” no assentamento de Eli. Esse assentamento, assim como os 170 assentamentos na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e nas Colinas de Golã, é ilegal. Essa é a opinião da ONU, dos EUA, da UE, da Espanha e da maioria dos países do mundo.
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— Rania (@umyaznemo) September 10, 2024
Nessa colônia de quase 5 mil habitantes, construída em terras expropriadas dos vilarejos palestinos de As-Sawiya e Qaryut, o intrépido turista pode visitar a famosa academia pré-militar Bnei David, onde os jovens que se preparam para o serviço militar são ensinados que “os palestinos são geneticamente inferiores e precisam ser escravizados”, nas palavras do diretor da escola, o rabino Eliezer Kashtiel. O visitante ocasional também pode testemunhar um dos ataques de colonos e do exército israelense contra a população palestina, ou um confisco de terras, duplicados desde 7 de outubro de 2023.
Desde esse dia, mais de 700 palestinos foram mortos por colonos e pelo exército israelense na Cisjordânia. Destes, mais de 158 eram crianças, de acordo com a ONG Save the Children. Incursões contínuas em vilarejos e campos de refugiados resultaram na detenção de mais de 11 mil palestinos na Cisjordânia, oito em cada dez em “detenção administrativa”, sem acusação formal ou julgamento.
O papel dos colonos nessas incursões foi denunciado por uma série de relatórios e grupos de direitos humanos. Até mesmo os EUA sancionaram colonos várias vezes por ataques à população palestina, mais recentemente no último 1 de outubro. Pelo menos 1,3 mil ataques de colonos contra palestinos foram registrados este ano. E desde 7 de outubro de 2023, as autoridades israelenses destruíram, demoliram, confiscaram ou forçaram a demolição de 1.478 estruturas palestinas na Cisjordânia, deslocando mais de 3.477 palestinos, incluindo cerca de 1.485 crianças, de acordo com a Save the Children.
“Baba, os colonos estão chegando”, gritava uma menina palestina em agosto deste ano, de acordo com uma reportagem do The New York Times. Dezenas de moradores de Eli – a colônia onde a “maravilhosa casa” do Airbnb estava localizada – desceram com máscaras, vestidos de preto, armados com pedras, Kalashnikovs e rifles M-16. No dia 18 de agosto de 2024, um palestino foi morto pelos colonos. Em 12 de abril e nos dias seguintes, outras dez pessoas foram linchadas por uma multidão de colonos armados em vingança pela morte de um adolescente israelense, em meio a pedidos de “punição coletiva” e “extermínio das bestas”.
“A definição de injustiça”
Nos territórios palestinos ocupados por Israel existem mais de 170 assentamentos – ilegais de acordo com a comunidade internacional –, onde vivem mais de 700 mil israelenses. As atividades econômicas, comerciais e turísticas que ajudam a manter e expandir esses assentamentos são condenadas pelo Escritório de Direitos Humanos da ONU.
De acordo com o movimento BDS e uma ampla gama de ONGs de direitos humanos, incluindo a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, bem como com a própria ONU, as empresas que administram alojamentos turísticos e fornecem transporte para e entre esses assentamentos estão contribuindo para a normalização e a consolidação dessa anexação das terras, violando dezenas de resoluções internacionais.
E não se trata apenas da Airbnb. Além dessa empresa norte-americana, a ONU estende a acusação à Booking.com, ao TripAdvisor e até mesmo à empresa espanhola eDreams. Todas elas, de acordo com a ONU, são culpadas de “fornecer serviços e utilidades que apoiam a manutenção e a existência de assentamentos”. O Escritório de Direitos Humanos incluiu, em fevereiro de 2020, todas essas empresas em uma lista de 112 empresas em todo o mundo que estavam colaborando com a expansão e o fortalecimento desses assentamentos ilegais.
A Booking.com é responsável por permitir que colonos israelenses ofereçam suas casas em “terras roubadas”, de acordo com um relatório da Human Rights Watch. A construção de infraestrutura nessas terras tomadas da população palestina, argumenta a ONG, “desencadeia graves abusos de direitos humanos contra os palestinos, incluindo o bloqueio de seu acesso a terrenos privados próximos, a restrição de sua liberdade de movimento e, devido a essas restrições de viagem, a limitação de seu direito de acesso à educação e aos serviços de saúde e proteções para manter suas famílias unidas”.
A organização de direitos humanos até documentou casos de propriedades palestinas tomadas por colonos e depois oferecidas no Airbnb. Esse é o caso de Shaaeb: “O fato de alguém ocupar sua terra é ilegal. O fato de alguém construir em sua terra, alugá-la e lucrar com ela é a definição de injustiça”.
A atividade comercial da Airbnb, da Booking e de outras empresas nas áreas que Israel vem tomando dos palestinos desde a guerra de 1967 torna os assentamentos “mais lucrativos e, portanto, mais sustentáveis”, explica a organização de direitos humanos. E quanto mais rentáveis eles são, mais israelenses se mudam para esses assentamentos, que estão crescendo constantemente nos últimos anos diante da pressão demográfica, de uma crise de preços altos e falta de moradia, e das oportunidades de especulação imobiliária oferecidas por essas empresas.
O turista intrépido ou o viajante casual pode escolher entre centenas de destinos em terras roubadas. Em Modi’in Illit, o maior assentamento ilegal de Israel, com 70 mil colonos, há dezenas de opções. O mesmo se aplica a Guiv’at Ze’ev, ainda na Cisjordânia, mas a apenas sete quilômetros da cidade sagrada e a três quilômetros de Ramallah, a capital da Autoridade Palestina. Em Geva Binyamin, um assentamento israelense de 5 mil pessoas construído em terras desapropriadas do vilarejo palestino de Jaba, a Booking oferece um oásis de luxo, bar, café da manhã e serviço de quarto, com terraço, vista para a cidade e para as montanhas. As instalações incluem um spa, um centro de bem-estar e até mesmo uma piscina em uma das regiões com maior escassez de água do mundo.
Na área de Jerusalém Oriental, também considerada pela comunidade internacional como legitimamente palestina, os assentamentos israelenses, muitos deles convertidos em bairros da Cidade Velha, oferecem centenas de acomodações no Booking e no Airbnb. Esse é o caso de Pisgat Ze’ev, um dos maiores assentamentos em Jerusalém Oriental, ou de Ramat Shlomo, outra colônia de 20 mil habitantes com uma grande presença de judeus ultraortodoxos. O mesmo acontece com Ramot, um assentamento israelense em territórios ocupados ao norte de Jerusalém, onde o Airbnb oferece cerca de 20 opções de acomodação. Para transportar turistas, soldados e colonos para esses assentamentos ilegais, Israel construiu toda uma rede de bondes nos últimos anos com a participação de quatro empresas privadas espanholas – CAF, Comsa, GMV e TyPSA – e uma empresa pública, a Ineco.
O movimento BDS na Espanha fez um chamado por um boicote a essas empresas e solicitou sua inclusão na lista da ONU de empresas que colaboram com assentamentos ilegais. As tentativas do movimento de solidariedade à Palestina, bem como dos partidos Sumar e Podemos, de fazer com que o governo espanhol tome medidas para suspender essa colaboração com a ocupação israelense não tiveram nenhum efeito além de declarações políticas inconsequentes.
No Airbnb, também há uma centena de opções para encontrar acomodações turísticas nas Colinas de Golã, uma área também confiscada após a guerra de 1967, localizada na fronteira norte com o Líbano, a Jordânia e a Síria. Somente em Katzrin, a segunda maior cidade das Colinas de Golã e a capital administrativa da região, há cerca de vinte ofertas no Airbnb. Desde 1974, quando teve início a urbanização desse assentamento israelense, o plano do governo tem sido preencher esse território anexado com tijolos e infraestrutura.
Uma oportunidade perdida
Houve um momento em que parecia que o Airbnb faria a diferença. Foi no dia 19 de novembro de 2018, quando a empresa anunciou que estava se preparando para retirar os 200 anúncios que tinha na época nos territórios ocupados por Israel. Embora fosse “legal”, de acordo com a lei dos EUA, fazer negócios nesses territórios, “como uma plataforma global”, era preciso medir o impacto de suas ações e “agir com responsabilidade”. Entre os critérios que o Airbnb levou em conta ao tomar essa decisão estava uma avaliação quanto a “se a existência de anúncios estava contribuindo para o sofrimento humano existente”. O então ministro do turismo de Israel, Yariv Levin, chamou a decisão de “a mais miserável das miseráveis capitulações aos esforços de boicote”. Em outras palavras, um sucesso.
A campanha lançada pelo movimento BDS havia atingido um pico meses antes com o slogan #deactivateAirbnb (#desativeAirbnb). A pressão internacional funcionou. Mas não por muito tempo. Em meio às negociações com os acionistas para sua oferta pública inicial (IPO), em abril de 2019, apenas cinco meses depois, a empresa de Brian Chesky emitiu uma nova declaração na qual se retratava de tudo o que havia dito até então: continuaria, como se nada tivesse acontecido, incluindo a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã entre seus destinos.
“A decisão do Airbnb é um ato repreensível e covarde que dará outro golpe devastador nos direitos humanos do povo palestino”, disse Mark Dummett, da Anistia Internacional, na época. No entanto, a empresa deixou claro que doaria os lucros dessas acomodações para organizações humanitárias. “Deixar algumas moedas em uma caixinha de caridade não compensa os crimes de guerra”, resumiu Ryvka Barnard, do coletivo britânico War on Want.
A pressão de Israel, que iniciou um processo de ação coletiva contra o Airbnb, teve um papel importante. O mesmo aconteceu com as ações judiciais dos EUA, como a movida por cinco cidadãos americanos alegando que a decisão da empresa de parar de alugar propriedades em assentamentos era “discriminatória para os judeus e semelhante aos boicotes nazistas”. A busca investidores dispostos a comprar ações em sua iminente IPO fez o resto do trabalho. Em dezembro de 2020, o Airbnb estreou em Wall Street e, em um dia, dobrou seu valor no mercado de ações para 93 bilhões de euros. O Airbnb não fez diferença, e o princípio de “agir com responsabilidade” ganhou um novo significado.
(*) Tradução de Raul Chiliani