O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a cartografia voltaram a ser objeto de polêmica e discórdia com a divulgação, na última semana, de uma nova edição do mapa-mundi “de ponta-cabeça” pelo instituto.
Ao anunciar o mapa em sua conta no X, o presidente do IBGE, Marcio Pochmann, disse que “a novidade busca ressaltar a posição atual de liderança do Brasil em importantes fóruns internacionais como no BRICS e Mercosul e na realização da COP 30 no ano de 2025.”
Além de ter se tornado objeto de escárnio nas redes, com usuários estranhando a novidade e influenciadores de extrema direita usando-a como palco para suas zombarias, o novo mapa foi objeto de polêmica também dentro do próprio IBGE. A Coordenação do Núcleo Sindical Chile – ASSIBGE/SN, que representa parte dos trabalhadores do instituto, por exemplo, divulgou um comunicado criticando a iniciativa. A nota diz que, no mapa, o Brasil “aparece artificialmente no topo e ao centro do mundo – um gesto sem respaldo técnico reconhecido pelas convenções cartográficas internacionais”, e que a iniciativa, “em vez de informar, distorce; em vez de representar a realidade com rigor, cria uma encenação simbólica que compromete a credibilidade construída pelo IBGE ao longo de décadas de trabalho sério, imparcial e respeitado globalmente.”
Em meio à controvérsia, o presidente do instituto, Marcio Pochmann, declarou à Folha de São Paulo que “a sociedade pode se colocar como quiser, mas a instituição tem autonomia. O mapa visa estimular a reflexão a partir do Sul Global. Ele passou por toda a área técnica antes de ser publicado. Lembrando que não há nada de errado tecnicamente, já que o planeta é redondo”.
Em abril do ano passado, quando o IBGE divulgou um mapa-múndi, incluído no Atlas Geográfico Escolar do instituto, em que o Brasil figurava no centro, o instituto e a cartografia já haviam sido objeto de polêmica.
Para que servem os mapas?
Afinal, faz sentido “colocar” o Brasil no meio do mapa-múndi ou inverter os polos usuais dos mapas? Seria isso uma agressão às convenções cartográficas, como querem parte dos trabalhadores do IBGE e tantos usuários das redes sociais? Ou as mudanças propostas não teriam nada demais, como sugere Pochmann?
Os mapas são representações do espaço físico da Terra e, como tal, necessariamente são distorcidos. Um problema clássico da cartografia, decorrente do ofício lidar com a representação plana de uma forma esférica (a Terra), é a impossibilidade de ser ao mesmo tempo equivalente, equidistante e conforme – ou seja, de preservar, na representação cartográfica, as áreas, distâncias e formas dos territórios.

O mapa-múndi convencional, por exemplo, privilegia a conformidade – a representação das formas dos países. As áreas, no entanto, são radicalmente distorcidas. O site The True Size Of, por exemplo, dedica-se a demonstrar essas distorções. Lá, é possível escolher qualquer país do mundo e comparar a representação de sua área com sua área real. O Canadá (vermelho), por exemplo, embora pareça equivalente ou até maior do que a África, na realidade tem uma área menor que a metade do continente; a Groenlândia (azul), embora pareça equivalente à América do Sul, na realidade é menor do que o Brasil; e o Brasil (rosa), embora pareça muito menor do que a Rússia, na realidade tem uma área equivalente a cerca de 1/3 do país euroasiático.
O mapa “tradicional”, portanto, não “distorce a realidade” menos do que os mapas do IBGE: se um determinado estadista preparar batalhões de infantaria para tomar a Groenlândia com base na representação cartográfica “clássica”, provavelmente mobilizará muito mais tropas do que as necessárias.

Em A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, o geógrafo francês Yves Lacoste faz duas considerações fundamentais para a atual polêmica sobre o mapa do IBGE. A primeira, sobre a geografia como área de conhecimento: Lacoste ensina que a geografia tem antes de tudo uma utilidade estratégica, e que a concepção da geografia como uma área “técnica”, voltada à mera descrição supostamente acurada do espaço, é uma mistificação que visa, justamente, esconder a sua serventia estratégica – isto é, dissimular o fato de que a geografia e os mapas servem, antes de tudo, para fazer a guerra.
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A segunda consideração remete aos limites e possibilidades da cartografia: Lacoste nos lembra que, se a geografia serve para fazer a guerra, todo mapa tanto oferece (e em alguma medida determina) possibilidades quanto impõe limitações à ação. Aspectos como o tema descrito pelo mapa e a escala escolhida pelo cartógrafo são, assim, fundamentais: tal qual a diversidade de pontos de vistas colaboram para qualquer empreendimento, que há de ser feito considerando questões menores e maiores, mais urgentes e menos, etc., também assim é com os mapas. Se uma certa escala pode ser útil, por exemplo, a nível de estratégia, provavelmente terá pouco valor no nível tático, e vice-versa. Para um camponês que queira decidir o melhor local para plantar em uma determinada propriedade, um mapa de seu Estado provavelmente será de pouca serventia; para um grupo rebelde que queira desestabilizar uma cidade, o mapa do país pode ser útil – mas mais útil será um mapa da infraestrutura elétrica da cidade, ou até um mero mapa de suas linhas de ônibus. Enfim, todo mapa revela, mas também esconde; e toda escolha cartográfica determina, em alguma medida, o que poderá ou não ser apreendido de um determinado mapa. Uma boa consciência geográfica depende de uma suficiente diversidade de mapas, temas, escalas e formas de representação.
Como todo mapa, como representação do terreno, é também uma distorção, a escolha dos elementos a serem representados mais ou menos corretamente depende do fim ao qual o mapa se destina. E, igualmente, como todo mapa, como representação do terreno, é também uma distorção, todo mapa impõe determinadas conclusões àquele que o olha. Qual é a utilidade de um determinado mapa? O que ele esconde, e o que revela? – estas são as perguntas que devemos fazer antes de tudo. O mapa anunciado em abril do ano passado pelo IBGE, apesar da discórdia, tinha alguns méritos.
Primeiro, “colocar” o Brasil no “centro do mundo” oferece a vantagem da cartografia replicar o ponto de vista dos brasileiros sobre o mundo. Não se trata só de “valorizar o Brasil” artificialmente, mas sim de organizar, no mapa, o posicionamento do espaço ao redor do país tendo-o como centro. Ora, muitos dos que acharam tão estranho que o Brasil figurasse no centro do mapa-múndi estão absolutamente acostumados a utilizar no dia-a-dia sistemas de GPS em que o mapa se desdobra a partir de quem se desloca. Por que não se perguntaram porquê, quando pedem uma refeição por aplicativo, o mapa destaca continuamente a posição do entregador, e não se fixa na posição do restaurante, ou de sua casa? Ou porquê, ao se deslocarem de carro com um GPS ativo, é o seu carro que se mantém no centro do mapa, e não outro carro, ou ainda o ponto de destino? Não se perguntam porque é evidente: o mais importante, no caso de uma entrega, é saber onde a comida está; e o mais importante, no caso de um deslocamento a carro, é saber onde o usuário está em relação ao caminho que percorrerá. Também esse é o princípio que orienta aquele mapa do IBGE: como trata-se de um instituto brasileiro, e de um mapa voltado a brasileiros, nada mais natural do que assumir a perspectiva do Brasil como central – o Brasil é o mais importante.

O segundo mérito do mapa: da perspectiva de quem está no Brasil, o mapa de abril do ano passado destaca, por exemplo, a costa ocidental da América do Sul, e revela a dimensão do Oceano Pacífico. Três observações muito simples, a nível geopolítico, podem decorrer daí, embora sejam “escondidas” pelo mapa-múndi convencional: a proximidade da Eurásia com a América do Norte – um fato obviamente conhecido, mas nem sempre considerado, à primeira vista, a partir do mapa-mundi “tradicional”, e que tem implicações para a nossa própria geopolítica, ainda mais agudizadas em um mundo que se prepara para a guerra –, o acesso relativamente facilitado que nosso continente tem à Oceania e à Ásia (também não observável no mapa-mundi “tradicional”, no qual o Atlântico aparece, para a América do Sul, como predominante) e a enorme proximidade do Brasil com a África vis-a-vis a sua distância com a Ásia e a Oceania – só observável quando uma referência terrena, como a Austrália, aparece no lado ocidental de nossa costa para efeitos de comparação.

Assim, não há nada de “artificial” em representar o Brasil no centro do mapa-múndi – na realidade, para quem quer entender a posição do Brasil no mundo, é a representação mais intuitiva e que mais informações oferece. Alguns argumentaram que um dos deméritos do mapa do IBGE era representar áreas de países como Rússia e Austrália “cortadas”: a pergunta que deveriam se fazer é se, na representação do espaço da Terra, é mais importante evidenciar elementos como o tamanho do Pacífico, a proximidade da Eurásia da América do Norte e nossa proximidade com a África, etc., ou preservar a boa visualização do interior da Rússia e da ponta ocidental da Austrália. Para russos e australianos, a resposta será óbvia – mas e para os brasileiros? Qual mapa provê informações mais relevantes à primeira vista?
Infelizmente, a mesma argumentação não pode ser feita em relação ao mapa divulgado pelo IBGE na semana passada. “Inverter” os polos na representação do mundo não é sequer novidade – de fato, quando Arno Peters apresentou seu mapa mundial nos anos 1970, no qual privilegia a representação da área dos países, ele o fez com o mapa “de ponta-cabeça”; um truque para causar comoção e denunciar a má representação do Sul Global nos mapas “tradicionais”, baseados nas Projeções de Mercator.
“Inverter” o mapa também não representa nenhum ganho ao observador ou ao estudante que lidará com o documento – no máximo, serve para dizer para aluninhos que “não é errado olhar o mapa de ponta-cabeça”. E a ideia de que o mapa invertido do IBGE seria de alguma forma um “símbolo anticolonial”, de fato, só pode advir de um governo que toma marquetadas ridículas e vazias, como usar bonés dizendo “o Brasil é dos brasileiros”, como grandes realizações anti-imperialistas (enquanto mantém firme a convicção de temperar sua ação diplomática levando em consideração os interesses norte-americanos, como foi, por exemplo, no episódio do bloqueio da entrada da Venezuela no BRICS).
Há de se perguntar: será que Pochmann e o IBGE não se tornaram adictos à polêmica cartográfica, à comoção nas redes sociais, ao invés de perseguirem a utilidade cartográfica para a sociedade e nas escolas? Afinal, lembremos de Lacoste: mapas são úteis ou não são, para tais ou quais fins. Pochmann pode defender seu mapa como “técnico” dizendo ao gravador de jornalistas que, afinal, “o planeta é redondo”. Mas convém também lembrar ao presidente do IBGE que assim como é simples constatar o formato da Terra, é simples também o movimento de uma mão para que se possa ver um mapa “normal” de “ponta-cabeça”. Ao invés de pôr os recursos e os geógrafos do instituto para girar a Terra num computador e imprimi-lo, tal qual poderia ser girado sobre uma mesa por qualquer criança, mais valor teria o trabalho cartográfico do instituto se buscasse fornecer aos brasileiros uma maior diversidade de mapas, por exemplo explorando o atual déficit ferroviário brasileiro e seu histórico, as rotas marítimas mais utilizadas pelo país para escoamento de sua produção, com detalhamento dos destinos de cada commodity, as áreas rurais sob domínio do latifúndio agroexportador e as áreas disponíveis para a reforma agrária no Brasil, os fluxos de tráfico sexual de mulheres brasileiras para o mundo, etc. – elementos muito mais relevantes quando se trata de “estimular a reflexão a partir do Sul Global”, como quer Pochmann.
O mapa do IBGE não é “errado”, não é “absurdo”, não “distorce a realidade” mais do que quaisquer outros mapas; só é inútil, porque o efeito da “novidade” poderia ser igualmente alcançado pegando qualquer outro mapa e girando-o; e, na sua inutilidade, infantil, porque parece tomar como objetivo do trabalho cartográfico do instituto a dimensão simbólica e propagandística dos mapas – seja para afirmar um dito anticolonialismo que não passa da fachada, seja para surfar nas ondas odientas das redes sociais.
O trabalho cartográfico do IBGE deve servir para fortalecer a consciência dos brasileiros acerca da posição do Brasil no mundo, de suas debilidades e possibilidades, de suas contradições terrenas; antes de tudo, para fazer a guerra – não para marquetadas estúpidas e pueris de quem se sente inteligente ao afirmar para os ignorantes que “um mapa pode, sim, ser visto ‘ao contrário’” porque “a Terra é redonda”. Deixem o simbolismo do “nosso norte é o sul” de Joaquin Torres-Garcia para os cartazes e as tatuagens dos jovens esclarecidos; do IBGE e dos burocratas do atual governo esperamos mais do que migalhas simbólicas – ansiamos por disputas reais. Invertamos também Lacoste: poderíamos dizer que os mapas, mais do que impor ou limitar determinadas leituras geográficas, possibilitam ler também a mentalidade do cartógrafo. O que é que diz que o IBGE se permita colocar o mundo de cabeça para baixo em seu Atlas Geográfico, mas não inserir nele outros mapas, como os mencionados acima? Todo mapa esconde; todo mapa revela.
(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.