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BRICS na encruzilhada: a cúpula que expôs seu poder (e divisões)

Cúpula do Rio deixou claro que BRICS não é mais um clube econômico: é um projeto civilizatório. Mas as fissuras podem tornar o bloco um gigante com pés de barro

Juan Laborda
Rio de Janeiro (RJ), 06/07/2025 - Foto oficial do BRICS com seus membros. Da esquerda para direita: Sergei Lavrov (Rússia), Khaled bin Mohamed Al Nahyan (Emirados), Prabowo Subianto (Indonésia) Cyril Ramaphosa (África do Sul) Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) Narendra Modi (Índia) Li Qiang (China) Abiy Ahmed (Etiópia) Mostafa Madbouly (Egito) Abbas Araghchi (Irã) (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
Rio de Janeiro (RJ), 06/07/2025 – Foto oficial do BRICS com seus membros. Da esquerda para direita: Sergei Lavrov (Rússia), Khaled bin Mohamed Al Nahyan (Emirados), Prabowo Subianto (Indonésia) Cyril Ramaphosa (África do Sul) Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) Narendra Modi (Índia) Li Qiang (China) Abiy Ahmed (Etiópia) Mostafa Madbouly (Egito) Abbas Araghchi (Irã) (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

A cúpula do Rio de Janeiro deveria ter sido uma celebração. Onze membros plenos, onze parceiros, 46% do PIB global (ajustado pela paridade do poder de compra) e 45% da população mundial sob a égide dos BRICS. Um bloco que nasceu como um acrônimo do banco Goldman Sachs e hoje desafia a ordem ocidental. Mas, após a foto final, os sorrisos escondiam tensões que poderiam redefinir seu futuro.

A Declaração do Rio é um monumento às contradições. Por um lado, um golpe sobre a mesa geopolítica: apoio explícito ao Brasil e à Índia como candidatos a assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU. Um avanço diplomático que a África do Sul viu com desconfiança, pois o documento ignorou suas aspirações ao reconhecer o Consenso de Ezulwini (que reserva à África a escolha de seu próprio representante). Aqui, a expansão do grupo mostrou seu lado sombrio: Egito e Etiópia, novos membros, são rivais naturais de Pretória nessa corrida.

Mas a fissura mais profunda foi aberta pelo Irã. Em um fato sem precedentes, seu chanceler classificou como “irrealista” a declaração do BRICS em apoio à solução de dois Estados na Palestina. Assim, rompeu o sacrossanto princípio de consenso do BRICS. Enquanto isso, o silêncio foi igualmente eloquente: embora as sanções unilaterais tenham sido condenadas, não houve nenhuma menção aos Estados Unidos. Índia, Brasil e Emirados Árabes bloquearam qualquer crítica direta a Washington. Em tempos de Trump, a prudência pesou mais do que a rebeldia. A propósito, que maneira estranha Trump tem de recompensar o Brasil. Espero que Lula tenha aprendido a lição: a um tipo como Trump não se concede nada. Xi Jinping e Putin poderiam dar-lhe umas aulas sobre como tratar Trump

Os avanços que ninguém discute

Mas, entre as sombras, há luzes estratégicas. O bloco demonstrou força em áreas onde o Ocidente se mostra fraco. Desdolarização prática: o sistema de pagamentos transfronteiriços entre membros (rápido, barato e seguro) é uma realidade operacional. A conexão UPI-CIPS (Índia-China) aponta o caminho. Resiliência alimentar: a futura plataforma de grãos com reserva inicial de 10 milhões de toneladas (trigo, milho, fertilizantes) é um seguro contra crises globais. Liderança climática: com a COP30 em Belém (2025) e a candidatura indiana para a COP33 (2028), os BRICS sequestram a agenda verde. Sua “Tropical Forest Forever Facility” (TFFF) é um mecanismo inovador de financiamento que responsabiliza os países ricos por suas promessas não cumpridas.

A Agenda Prioritária acordada pelos BRICS para o período 2026-2030 avançará em direção a uma moeda comum de reserva, para a qual será realizado um estudo de viabilidade. Em relação ao comércio, o clube de países delimitará uma Zona de Livre Comércio BRICS+, para a qual assinará um Acordo-Marco em 2026. No plano da segurança, por meio do Grupo de Trabalho CTWG, será desenvolvida uma força conjunta antiterrorista. Diante do desafio tecnológico, o Instituto BRICS Redes Futuras trabalhará pela padronização 6G e ética IA. Diante do problema climático, os BRICS continuarão com o Fundo BRICS para Perdas e Danos acordado na COP30 deste ano.

A saúde global é outra frente de avanço discreto. A nova “Parceria contra Doenças Socialmente Determinadas” ataca causas estruturais (pobreza, exclusão), não apenas sintomas. E o Centro BRICS de Competências Industriais, em parceria com a ONUDI, oferece treinamento em habilidades da Indústria 4.0, evitando a dependência do Ocidente.

Os números que não mentem (mas enganam)

O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) apresenta projetos no valor total de 30 bilhões de dólares, e o Acordo de Reservas Contingentes (CRA) oferece uma rede de segurança de 100 bilhões de d. Mas há um dado crucial: o NDB representa apenas 3% do financiamento multilateral global. Para ser um contrapeso real, ele precisa crescer urgentemente.

A expansão acelerada (cinco novos membros em 2023, Indonésia em 2024) agrava o desafio. Como tomar decisões ágeis com onze países de culturas políticas opostas? Democracias como Brasil e Índia compartilham a mesa com autocracias como Rússia e Irã. Rivais geopolíticos (Índia x China no Himalaia; Irã x Arábia Saudita) devem coordenar políticas.

Além disso, as sanções ocidentais à Rússia e ao Irã estrangulam a integração financeira profunda. 

A agenda da grande oportunidade (mas possivelmente a última)

Os próximos cinco anos constituem uma janela crítica para os BRICS, onde sua rota pós-Rio revela ambições transformadoras carregadas de fragilidade. Na frente financeira, estudos de viabilidade para uma moeda comum de reserva já estão em andamento, um projeto que, se concretizado, representaria o desafio mais contundente ao domínio do dólar em meio século. Esse esforço é complementado pela negociação de uma Zona de Livre Comércio BRICS+, cujo acordo-quadro pretende ser concluído em 2026. A meta é ousada: integrar um mercado de 4 bilhões de consumidores, tecendo cadeias de valor que evitem bloqueios ocidentais.

Paralelamente, na COP30 de Belém (2025), o bloco lançará seu Fundo para Perdas e Danos Climáticos, um mecanismo que encarna a justiça ambiental com o selo do Sul Global, exigindo que as economias ricas assumam os custos do caos climático que aceleraram. No entanto, os caminhos possíveis divergem drasticamente.

No cenário ideal – prefiro não dar probabilidades –, os BRICS consolidariam uma arquitetura financeira alternativa funcional e liderariam a governança climática global, reescrevendo as regras do jogo multilateral. O cenário base, mais provável, mostraria avanços na cooperação setorial – especialmente em segurança alimentar e saúde –, mas veria a moeda comum estagnar devido a desconfianças geopolíticas. Enquanto isso, o cenário de risco pintaria um quadro sombrio: a rivalidade estratégica entre China e Índia, agravada por tensões internas como as fricções entre Irã e Arábia Saudita ou as aspirações contraditórias no Conselho de Segurança da ONU, poderia fragmentar o bloco em facções irreconciliáveis. O sucesso dependerá de uma habilidade sutil até agora esquiva: converter retórica em ação coletiva sem que nenhum membro renuncie à sua soberania.

Conclusão

A cúpula do Rio deixou claro que os BRICS não são mais um clube econômico: são um projeto civilizatório. Eles não buscam destruir a ordem liberal, mas demonstrar que a modernidade tem múltiplos caminhos. Sua narrativa de “soberania igualitária” e rejeição às sanções unilaterais ressoa em um mundo cansado de hegemonias. Mas as fissuras expostas são sistêmicas. Sem mecanismos ágeis para gerenciar suas contradições, o bloco pode se tornar o que o Ocidente espera: um gigante com pés de barro. Seu teste de fogo será transformar retórica em ação coletiva, sem que ninguém renuncie à sua soberania. Em 2030, saberemos se Rio foi o canto do cisne ou o nascimento de uma nova ordem. Por enquanto, apenas uma certeza: o mundo não é mais governado a partir de Washington, Bruxelas ou Pequim. Ele é cozinhado em uma mesa onde, pela primeira vez, o Sul Global serve o menu.

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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