O dia começa às 08:00. Chegamos em Pacaraima, cujas ruas, apesar de brasileiras, emanam o som hispânico de todas as bocas, de todos os cantos. Ao descer do carro, um senhor se aproxima oferecendo câmbio: 4500 bolívares por real. Joach, um venezuelano que nos acompanha desde que cruzamos com ele no aeroporto de Boa Vista, há quatro horas, nega. “Muito pouco”, diz.
Partimos para a Polícia Federal, na fronteira, para carimbar nossos passaportes. Ela é constituída por duas cidades: a já mencionada Pacaraima, do lado brasileiro, e Santa Elena de Uaíren, do lado venezuelano.
A primeira é caótica; vive – ou sobrevive – em função do garimpo, majoritariamente ilegal, e do translado de brasileiros e venezuelanos; portanto também em função do contrabando. As ruas são agitadas, e as máquinas de contar dinheiro, em pequenos comércios que vendem açúcar, macarrão, pasta de dente, shampoo e fraldas, fazem o câmbio do bolívar para o real, do real para o bolívar, para viajantes que vêm ou que vão para longe, e que terão algum conforto ao fim de sua viagem. Mascates e cambistas estão por toda parte, atentos à movimentação.
Santa Elena de Uairén, por sua vez, é uma cidade envolta em tensão. Cruzamo-la em um táxi, dividido com uma brasileira de Pacaraima, cujos filhos, conta orgulhosa, estão estudando Medicina em Isla Margarita, Venezuela. É alvo ignorado pelas armas da imprensa: os cambistas e contrabandistas venezuelanos, ou mesmo os trabalhadores comuns que vêm ao Brasil, e que em função disso garantem algum conforto para si e para a família na Venezuela, são a face da pobreza imposta ao povo pela ditadura de Maduro – quando não se convertem, é claro, em “perseguidos políticos.” Os brasileiros que neste inferno bolivariano encontram a oportunidade de estudar Medicina, por outro lado, simplesmente não existem. É impossível não recordar também de Antonio, um brasileiro que vestia uma jaqueta adornada pelas cores da bandeira venezuelana em Boa Vista, que trabalha como garimpeiro no norte do Brasil, e que entraria na República Bolivariana no dia seguinte, para distribuir cópias de um CD com suas músicas, que na voz de outros cantores, aos poucos, vão conquistando as cidades rumo a Caracas.
De qualquer maneira, Santa Elena é uma cidade tensa. Por lá passamos para tomar um carimbo de entrada, em um posto guardado pela Guardia Nacional Bolivariana, rumo à rodoviária da cidade. A rodoviária – uma pequena construção redonda – é circundada por ruas de terra. O clima é de faroeste; os rostos costumam mirar o chão, os olhos outros olhos, sempre. Dezenas de carros se enfileiram já na entrada da cidade, em um posto da PDVSA – os condutores esperando ansiosamente para encher os tanques, para posteriormente vender a gasolina a brasileiros por um preço superior. “Temos a gasolina mais econômica do mundo, e ao lado temos um país com a terceira gasolina mais cara do mundo. Logicamente é um atrativo para aqueles que querem viver de maneira fácil”, declarou em março deste ano o prefeito do município de Gran Sabana, Manuel de Jesús Valles. Aqui encontramos mais uma figura curiosa: um taxista brasileiro que se personifica venezuelano e que tira seu sustento do caminho para Santa Elena, em uma cooperativa de taxistas da cidade, falando um espanhol claro e perfeitamente adaptado à cadência da região, apesar de sua figura – a de um homem branco, alto, e de barba – contrastar tanto entre os venezuelanos.
Por que faço questão de fazer essas observações? Porque é evidente para aqueles que tomam esse caminho que ele não é constituído por coitados e santos. Também não se tratam de demônios e malandros. Acima de tudo, é evidente que são de ambas as nações os cidadãos que se beneficiam da fronteira, ainda que sejam só de uma os que servem de muleta ideológica a jornalistas e jornais oportunistas, que escarram na verdade sob a botina de seus editores e patrões.
Os venezuelanos que cruzam a Pacaraima são aqueles que, frente a uma crise econômica e sem muita perspectiva, se beneficiam economicamente da possibilidade de atravessarem a fronteira – algo como os milhares de mexicanos ou, ainda, brasileiros, que todos os anos entram nos Estados Unidos para trabalhar, sem documentos. Seriam eles o triste fruto do capitalismo em nosso país? Do subdesenvolvimento do continente, imposto pelo norte? Sem dúvidas. Mas deste problema – que pertence a nós, brasileiros – sequer se ouve falar. Como poderíamos imaginar quais são suas raízes?
Quando se trata da Venezuela, por outro lado, os meios não se calam. É notório o escarcéu feito sobre os venezuelanos que, “para fugir da fome”, cruzam a fronteira. Por outro lado, grita alto o silêncio sobre a guerra econômica movida por Trump contra o país.
Entramos na Venezuela, portanto, com uma visão clara: a de que as figuras que vimos nesta pequena passagem são usadas em uma campanha ideológica contra o governo venezuelano – campanha que não é feita contra nosso governo ou contra o de qualquer outro país alinhado, ainda que as figuras que estes criem sejam similares ou – e este parece ser o caso na maioria das vezes – ainda mais sombrias. É um aviso para os próximos dias: olhar com firmeza, pensar com clareza, escrever honestamente. Acima de tudo, chegar ao destino sem se esquecer do Brasil, de nossa própria condição.