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Brumadinho: “Nessa corrida de manter os lucros a todo custo há uma nítida redução nos gastos das empresas com segurança”

Um ano depois de Brumadinho, professor Miguel Fernandes Felippe analisa a situação da mineração no Brasil e alerta para riscos futuros.
por Viviane Tavares | EPSJV/Fiocruz
O Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante sobrevoo da região atingida pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG. (Foto: Isaac Nóbrega/PR)

No início da tarde do dia 25 de janeiro de 2019 rompeu-se a Barragem I em Brumadinho/MG, um represamento de rejeitos de aproximadamente 250 mil m2, 87 metros de altura e capacidade de armazenamento de 12,7 milhões de m3. Era utilizada para a contenção de substratos descartados do minério de ferro extraído na Mina Córrego do Feijão, no complexo Paraopeba, explorado pela empresa Vale. Há um ano do acontecimento, a tragédia reúne descaso, estimativa de 258 pessoas mortas e 11 desaparecidos e poucas soluções para evitar desastres semelhantes. Este caso, embora trágico, não é novo. Outro semelhante ocorreu há quase cinco anos em Mariana, explorado pelo consórcio das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton no mesmo estado. Nesta entrevista, Miguel Fernandes Felippe, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do relatório Minas de Lama, feito durante uma expedição pelo vale do rio Paraopeba, avalia como está a situação da exploração minerária no país, reflete sobre os dois casos emblemáticos e alerta para riscos futuros.

Como é a estrutura de exploração de mineração do Brasil atualmente? Como as leis e a forma de exploração se organizam?

Para existir, a mineração tem que passar por dois trâmites. O primeiro é uma avaliação técnica feita pela Agência Nacional de Mineração, que inclui o registro de intenção das mineradoras em fazer exploração, passa pelo registro de pesquisa e de lavra que garante autorizações parciais até, por fim, levar à autorização para a exploração mineral. Isso é definido por critérios técnicos, geológicos e políticos. O segundo trâmite é o licenciamento ambiental das atividades minerárias, feito por órgãos de licenciamento estaduais ou federais. Nesse percurso, se exige o EIA, sigla para estudo de impacto ambiental, e o Rima, que é o relatório de impacto ao meio ambiente  feito por uma segunda empresa, que é contratada pela mineradora e vai certificar a viabilidade ambiental do empreendimento e as medidas mitigadoras e compensatórias para que aqueles impactos sejam minimizados. Paralelamente a isso, existem as exigências associadas ao processo minerário em relação aos planos como o de fechamento de mina, de abertura da cava, aos projetos do empreendimento e o plano de emergência.

E como encontramos esse aparato hoje?

Há um sucateamento do aparato governamental para a fiscalização, emissão de contra laudos e verificação da veracidade das informações que são colocadas nesses documentos. Ou seja, as mineradoras produzem esses documentos ou contratam outras empresas para fazê-lo para solicitar autorizações e licenças, mas o governo não tem  recursos humanos ou estrutura física para fazer uma espécie de contra laudo e, muitas vezes, simplesmente aceita o que está escrito pela empresa contratada pela mineradora. Isso é um problema muito sério. É importante lembrar também que existem os marcos regulatórios estaduais e o nacional. Então esse processo burocrático sofre diferenças entre estados. Mas a maioria acaba seguindo a legislação nacional sem grandes mudanças.

O novo marco regulatório foi um dos pontos polêmicos dessa trajetória, com denúncias de  políticos defendiam o interesse de empresas. Como você avalia a relação entre o novo marco e esses crimes ambientais?

Há um discurso por parte das empresas de que os procedimentos burocráticos no Brasil são excessivamente lentos e custosos. Argumentam que o intervalo entre descobrir uma jazida, fazer a pesquisa, conseguir autorização, fazer o licenciamento ambiental e conseguir a permissão para explorar leva um tempo demasiadamente grande. Mas estudos mostraram que esse tempo é gasto nas próprias empresas. E isso se deve à execução de documentos de péssima qualidade – o que leva o governo a negar ou pedir modificações nos documentos. A verdade é que a maior parte das vezes o governo não nega, só pede alterações ou complementações.
O Código tem que ser analisado como parte dessa lógica que se instaurou no país, que é de flexibilização das leis, de uma política neoliberal que diminui cada vez mais a participação do Estado na economia e, sobretudo, no controle das ações dessas empresas. E esse discurso vai para o Congresso. A grande questão é que quando rompe a barragem da Samarco há uma mudança na forma como isso é discutido. Depois do ocorrido, não havia mais espaço para um discurso muito explícito de liberação da mineração no Brasil porque a opinião pública começou a colocar a mineração em xeque. E, hoje, depois do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, isso ficou ainda mais forte, de modo que há uma nítida tentativa de mudar a roupagem do novo marco regulatório. Hoje ele é colocado na forma de cumprimento de uma demanda de segurança e técnica. Quem o defende está se apropriando do discurso que, de certa forma, veio dos grupos ambientalistas a partir da necessidade de aumento das exigências de segurança e ambientais. Mas, no texto do marco regulatório não aumenta a segurança ou a defesa do meio ambiente.

 

Existe alguma relação entre a queda do preço das commodities, como o minério de ferro, e a frequência maior de acidentes?

Isso está muito bem documentado em artigos científicos nacionais e internacionais.  Ao longo dos anos de 2000 – e  na primeira metade da década de 2010 – o  lucro líquido da Samarco não foi alterado. Tampouco houve alteração na divisão de lucros da empresa, mesmo com a queda no preço do minério de ferro. Num cenário de desvalorização da commodity,  a empresa tem opções. Uma delas é aumentar a quantidade explorada. E isso é uma iniciativa muito arriscada. A outra opção é reduzir ao máximo os custos de produção. E, nessa seara, os custos com segurança são cortados. Então nessa corrida de manter os lucros a todo custo há uma nítida redução nos gastos das empresas com segurança, monitoramento, avaliação e acompanhamento das operações. E isso acontece não só em barragem rejeitos, mas no complexo mineral de uma forma geral. Não podemos esquecer que temos uma política ambiental e minerária que beneficia essas empresas, fazendo com que seja mais fácil acontecer tragédias como essas.

Existem denúncias de diversos movimentos sociais como o Movimento de Atingidos por Barragem, Movimento de Atingidos por Mineração e a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale sobre a chamada ‘política de guerra de laudos’, a partir da qual empresas fazem contra laudos de instituições que atestam a qualidade da água, condições de moradia e contaminação dos solos, por exemplo. Como isso funciona?

Essa questão é extremamente interessante. Na verdade, quando eu me inseri nessa discussão, dez dias depois do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, fizemos uma expedição para coleta de sedimentos e água em diversos pontos do rio Doce, desde a foz, em Regência (ES), até o alto curso, em Gualaxo do Norte (MG).Em campo, encontrávamos pesquisadores da empresa e de órgãos do governo. A gente tem, inclusive, uma coleta feita exatamente no mesmo horário e no mesmo local que uma coleta feita por agência do governo – e o resultado foi diferente. No caso de Brumadinho, isso ficou mais difícil porque os monitoramentos governamentais foram mais céleres,   melhor organizados. Então a Vale tem uma batelada de informações que ela monitorou. Eu fui a campo, encontrei o pessoal da Vale monitorando a água de hora em hora ou de 30 em 30 minutos, dependendo da situação. Eles têm uma quantidade de informação gigantesca que não divulgam. Divulgam, na maior parte das vezes, são resultado melhores do que aqueles encontrados por órgãos do governo e órgãos de pesquisa. Mas por que essa diferença acontece? Primeiro, tem uma questão metodológica. Vamos supor que todo mundo é honesto, idôneo e está fazendo um trabalho sério. Tem uma questão metodológica, sobretudo sobre dados envolvendo as águas. Se você faz a coleta no mesmo ponto em dois dias diferentes, com a diferença de temperatura, a diferença de chuva, diferença de descarga de esgotos ou diferença de trânsito de pessoas, animais, barcos – seja o que for –, isso pode dar resultados diferentes para alguns elementos. Alguns são mais sensíveis a mudanças do que o outros. E isso acontece mesmo entre  grupos de pesquisa que são isentos, que são autônomos. Outra questão, também ligada à metodologia, tem a ver com as técnicas de análise. E aí entra, inclusive, a questão de armazenamento. Então eu  coleto duas amostras idênticas no mesmo local, no mesmo momento, e faço a análise com dois equipamentos diferentes – e isso pode dar respostas diferentes.  Esse é um outro problema. Não é infrequente que haja erros dentro de laboratórios. Você tem um equipamento que é mais confiável do que o outro. Além da água, também os rejeitos passam pelos mesmos problemas em relação às análises laboratoriais. Há outra diferença  algo que vimos claramente no rio Doce e no rio Paraopeba. Há uma seleção– a gente chama de seleção granulométrica, de acordo com o ambiente fluvial – que faz com que os rejeitos sejam carreados e isso vai fazendo com que haja diferença nos resultados das análises. E uma terceira questão que a gente não pode descartar é justamente a idoneidade desses laudos. Até que ponto esses laudos são verdadeiros? Eu vejo em campo.

Os técnicos das empresas contratadas pela Vale fazem análise da qualidade da água de hora em hora, mas esses relatórios não são divulgados. De repente, passam semanas e a empresa solta um relatório com os resultados da qualidade da água com uma data específica, não detalhando satisfatoriamente a metodologia, etc. Ou seja, ela não está necessariamente mentindo, mas talvez tenha escolhido o melhor momento para divulgar aquele relatório. E isso se dá também com a análise dos rejeitos. Eu não posso afirmar que eles estão falsificando, usando de má fé. Só estou dizendo que eles coletam dados com uma periodicidade absurdamente grande, maior do que a do próprio governo, mas não divulgam por completo. Quando a gente vai trabalhar com risco ambiental e contaminantes não importa se você pegou cem amostras e 99 estavam livres de determinado contaminantes: se uma estava contaminada e isso não foi um erro, é um fato. O ambiente tem que ser considerado contaminado. Podemos ter contaminantes que aparecem, por exemplo, só em determinado pH, em determinadas temperaturas. As reações químicas na água fazem com que os contaminantes se manifestem nessas condições ambientais, então a gente tem que ter essa clareza. Não é porque um laudo atestou que a água está boa e outros tantos que ela estava ruim que vamos considerá-la boa. Precisamos observar o princípio da precaução e da parcimônia.

Qual é o papel da Renova, como ela atua e quais interesses defende?

Na minha opinião o papel da Renova é bem claro. É garantir ou manter uma boa imagem da Samarco e das mineradoras perante os investidores e a população de uma forma geral. E isso fica muito claro a partir da forma como ela foi constituída: num acordo que não é reconhecido pelos próprios atingidos. Então se trata de uma fundação que está sob a égide de recuperação ambiental e reparação de danos, mas os próprios atingidos pelos danos não a reconhecem. Muitos deles demonstram um sentimento de desprezo e até revolta com as ações que a Renova vem executando. Na verdade, é um conjunto de iniciativas que têm como objetivo garantir a manutenção de lucro dos acionistas e garantir que a mineração da forma como é praticada no Brasil não fique com a imagem suja a partir do rompimento. Pesquisas feitas por cientistas contratados pela fundação seguem resultados que vão na contramão de todo o restante da comunidade científica. Mas a Renova usa esses trabalhos para dar respaldo às ações de recuperação. Um exemplo disso é sua opção por manter os rejeitos e estabilizá-los, absolutamente questionável. Toda a comunidade científica vem questionando isso de forma bastante severa ao longo desses últimos anos. E as decisões sobre a reparação de danos são questionáveis da mesma forma. A fundação acaba trabalhando de uma maneira muito antidemocrática, sem participação popular. Ela nasce de um conflito e promove uma série de outros conflitos. Atua de uma forma truculenta, vertical de cima para baixo, impositiva diante dos atingidos. A Renova funciona como uma grande interlocutora entre a empresa e os órgãos governamentais – que cumpre, justamente, os anseios da empresa. Não tem qualquer tipo de representatividade social.

Saúde, trabalho e renda, modos de vida foram alguns aspectos que impactaram as vítimas de ambos os rompimentos.  Estes impactos são mensurados? Como estão as questões relacionadas às reparações?

Poderia ficar o dia inteiro listando os danos ambientais e problematizar em cima deles. Vou até inverter um pouco a resposta. As reparações acabam sendo realizadas a partir de uma desestruturação da mobilização social e de uma tentativa de individualização dos danos para, justamente, fazer com que a força da coletividade não atrapalhe os anseios da Renova, no final das contas da Samarco. Então a gente tem um atraso absurdo, por exemplo, na entrega das casas em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo [distritos de Mariana atingidos]. Em Bento essas decisões foram absurdamente antidemocráticas. Já em Paracatu de Baixo havia uma estrutura um pouco melhor montada em termos de assessoria técnica do Ministério Público, a sociedade conseguiu colocar alguns anseios, embora estejam sem casa para morar até agora. Então a maior parte dos danos está muito longe de ser reparada. Tanto no rio Doce, quanto em Brumadinho. As discussões ainda estão muito focadas em encontrar e reconhecer as vítimas. Óbvio que isso tem uma importância inegável, mas acaba desviando o foco em relação às pessoas que estão vivas, que perderam os parentes, mas também modos de vida, casa… Isso é bastante problemático. No caso do rio Doce, os impactos à saúde e à dimensão do trabalho, sobretudo na zona rural, ainda estão muito longe até de serem compreendidos. Chama atenção os relato em Barra Longa [município vizinho à Mariana atingido], por exemplo. Seis meses depois do rompimento da barragem eram muitos problemas de saúde por causa da poluição atmosférica. Esses particulados no ar foram registrados, mas negligenciados tanto pela empresa, quanto pelos órgãos que deveriam dar assistência à população. A mídia também falou pouco sobre isso, focada que estava na contaminação da água e do solo. Engoliu goela abaixo os relatórios que mostravam que a água não estava contaminada ou estava melhorando. Mas esse rejeito não estava na água. No final das contas ninguém falava sobre o ar. Ninguém falava da saúde mental das pessoas que tiveram seus modos de vida afetados, que perderam suas rotinas ou dos moradores que agora tinham que tirar a poeira dos móveis sete, oito, nove vezes por dia. Isso é muito relatado por eles como algo bastante complicado, mas é colocado em segundo plano. Hoje, há relatos de diversos tipos de problemas de saúde mental, depressão, estresse, crises de ansiedade na população que conviveu constantemente com esses rejeitos. Além disso há estudos da área médica, inclusive com crianças, que relatam a incidência de determinados componentes químicos no sangue dessas pessoas e relacionam isso com maior risco de algumas doenças no futuro.

E Brumadinho especificamente? Tem diferença?

Ainda tem muita coisa acontecendo um ano após o rompimento.  A comunidade do Parque da Cachoeira está convivendo com a poeira dos rejeitos e das obras de emergência da Vale de forma constante. Tem um relato de uma moradora que estava profundamente preocupada com a água que sua filha bebê consome, colhemos amostras e trouxemos para o laboratório. Verificamos que a água, como era subterrânea, estava potável, mas e a poeira? A mulher relatou que tinha que limpar a casa toda hora, e com seu relato veio o sinal de alerta em relação ao bebê inalando aquele material particulado  diariamente. Os trabalhadores dessa obra também não usam máscaras para se protegerem. É uma poeira gigantesca. A última vez que levei meus alunos lá parei na ponte que dá uma melhor visibilidade do local para dar uma aula e eles pediram para sair porque os olhos estavam ardendo e o nariz coçando. Em março, vamos começar um projeto na UFJF que vai tentar calcular essa quantidade de particulados, acompanhar isso ao longo do tempo para ver como a situação em Brumadinho.

Há monitoramento de novos casos possíveis? Há tragédias anunciadas?

Sobre os novos episódios, o que a gente pode dizer é que houve um avanço muito pequeno em relação aos marcos legais e normativos nesse período. Então, sim, estamos preocupados que novos episódios aconteçam. Claro que, depois de rompimentos como esses, há uma maior atenção tanto por parte das empresas quanto do governo . Mas isso também tem sido usado na forma de um terrorismo institucional por parte das empresas, que começam a gerar alarmes exagerados para convencer a população a sair dos locais no entorno de barragens. É mais fácil causar essa sensação e comprar as terras ou fazer a pessoas se acostumarem com aquela rotina de insegurança e risco. Então assim as empresas têm feito um grande alarde com relação a isso, com o discurso de que  estão fazendo tudo certinho, dando alarme, sendo que, na verdade, a gente sabe que não é isso. É uma inversão de responsabilidades e uma estratégia nefasta de cansar a população para conseguir, por maneiras escusas, aquilo que elas querem.

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