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Rose Martins: “há espaço para uma posição autônoma do Brasil na ordem internacional”

Em entrevista à Opera, pesquisadora diz que novo governo Lula deve retomar integração latino-americana e se reaproximar dos países africanos.
Em entrevista à Opera, pesquisadora diz que novo governo Lula deve retomar integração latino-americana e se reaproximar dos países africanos. Por Pedro Marin | Revista Opera
Cochabamba (Bolívia) – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da abertura da II Reunião de Chefes de Estado e de Governo dos Países da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA). Ao seu lado, os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, da Bolívia, Evo Morales, e do Chile, Michelle Bachelet. 9 de dezembro de 2006. (Foto: Ricardo Stuckert/PR).

A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, há quatro anos, marcou uma virada em muitos aspectos da realidade brasileira: o aumento dos desmatamentos na Amazônia, a crescente nos índices de fome no Brasil, que hoje atinge 33 milhões de brasileiros, a ocupação de milhares de cargos governamentais por militares, a postura abertamente negacionista e antivacina durante a pandemia num país que é referência internacional em vacinação, e muitas outras questões.

Mas ela também marcou uma reviravolta num aspecto que costuma ter pouca atenção do eleitorado: a política externa. Com efeito, na disputa eleitoral de 2022, as relações do Brasil com o mundo não foram só tema do costumeiro polemismo liberal sobre as relações do PT com governos como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Ao contrário, apareceu com frequência também na voz do futuro presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que em inserções e debates sempre lembrava dos tempos em que “o Brasil era respeitado no mundo”.

Com as urnas dando vitória a Lula por uma margem de 2,1 milhões de votos (50,9% dos votos contra 49,1%), e sinalizando o fim de um governo que optou pelo alinhamento automático aos Estados Unidos e transformou o País em um anão diplomático, a Revista Opera conversou com três especialistas sobre o que se pode esperar da política externa brasileira num terceiro mandato de Lula. A primeira destas entrevistas, que segue, foi feita com Rose Martins, mestra e doutoranda em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Revista Opera: A guerra na Ucrânia redesenhou o tabuleiro geopolítico global numa forma que encerra a ordem unipolar gestada com o fim da URSS. Não se sabe ainda o que isto trará: se o mundo se organizará em dois grandes blocos, ou se haverá uma organização multipolar, que demandaria a ascensão de algo como o que foi o Movimento dos Não-Alinhados (MNA) na década de 60. Você crê que algo como o MNA pode surgir hoje, ou estamos condenados a uma ordem bipolar, ou seja, um mundo dividido em dois blocos? E que papel o Brasil pode ter nisso?

Rose Martins: Vejo a conformação de uma ordem multipolar mais como um desejo do que uma realidade. É uma tese que vem ganhando popularidade, mas não me parece claro quais seriam os multipolos ou quais países formariam um grupo de não alinhados. Tomando a Índia como exemplo, hoje membro dos BRICS e da Organização para Cooperação de Shangai, como o país assumiria esse tipo de posição? Está claro que o mundo unipolar sob a hegemonia dos Estados Unidos não existe mais e isso se confirma com a Guerra da Ucrânia, mas pelo menos desde o início do século os Estados Unidos vêm enfrentando uma crise de liderança. Uma nova ordem está sendo gestada. Na minha concepção, uma ordem bipolar com a aliança sino-russa do outro lado da disputa. Sobre as mudanças na ordem internacional, é sempre importante lembrar que elas acontecem na longa duração, como diz Braudel. E as crises econômicas, financeiras e os conflitos militares são próprias do sistema, que é instável por natureza. Nesse contexto, o Brasil deve estar atento à sua posição geopolítica e geoeconômica e firme na defesa de seus interesses nacionais sem se subordinar a nenhum polo. A posição mediadora do Brasil também é importante, mas nesse cenário talvez um pouco limitada.

Revista Opera: No século passado, da ascensão do fascismo na Europa, nos anos 30, até a Guerra Fria, o Brasil adotou estratégias de interação internacional muito diferentes, em especial com os EUA. Creio que podemos falar em três: nos anos 30, a ascensão do fascismo foi utilizada pelo Brasil como alavanca para se beneficiar da relação com todos os atores e, antes de se posicionar na guerra, fazer exigências. A partir de 45, houve uma disputa muito forte sobre que postura tomar neste novo ordenamento, neste mundo dividido em dois blocos. Mas, no geral, houve espaço para manter relações com os dois campos. Por fim, nos anos 60, se encerrou esse espaço, até por força do golpe militar: o Brasil se alinhou incondicionalmente aos EUA. Do ponto de vista dos EUA e da gestão Biden, você crê que haja espaço para que o Brasil não marche a um alinhamento incondicional? E como desfazer as medidas que foram tomadas nesse sentido, em especial por Bolsonaro?

Rose Martins: A política externa dos governos Lula buscou a inserção internacional do Brasil privilegiando nosso entorno regional e com os países do chamado Sul-Global. Não houve um rompimento com a tradição diplomática brasileira inaugurada por Rio Branco, mas digamos que houve um ajuste na estratégia de usar os laços bi e multilaterais como forma de auxiliar nosso desenvolvimento econômico. A política externa de Jair Bolsonaro é marcadamente ideologizada nos primeiros anos com o chanceler Ernesto Araújo, mas, sobretudo, me parece uma diplomacia sem rumos. A associação com os Estados Unidos tem um caráter unilateral e trouxe menos danos do que poderíamos esperar. Podemos citar a posição sobre a Venezuela, por exemplo. No início do governo havia um temor de que o Brasil servisse aos interesses dos Estados Unidos e houvesse alguma tensão militar com o país vizinho. Acredito que há sim espaço para uma posição autônoma do Brasil e esse foi, sem dúvidas, um traço da política externa não só de Lula, mas também de Dilma. Não vejo muita dificuldade em desfazer a bagunça criada por Bolsonaro, porque ela não foi de certa forma material, mas de posicionamentos diplomáticos e prejudicial à imagem do Brasil. E nesse ponto, a figura de Lula por si só muda o quadro.

Revista Opera: Uma questão chave nesta crise que a guerra da Ucrânia iniciou é a questão energética. O Brasil é uma fonte estratégica de energia, não só como produtor de petróleo, mas também pela produção hidrelétrica. Isto é, em tese poderia se beneficiar muito dessa crise. No entanto, nos últimos anos houve a adoção da política de Preço de Paridade Internacional (PPI) e um verdadeiro desmonte do setor energético, e é de se notar que a China tem muitos investimentos no Brasil nessa área – algo em torno de 78% dos investimentos entre 2007 e 2020. Isso será uma carta na manga para Lula manejar as relações internacionais? E como equalizar o internacional com o nacional neste aspecto? Será necessário reverter as vendas de ativos da Petrobras e pôr fim à PPI ou ajustá-la, por exemplo?

Rose Martins: Sem dúvidas, para tirar proveito desse momento no setor energético mundial, o governo brasileiro precisa retomar o controle da Petrobras. Ela deve ser uma empresa estatal, nacional e orientada a agir de forma estratégica. Esse caminho passa, sem dúvidas, por implementar as medidas que você citou. A Guerra na Ucrânia deixou muito óbvio o que já era claro: o petróleo ainda é central para o movimento da economia, a despeito de discursos como o da transição energética, por exemplo. Neste momento do mundo, todos os grandes países produtores devem usar isso ao seu favor. 

 Leia também – O lugar do Brasil e da Petrobras na nova geopolítica energética 

Revista Opera: Que papel poderá ter o BRICS neste cenário, levando em consideração que a Rússia efetivamente enfrenta sanções por parte dos EUA e está literalmente envolvida em uma guerra não-declarada – por parte de Putin, mas também de Biden – e que a China tem vivido a guerra comercial com os EUA, com o perigo de se tornar uma guerra real no futuro?

Rose Martins: O terreno internacional está instável, perigoso e as disputas interestatais marcadamente acirradas. Nos últimos 40 dias, a Guerra na Ucrânia tem caminhado para um ponto de não retorno. As saídas diplomáticas não estão mais sendo pautadas e o uso da força militar bruta tem aumentado. O último documento de segurança dos Estados Unidos coloca a China e a Rússia como adversárias a serem combatidas. O último congresso do Partido Comunista na China reiterou a posição mais assertiva da China no sistema internacional. Nesse cenário, o BRICS segue sendo uma importante alternativa para contrabalancear o poder econômico dos EUA, projetado em grande parte a partir de suas agências subordinadas, como o FMI e o Banco Mundial. Os BRICS e seu Novo Banco de Desenvolvimento oferecem alternativas para o desenvolvimento econômico, distintas dos termos neoliberais dessas organizações. Soma-se isso à perspectiva de alargamento dos BRICS, com as possíveis adesões da Argentina e México. 

Revista Opera: Por fim, gostaria que falasse um pouco do que espera, no campo das relações exteriores, por parte de um governo Lula.

Rose Martins: Estou bastante otimista, sobretudo em relação aos nossos laços regionais e uma reaproximação com os nossos irmãos latino-americanos. Penso que Lula irá retomar projetos como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), o ISAGS (Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde) e o Conselho de Defesa Sul-Americano. Também com os países africanos projetos de cooperação devem ser retomados.

Em dimensão global, a situação está complicada, de fato, mas dois pontos devem ser evidenciados: a capacidade diplomática do presidente Lula e sua defesa da nossa soberania e dos nossos interesses nacionais. No entanto, antes de mais nada, devemos ter em mente que o governo Lula irá receber um país com condições bastante deterioradas e que essas mudanças podem levar algum tempo.

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