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100 anos desde a morte do camarada Lênin

Legado de Lênin não está no passado, está na luta global hoje para transcender os dilemas que a humanidade enfrenta enquanto avança rumo ao socialismo
Vijay Prashad
Lênin discursa na Praça Sverdlov em 5 de maio de 1920 para motivar tropas que partiriam para a guerra Polonesa-Soviética. (Foto: Domínio Público)
Vladimir Ilyich Ulanov (1870-1924) ficou conhecido por seu pseudônimo – Lênin. Ele era, como seus irmãos, um revolucionário, o que, no contexto da Rússia czarista, significava que passaria longos anos na prisão e no exílio. Lênin ajudou a construir o Partido Operário Social-Democrata Russo por meio de seu trabalho intelectual e organizacional. Os escritos de Lênin não são apenas suas próprias palavras, mas o resumo da atividade e dos pensamentos de milhares de militantes cujos caminhos cruzaram com o seu. Foi a notável capacidade de Lênin de incorporar as experiências dos militantes ao campo teórico que deu forma ao que chamamos de leninismo. Não é de se admirar que o marxista húngaro György Lukács tenha chamado Lênin de “o único teórico igual a Marx já produzido pela luta pela libertação do proletariado”.

Construindo uma revolução

Em 1896, quando greves espontâneas eclodiram nas fábricas de São Petersburgo, os socialistas-revolucionários foram pegos de surpresa. Eles ficaram desorientados. Cinco anos depois, Lênin escreveu que “os revolucionários ficaram para trás em relação a esse levante, tanto em suas ‘teorias’ quanto em suas atividades; eles não foram capazes de estabelecer uma organização constante e contínua capaz de liderar todo o movimento”. Lênin sentia que esse atraso tinha de ser corrigido.

A maioria dos principais escritos de Lênin baseou-se nessa percepção. Lênin analisou as contradições do capitalismo na Rússia (“O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, 1896), o que lhe permitiu entender como o campesinato no extenso Império Czarista tinha um caráter proletário. Foi com base nisso que Lênin defendeu a aliança operário-camponesa contra o czarismo e os capitalistas. Lênin entendeu, a partir de seu envolvimento com a luta de massas e de sua leitura teórica, que os social-democratas – enquanto o segmento mais liberal da burguesia e dos aristocratas – não eram capazes de conduzir uma revolução burguesa, muito menos o movimento que levaria à emancipação do campesinato e dos trabalhadores. Esse trabalho foi desenvolvido em “Duas táticas da social-democracia na revolução democrática” (1905). “Duas Táticas” é talvez o primeiro grande tratado marxista a demonstrar a necessidade de uma revolução socialista, mesmo em um país “atrasado”, onde os trabalhadores e os camponeses precisariam se aliar para romper as instituições de dominação.

Esses dois textos mostram que Lênin evitava a visão de que a Revolução Russa poderia saltar por cima do desenvolvimento capitalista (como sugeriam os populistas – narodnik) ou que teria de passar pelo capitalismo (como argumentavam os democratas liberais). Nenhum desses caminhos era possível ou necessário. O capitalismo já havia entrado na Rússia – um fato que os populistas não reconheciam – e poderia ser superado por uma revolução operária e camponesa – um fato que os democratas liberais contestavam. A Revolução de 1917 e o experimento soviético comprovaram o raciocínio de Lênin.

Lênin (ao centro) durante uma reunião em São Petesburgo da União de Luta pela Libertação da Classe Trabalhadora, em 1895. (De pé, da esquerda para direita: Malchenko, Zaporozhets, Vaneyeve; sentados: Starkov, Krzhizhanovsky, Lênin e Martov). (Foto: Nadezhda Krupskaya / Domínio Público)

Tendo estabelecido que as elites liberais da Rússia czarista não seriam capazes de liderar uma revolução operária e camponesa, ou mesmo uma revolução burguesa, Lênin voltou sua atenção para a situação internacional. No exílio na Suíça, Lênin assistiu à capitulação dos social-democratas ao belicismo em 1914 e à entrega da classe trabalhadora à guerra mundial. Frustrado com a traição dos social-democratas, Lênin escreveu um importante texto – “Imperialismo, fase superior do capitalismo” – que proporcionou uma compreensão clara do avanço do capital financeiro e das empresas monopolistas, bem como dos conflitos intercapitalistas e inter-imperialistas. Foi nesse texto que Lênin explorou as limitações dos movimentos socialistas no Ocidente – com a aristocracia trabalhista constituindo uma barreira à militância socialista – e o potencial de revolução no Oriente – onde poderia ser encontrado o “elo mais fraco” da cadeia imperialista. Os cadernos de Lênin mostram que ele leu 148 livros e 213 artigos em inglês, francês, alemão e russo para clarear seu pensamento sobre o imperialismo contemporâneo. Uma avaliação lúcida desse tipo a respeito do imperialismo fez com que Lênin desenvolvesse uma posição sólida sobre os direitos das nações à autodeterminação, quer essas nações estivessem dentro do Império Czarista ou de qualquer outro império europeu. O embrião do anticolonialismo da URSS – desenvolvido na Internacional Comunista (Comintern) – é encontrado aqui.

O termo “imperialismo”, tão importante para a ampliação, por parte de Lênin, da tradição marxista, refere-se ao desenvolvimento desigual do capitalismo em escala global e ao uso da força para manter essa desigualdade. Certas partes do planeta – principalmente aquelas que tiveram uma história anterior de colonização – permanecem em uma posição de subordinação, com sua capacidade de criar uma agenda de desenvolvimento nacional independente limitada pelos tentáculos do poder político, econômico, social e cultural estrangeiro. Em nossa época, surgiram novas teorias que sugerem que as novas condições não podem mais ser compreendidas pela teoria leninista do imperialismo. Algumas pessoas na esquerda rejeitam a ideia da estrutura neocolonial da economia mundial, com o bloco imperialista – liderado pelos Estados Unidos – usando todas as suas fontes de poder para manter essa estrutura. Outros, mesmo na esquerda, argumentam que o mundo agora é “plano”, e que não há mais um Norte Global que oprime um Sul Global, mas sim que as elites de ambas as zonas fazem parte de uma burguesia internacional. Nenhuma dessas objeções se sustenta quando confrontadas com os níveis crescentes de violência perpetuados pelo bloco imperialista e com os níveis crescentes de desigualdade relativa entre o Norte e o Sul (apesar do crescimento das elites capitalistas no Sul). É claro que alguns elementos do Imperialismo de Lênin estão desatualizados – ele foi escrito há cem anos – e exigem uma reformulação cuidadosa. Mas a essência da teoria permanece válida – a ênfase na tendência das empresas capitalistas de se tornarem monopólios, a crueldade com que o capital financeiro drena a riqueza do Sul Global e o uso da força para conter as ambições dos países do Sul de traçar suas próprias agendas de desenvolvimento.

Uma das intervenções mais importantes de Lênin, que cativou os habitantes das colônias, foi a ideia de que o imperialismo nunca desenvolveria as colônias e que somente as forças socialistas, em cooperação com os setores de libertação nacional, seriam capazes de lutar pela independência nacional e, em seguida, levar seus países ao socialismo. A feroz determinação anticolonial de Lênin aproximou suas ideias dos povos do mundo colonizado, razão pela qual eles se uniram com tanto entusiasmo ao Comintern depois de 1919. Ho Chi Minh leu a tese do Comintern sobre questões nacionais e coloniais e foi às lágrimas. Para ele, tratava-se de um “guia milagroso” para a luta do povo da Indochina. “Com base na experiência da Revolução Russa”, escreveu Ho Chi Minh, “devemos ter o povo – tanto a classe trabalhadora quanto os camponeses – na raiz de nossa luta. Precisamos de um partido forte, uma vontade forte, com sacrifício e unidade em nosso foco”. “Como o sol brilhante”, escreveu Ho Chi Minh, “a Revolução de Outubro brilhou em todos os cinco continentes, despertando milhões de pessoas oprimidas e exploradas em todo o mundo. Nunca houve uma revolução de tamanha importância e escala na história da humanidade”.

Finalmente, Lênin passou o período de 1893 a 1917 estudando as limitações do partido de velho tipo – o partido social-democrata. O texto de Lênin – “Nosso Programa” – afirma que o partido deve estar envolvido em uma atividade contínua e não depender de surtos espontâneos ou incipientes [stikhiinyi]. Essa atividade contínua faria com que o partido entrasse em contato íntimo e orgânico com a classe trabalhadora e o campesinato, além de ajudar a germinar os protestos que, então, poderiam assumir um caráter de massa. Foi essa consideração que levou Lênin a elaborar seu entendimento sobre o partido revolucionário em “O que fazer?” (1902). Essa notável contribuição destacava o papel dos trabalhadores com consciência de classe como a vanguarda do partido e a importância da agitação política entre os trabalhadores para o desenvolvimento de uma consciência política genuinamente poderosa contra toda tirania e toda opressão. Os trabalhadores, argumentou Lênin, precisam sentir a intensidade da brutalidade do sistema e a importância da solidariedade.

Esses textos – de 1896 a 1916 – prepararam o terreno para que os bolcheviques e Lênin entendessem como agir durante as lutas de 1917. É uma medida da confiança de Lênin nas massas e em sua teoria que ele tenha escrito seu audacioso panfleto “Conservarão os Bolcheviques o Poder de Estado?” algumas semanas antes da tomada do poder.

Construindo um Estado

Tendo triunfado, Lênin agora tinha que enfrentar os problemas da construção de um projeto socialista no antigo Império Czarista, que havia sido devastado por sua própria avareza e pela guerra. Antes que os soviéticos tivessem tempo de se organizar, os imperialistas atacaram de todas as direções. Intervenções diretas em nome dos camponeses e trabalhadores, bem como das minorias nacionais, impediram deserções em larga escala da nova Revolução para os exércitos contrarrevolucionários. Os camponeses, com seus meios limitados, mantiveram-se firmes ao novo começo. Mas esse era o ponto – os “meios limitados”. Como se constrói o socialismo em um país pobre, com o desenvolvimento social freado pela autocracia czarista?

Uma leitura atenta de “Estado e Revolução” (1918) antecipa os problemas enfrentados pelos soviéticos em sua nova tarefa – eles não podiam apenas herdar a estrutura do Estado, mas tinham de “esmagar o Estado”, construir um novo conjunto de instituições e uma nova cultura institucional, criar uma nova atitude dos quadros em relação ao Estado e à sociedade. Em abril de 1918, a obra de Lênin “As tarefas imediatas do poder soviético” resume o trabalho dos primeiros meses e mostra que os soviéticos estavam bem cientes dos profundos problemas que tinham de enfrentar. Sua revolução não ocorreu em um país capitalista avançado, mas no que Marx chamou de “reino da escassez”. Aumentar as forças produtivas e socializar os meios de produção ao mesmo tempo era uma tarefa de proporções imensas.

“Sem alfabetização”, escreveu Lênin, “não pode haver política. Só pode haver rumores, fofocas e preconceitos”. Os recursos limitados que existiam antes do Estado soviético foram direcionados para a alfabetização, com os quadros do Partido determinados a garantir que eles revertessem o fato de que apenas um terço dos homens era alfabetizado e menos de um quinto das mulheres. Entre a campanha de alfabetização Likbez e a política de indigenização (korenizatsiya), baseada no uso de idiomas regionais e minoritários, os soviéticos conseguiram, em duas décadas, garantir que os níveis de alfabetização subissem para 86% para os homens e 65% para as mulheres. A centralidade dos trabalhadores e camponeses na construção da Rússia soviética é frequentemente esquecida (Mikhail Kalinin veio de uma família de camponeses; Joseph Stálin veio de uma família de sapateiros e empregadas domésticas). A educação, a saúde, a moradia e o controle da economia, bem como as atividades culturais e o desenvolvimento social, foram o cerne do trabalho da nova Rússia Soviética, liderada por Lênin. Nenhuma bobagem de direita sobre a União Soviética pode apagar as imensas conquistas desse Estado operário.

Stálin, Lênin e Mikhail Kalinin durante o VIII Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Março de 1919. (Domínio Público)

No último ano de sua vida, Lênin escreveu quatro textos formidáveis: “Sobre a Cooperação”, “Sobre a Nossa Revolução”, “Como devemos reorganizar a Inspecção Operária e Camponesa” e “É Melhor Menos, mas Melhor”. Nesses textos, Lênin reconheceu as dificuldades do processo de transformação do capitalismo em socialismo. Ele escreveu sobre o “enorme e ilimitado significado” das sociedades cooperativas, a necessidade de reconstruir a base produtiva e de construir associações para aumentar a confiança das massas. O que Lênin indicou foi a necessidade de uma transformação cultural, um novo modo de vida para os trabalhadores e camponeses, e maneiras novas e criativas para que os trabalhadores e camponeses tivessem poder sobre sua sociedade e desenvolvessem sua clareza na ação. Os trabalhadores herdaram a arquitetura de um estado hediondo, e isso precisava ser totalmente transformado. Mas como? A reflexão de Lênin em “É Melhor Menos, mas Melhor” é extremamente honesta:

“Que elementos possuímos para criar esse aparelho? Apenas dois. Em primeiro lugar os operários, entusiasmados pela luta pelo socialismo. Estes elementos não são suficientemente educados. Eles desejariam dar-nos um aparelho melhor. Mas não sabem como fazê-lo. Não podem fazê-lo. Até agora não alcançaram o desenvolvimento, a cultura que é necessária para isso. E para isso é necessário precisamente ter cultura. Neste aspecto nada se pode fazer de repente ou de assalto, com desembaraço ou energia, ou qualquer outra das melhores qualidades humanas em geral. Em segundo lugar, os elementos de conhecimentos, de educação, instrução, que entre nós são ridiculamente reduzidos em comparação com todos os outros Estados.”

Em sua última aparição pública – no Soviete de Moscou, em novembro de 1922 – Lênin elogiou as conquistas da jovem República Soviética, mas também advertiu sobre o difícil caminho a seguir. “Nosso Partido”, disse ele, “um pequeno grupo de pessoas em comparação com a população total do país, enfrentou esse desafio. Esse pequeno núcleo se propôs à tarefa de refazer tudo, e assim o fará”. Mas essa não é uma tarefa apenas do Partido, mas também dos trabalhadores e camponeses, que viam o novo aparato soviético como seu. “Fizemos passar o socialismo para a vida diária, e é aqui que nos devemos orientar. Eis o que constitui a tarefa dos nossos dias, eis o que constitui a tarefa da nossa época.”. A União Soviética durou apenas setenta e quatro anos, mas, durante esses anos, realizou experiências vigorosas para superar a miséria do capitalismo. Setenta e quatro anos é a expectativa média de vida global. Simplesmente não houve tempo suficiente para avançar a agenda socialista antes que a URSS fosse destruída. Mas o legado de Lênin não está apenas na URSS. Ele está na luta global para transcender os dilemas que a humanidade enfrenta enquanto avança rumo ao socialismo.

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