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Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina

Vacas criadas em laboratório, atentados a bomba e invasões: como ação de grupos judeus extremistas sobre a Mesquita de Al-Aqsa ajudam a explicar ataque do Hamas
Euclides Vasconcelos e Marcelo Bamonte
Homem aponta ao Domo da Rocha, na Mesquita de Al-Aqsa, situada no monte do Templo, na Cidade Velha de Jerusalém.

Quando se trata de assuntos de guerra, profecias e escatologias religiosas são fatores que podem parecer mais distantes do que realmente estão. A guerra, afinal, é política. Mas a guerra e a política são feitas por homens e mulheres de carne, osso, paixões e espírito – seja o espírito como o definem os religiosos, seja o espírito como o definem as várias correntes filosóficas. 

A fé religiosa – essa gigante que move montanhas e pode ser ao mesmo tempo causa e consequência de divisões e conflitos – consta entre as maiores paixões humanas de que se tem notícia, capaz de arregimentar multidões e exércitos para qualquer projeto, entre eles os violentos. Por isso é falha toda análise que separa em absoluto a fé e o poder, as religiões e a política, quando as sociedades de que se fala são muitas vezes organizadas, atravessadas ou divididas pelo fator religioso. 

Berço das três maiores religiões monoteístas do mundo – o judaísmo, o cristianismo e o islã – o Oriente Médio é um dos primeiros exemplos que nos vem à mente quando pensamos na relação entre religião e política. Considerado sempre um barril de pólvora prestes a explodir, ainda que não tenha sido sempre assim, a questão religiosa atravessa ali também todos os aspectos da vida social. Mas, ao contrário do que comumente se diz, não é só o islamismo que possui variáveis consideradas mais “radicais” ou mais “moderadas” naquele terreno. 

Também o judaísmo possui seus grupos de radicais religiosos, cujo tamanho e influência política na sociedade e Estado israelenses variam. Sua escatologia – isto é, a visão de mundo religiosa que profetiza e orienta seus seguidores rumo ao “destino final”, o fim do mundo como se conhece e ao próprio apocalipse – tem tomado um local de cada vez mais destaque na guerra em curso, além de ter seu peso entre os motivos que levaram o Hamas a decidir pelo ataque de 7 de outubro.

No discurso que marcou o centésimo dia da guerra em Gaza o porta-voz do Hamas, Abu Ubaida, citou, entre as motivações para o início das operações da operação Tempestade Al-Aqsa, um ocorrido de poucos anos atrás, quando judeus radicais, em aliança com cristãos protestantes dos Estados Unidos, transportaram do Texas para a Terra Santa cinco vacas (ou novilhas) vermelhas para um ritual de sacrifício religioso que aconteceu pela última vez quase dois mil anos atrás, em 189 d.C.. A que se referiu o porta-voz do Hamas e de que maneira isso é relevante para entender o aspecto religioso do conflito em curso?

A profecia judaica das novilhas vermelhas

Para a tradição escatológica judaica, o sacrifício de uma novilha vermelha é necessário para o ritual de purificação que permitiria aos judeus construírem seu Terceiro Templo em Jerusalém. A construção deste templo é um desejo antigo de grupos judeus radicais, que acreditam que esse é um passo necessário para a chegada de seu messias; um passo que precisa ser dado o quanto antes.

A bíblia hebraica explicita a profecia com mais detalhes. Outros dois templos anteriores eram locais de veneração e culto para os judeus em Jerusalém. O Primeiro Templo, também chamado de Templo de Salomão, foi destruído por Nabucodonosor II após o cerco de Jerusalém, no ano de 587 antes de Cristo. Já o Segundo Templo foi construído após o regresso do povo judeu a Jerusalém, por volta de 516 a.C., e durou até o ano 70 depois de Cristo, ocasião em que foi destruído na primeira guerra judaico-romana (ou grande revolta judaica), quando Herodes, rei da Judeia e representante do Império Romano na região, ordenou uma remodelação do templo com o propósito de agradar Júlio César – reforma essa considerada pelos judeus como uma profanação de seu local sagrado. Com o acúmulo de insatisfações e instabilidade político-religiosa, os romanos usaram uma revolta judaica na Palestina como justificativa para a destruição do local sagrado, proibindo também o judaísmo por todo território de Jerusalém.

Desde então e até hoje, com base em profecias da bíblia hebraica, judeus fundamentalistas de todo o mundo esperam a construção do Terceiro Templo de Jerusalém. Suas condições são explicitadas em inúmeros textos sagrados, e uma dessas condições aponta que seria necessário o sacrifício de uma vaca vermelha pura, mais especificamente – e segundo a própria bíblia hebraica – “a novilha vermelha deve ser absolutamente perfeita em sua vermelhidão. Mesmo dois fios de cabelo de qualquer outra cor irão desqualificá-la. Até os cascos devem ser vermelhos.”, detalhando ainda que o animal “não deve ter sido utilizado para nenhum tipo de trabalho físico e nunca ter sido colocado sob jugo”.

Desde os tempos de Moisés, profeta e líder religioso das três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islã) – que segundo estimativas judaicas teria vivido há 3,5 mil anos atrás –, apenas nove animais vermelhos foram sacrificados. As razões de seu sacrifício (isto é, o motivo por trás da tradição) seriam conhecidas apenas por Moisés, algo reservado à categoria das coisas incompreensíveis por seu caráter divino.

Apesar de desconhecidas as razões do sacrifício, a necessidade do animal segue uma lógica própria: suas cinzas, segundo a crença judaica, são a única coisa capaz de purificar o corpo e alma de todos aqueles que de alguma forma estarão envolvidos na construção do Terceiro Templo. Quis a História que o nosso tempo fosse palco dos preparativos para o décimo sacrifício preparativos já em estado avançado. Segundo a profecia judaica, uma vez sacrificada a novilha vermelha, o caminho para a construção do local sagrado no Monte do Templo, na Cidade Velha de Jerusalém, está livre; mesmo local onde estiveram o primeiro e segundo templos milhares de anos atrás.

Uma novilha vermelha em Jalalabad, Afeganistão. (Foto: PeretzPartensky / Flickr)

Mas o Monte do Templo não é um local vazio. Hoje o monte abriga a Mesquita de Al-Aqsa e o santuário da Cúpula da Rocha, dois dos locais mais sagrados do Islã e diretamente relacionados com o conflito atual – basta lembrar que a operação iniciada no 7 de outubro chama-se Tempestade Al-Aqsa, assim batizada pelas tensões recentes em torno da mesquita. O monte abriga também o Muro das Lamentações, local sagrado para os judeus, a única ruína do Segundo Templo que resistiu ao tempo e por isso tão importante para o povo judeu.

Com a destruição do Segundo Templo depois da grande revolta judaica no ano 70 d.C. e a subsequente expulsão do povo judeu de Jerusalém, o local da fundação sagrada manteve-se sem um uso comum ou religioso que se tenha notícia até 637, quando o exército muçulmano liderado por Umar ibn al Katthab conquistou Jerusalém, reformou o local e o transformou novamente em um espaço de culto, dessa vez muçulmano. Foi construída sobre tais fundações a Mesquita Al-Aqsa, mais de quinhentos anos depois da destruição do Segundo Templo judeu. Inicialmente a estrutura da mesquita manteve-se de pé de forma rudimentar: feita de madeira, era capaz apenas de abrigar cerca de três mil pessoas.

O complemento e adição estrutural e arquitetônica à mesquita só ocorreu cerca de 50 anos depois, em 690, com o califa Abd al Malik da dinastia Omíada, que reconstruiu o local sagrado para os muçulmanos e, dentro do mesmo espaço, ergueu a Cúpula da Rocha, impressionante estrutura arquitetônica que muitos, ainda hoje, confundem com a própria Mesquita. A construção se encontra acima da rocha em que alguns muçulmanos acreditam que o Profeta Maomé ascendeu ao Céu. Religiosamente falando, este complemento arquitetônico não deve ser  considerado uma casa separada de culto, somente um complemento ao prédio sagrado original. 

Religião e tecnologia na preparação para o décimo sacrifício

Desde sua fundação, em 1987, o Instituto do Templo, uma organização dedicada à preparação da construção do Terceiro Templo em Jerusalém, tem conduzido – junto a outros preparativos – as buscas pela vaca vermelha, cujo sacrifício seria o único capaz de purificar os responsáveis pela construção. Por duas vezes acreditaram tê-la encontrado: em 1997 e em 2002, mas ambas as novilhas foram consideradas inadequadas para o ritual e abandonadas pelos religiosos, até que em 2015 lançaram um projeto ambicioso: por meio de um financiamento coletivo que levantou milhares de dólares, resolveram criar, a partir da manipulação em laboratório, “a primeira novilha vermelha perfeita autêntica e kosher em 2000 anos na Terra de Israel.” 

A manipulação genética foi feita a partir da Red Angus, uma raça bovina de pelagem marrom-avermelhada, o que aparentemente deu certo. Em 2018, depois de décadas de busca infrutífera, o Instituto do Templo anunciou em seu canal no YouTube o nascimento da nova candidata a partir da manipulação humana em laboratório. Nas palavras do instituto: “Uma semana após seu nascimento, a novilha passou por um extenso exame por especialistas rabínicos, que determinaram que a novilha é atualmente uma candidata viável (…) Os especialistas rabínicos que conduziram o exame enfatizam que a novilha, embora atualmente tenha as qualificações necessárias, poderia, a qualquer momento no futuro, ser desqualificada por causas naturais e, portanto, a novilha será periodicamente reexaminada.”

Entrada do Instituto do Templo, em Jerusalém. (Foto: פארוק / Wikicommons)

Dois anos atrás, em 2022, outras cinco candidatas surgiram quando cristãos protestantes do Texas, nos Estados Unidos, abraçaram para si a missão de auxiliar na busca pelo animal sagrado. Na cidade de Glen Rose, um texano chamado Byron Stinson,  ligado ao Boneh Israel – uma organização dedicada, entre outras coisas, à busca pelo animal bíblico – declarou que sentiu que era “seu dever” procurar pelos animais “que atendessem aos requisitos da novilha vermelha” e, se pudesse, “tentar despachá-las a Israel”. Os cinco animais encontrados foram transportados em setembro de 2022 – em um esforço que custou cerca de 500 mil dólares. Em Israel, passaram por uma segunda avaliação e foram considerados ritualmente puros para o sacrifício. 

Proprietário de um terreno com vista para o Monte do Templo e considerado perfeito para o ritual, o rabino Yitshak Mamo ficou responsável por coordenar o translado dos animais para o território palestino da Cisjordânia ocupada por Israel. Lá as novilhas estão sendo cuidadas sob extremo sigilo e proteção, além de um permanente reexame de suas condições, que não podem sofrer nenhum tipo de mácula – como dito por uma entrevistada, “as vacas não podem sequer ter alguém se apoiando nelas. Você pode torná-las impuras apenas por colocar sua jaqueta nas costas delas.”

Segundo palavras do rabino responsável pelos animais, uma cerimônia (que não se sabe tratar-se do sacrifício ou não) foi marcada para a Páscoa desse ano e algumas dezenas de israelenses reuniram-se numa conferência para discutir a importância religiosa das vacas, ver os animais e planejar seus próximos passos, embora esse tipo de reunião seja minimizada como algo “não oficial” e próprio de um número restrito de extremistas religiosos.

Se acreditarmos nas projeções, há chances de que o ritual de sacrifício que inaugura a profecia judaica da construção do Terceiro Templo seja realizado em breve e a “vaca vermelha” seja abatida. Ainda segundo a escatologia judaica, a construção do templo provocaria a vinda de seu Messias e o “fim do mundo” como se conhece. Segundo os envolvidos no projeto, há um longo caminho a ser percorrido entre o abate de uma novilha vermelha e a construção do Terceiro Templo, incluindo passos institucionais, como a necessidade de aprovação do plano de construção na Knesset, o parlamento de Israel.

De toda forma, há de se salientar que embora alguns grupos acreditem e defendam que não é necessário destruir a Mesquita de Al-Aqsa, e que é possível construir um espaço religioso judeu dentro do complexo religioso muçulmano que lá existe, o entendimento hegemônico entre os que desejam a construção do Terceiro Templo é de que o soerguimento do local sagrado judeu previsto nas escrituras só é possível com a destruição da mesquita, no exato mesmo lugar onde ela está hoje.

Toda essa longa exposição nos leva de volta ao início: não se trata aqui de elevar a religião ao primeiro plano das questões da guerra atual ou do conflito alçado a um novo patamar a partir da criação de Israel, mas de entender como o aspecto religioso se manifesta neste que é um dos principais pontos de tensão do mundo e que, dada a situação mesmo nos territórios onde a guerra atual teoricamente não chega, pode ver eclodir uma espécie de “guerra religiosa” de proporções indefinidas – se não entre Estados, seguramente entre fiéis. E no ar infestado de pólvora de um mundo em guerra, qualquer centelha é perigosa.

A Mesquita de Al-Aqsa, um conturbado palco político

O Domo da Rocha e a Mesquita Al-Aqsa recebem milhões de peregrinos islâmicos todos os anos, mesmo tendo seu acesso dificultado pelas Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). A ameaça da guerra religiosa, ainda que distante, nos faz imaginar ao que levaria uma possível derrubada do prédio sagrado do Islã e sua substituição por um templo judaico. Este cálculo e suas projeções, menos ardentes que o debate religioso, devem ser feitos considerando uma série de variáveis já postas. A primeira delas nos leva a um remate histórico: quais são as restrições de ordem política que impedem os judeus de realizar seus ritos religiosos dentro do complexo islâmico?

Hoje em dia, a ocupação israelense reivindica soberania sobre toda Jerusalém, dividida em Jerusalém Ocidental e Jerusalém Oriental. Essa divisão remete a 1948 e à guerra árabe-israelense causada pelo Plano de Partilha da ONU do território palestino. O povo palestino dá ao episódio o nome de Al-Nakba, “A catástrofe”. Nele, centenas de milhares de famílias – aproximadamente 70% dos residentes locais – foram forçadas a deixar suas casas por conta da ocupação israelense. Segundo a partilha da ONU, Jerusalém Ocidental foi destinada à Israel, que controla essa porção da cidade até hoje.

O lado oriental de Jerusalém – ainda segundo a partilha da ONU – passou ao controle da Jordânia e foi administrado pelo país até 1967, quando Israel declarou guerra à Síria, Egito, Iraque e Jordânia (apoiados pelo Kuwait, Arábia Saudita, Argélia e Sudão). Na guerra que ficou conhecida como Guerra dos Seis Dias, Israel anexou todo o lado Oriental de Jerusalém e também a Cisjordânia, apesar da condenação internacional – a anexação total da cidade só seria concluída em 1980 com a Lei de Jerusalém (que também declarou a cidade como capital de Israel, ainda que não reconhecida pela maioria do mundo, que mantém as embaixadas em Tel Aviv – com a exceção relevante dos Estados Unidos, que no governo Trump transferiu sua embaixada para Jerusalém).

É justamente no lado oriental da cidade, anexado na Guerra dos Seis Dias, que fica a Cidade Velha, onde por sua vez fica a Esplanada das Mesquitas (pelos muçulmanos chamada de Nobre Santuário e pelos judeus de Monte do Templo), o local  da Mesquita de Al-Aqsa.

Uma das entradas da Mesquita de Al-Aqsa, na Cidade Velha de Jerusalém. (Foto: Bashar Nayfeh / Wikicommons)

Apesar do controle da região anexada a partir de 1967, Israel optou por deixar a administração e manutenção da mesquita na mão dos muçulmanos, dado o risco político e militar que uma tomada do local sagrado acarretaria frente à crescente organização de grupos palestinos armados. 

Desde então, a divisão da gestão do complexo de Al-Aqsa se estabeleceu da seguinte forma: Israel assumiu a responsabilidade pela segurança nos arredores do complexo religioso, enquanto a segurança e a administração dentro do complexo seriam geridas pelo Waqf da Jordânia. Na lei islâmica, um waqf é uma espécie de doação inalienávelnormalmente um edifício, terreno ou outra propriedade dedicada a fins religiosos muçulmanos. O complexo da Mesquita Al-Aqsa tem sido governado sob tal sigla, em Jerusalém, desde a reconquista muçulmana do local em 1187. Quando o domínio muçulmano de Jerusalém estabelecido em 637 cai em 1099, na Primeira Cruzada, os muçulmanos só voltariam a ocupar a cidade quase cem anos depois, em 1187, quando Saladino, líder militar curdo e posterior sultão do Egito e da Síria conquistou a cidade na Batalha de Hatim.

Tendo assumido o controle do território ao redor do complexo religioso, Israel passou a facilitar a entrada de visitantes não-muçulmanos em coordenação com o Waqf jordaniano, ainda que cumprindo as regras da Jordânia de proibir a entrada grupos judeus radicais que poderiam causar algum tipo de distúrbio mais grave, uma vez que, mesmo com pontuais liberações, a oração de não-muçulmanos na mesquita é proibida há séculos.

Particularmente a partir da década de 1980 as Forças de Defesa de Israel passaram a estreitar o controle sobre o local, restringindo a circulação também de cidadãos palestinos e realizando operações de forma violenta dentro do complexoo que em mais de uma ocasião gerou conflitos armados no local sagrado –, facilitando, de forma direta ou indireta, a entrada de grupos judeus radicais que planejam a construção do Terceiro Templo no local.

Neste período dos anos 80, por exemplo, o grupo da extrema-direita religiosa Jewish Underground (Resistência Judaica) – considerado um grupo terrorista dentro de Israel –, entre vários ataques, planejou explodir o Domo da Rocha no complexo da mesquita como forma de “despertar” os judeus de Israel e preparar as bases para a criação do Terceiro Templo. Entre as propostas de realização do plano estava atingir o prédio com um avião cheio de explosivos – e um dos membros do grupo era um especialista em explosivos do exército israelense. 

Em outubro de 1990, um massacre ocorreu dentro do complexo quando o grupo fundamentalista judeu Temple Mount Faithful (Fiéis do Monte do Templo) tentou entrar de forçadamente no local após a proibição da polícia israelense. A intenção era colocar uma pedra angular no monte, a primeira da construção do Terceiro Templo. Quando líderes religiosos palestinos convocaram a proteção do local, ocorreu o episódio que ficou conhecido como “massacre de Al-Aqsa”: 17 palestinos foram mortos e outros 150 foram feridos pelas forças de segurança israelenses.

As tensões chegaram ao auge no ano 2000, quando Ariel Sharonentão líder da oposição de Israel e ex-comandante do Exércitoentrou no complexo junto a mil oficiais militares, num verdadeiro desfile de demonstração de força e poder. Esse episódio foi o pivô para o desencadeamento da Segunda Intifada, também conhecida como Intifada Al-Aqsa, uma grande revolta da população palestina contra a ocupação israelense.

Entre os acontecimentos recentes, em outubro de 2023 dezenas de colonos israelenses forçaram a entrada no complexo da Mesquita Al-Aqsa para marcar o quinto dia do Sucot, a Festa das Tendas, quando se relembra o êxodo do povo hebreu durante seus 40 anos no deserto após a saída do Egito. Os apelos feitos por grupos judeus ultranacionalistas foram atendidos, causando a proibição de palestinos no local, o fechamento do comércio e confrontos esparsos.

Em resumo: está em curso hoje – e de maneira acentuadauma tentativa de transformar o caráter religioso do complexo muçulmano. O principal representante desse projeto no atual governo israelense é Itamar Ben-Gvir, um antigo seguidor de Meir Kahane, ex-deputado da Knesset. Fundador de uma organização paramilitar judaica nos Estados Unidos (a Liga de Defesa Judaica), a vida e atuação de Kahane deu origem ao kahanismo, um movimento político de extrema-direita cujo partido em Israel, o Kach, foi banido em 1994 e designado como um grupo terrorista pelos Estados Unidos em 2004 (o que foi revertido em 2022 por Donald Trump). Em outro momento nos aprofundaremos melhor no kahanismo, essa corrente ideológica que ganha cada vez mais força em Israel sob outras siglas e que é corretamente reconhecida (inclusive por organizações israelenses) como o fascismo judaico. Como ministro da Segurança Nacional de Israel, um dos primeiros atos de Ben-Gvir foi entrar na mesquita de Al-Aqsa cercado de forças israelenses, numa provocação deliberadamente pensada para elevar as tensões e a perspectiva de outra revolta palestina. 

Hoje mais de vinte grupos judaicos atuam no Monte do Templo com objetivos diferentes: alguns incentivam suas práticas religiosas e a tomada do local à força, outros promovem turismo e acesso “educacional e informativo” acerca do complexo, financiando e organizando viagens para jovens judeus, etc.

Entre os grupos em atuação, um dos mais antigos é justamente o Fiéis do Monte do Templo, fundado em 1967 e responsável pelo mencionado massacre na Mesquita de Al-Aqsa em 1990. O grupo não dissimula, e proclama publicamente que o objetivo de suas viagens é “exigir que o governo de Israel abra o Monte do Templo ao culto judaico completo” e preparar o estabelecimento do Terceiro Templo.

Outro agente importante dentro das tentativas de retomar o local sagrado ao controle judeu é o Beyadenu (também conhecido como Retornando ao Monte do Templo). O grupo afirma que, embora tenha “centenas de apoiadores”, deve alcançar “milhares e dezenas de milhares de pessoas para realmente trazer o Monte do Templo de volta ao controle judeu” e encabeça um lobby no parlamento israelense para acelerar os processos da construção do Terceiro Templo, tendo o ministro Ben-Gvir como um de seus membros.

O Instituto do Templo, organização que agora se responsabiliza pelo sacrifício da novilha vermelha, também atua na região. Boruch Fishman, um dos membros que conduz os preparativos para o sacrifício, chegou a pontuar que um dos maiores empecilhos políticos do projeto do Terceiro Templo era justamente o Waqf da Jordânia que administra o local. O religioso de certa forma foi revelador ao dizer que nem todos os judeus poderiam adentrar no local, pois isso significaria “um banho de sangue”. Em resposta, o porta-voz do Waqf, Firas al-Debs, disse que a organização “sempre enfatiza, em suas declarações, a opinião decisiva de que a Mesquita de Al-Aqsa é apenas para muçulmanos, e que não aceita parceria ou divisão”.

Teologia e política na reação islâmica

Quando cruzam-se profecias religiosas e confrontos políticos maiores, as coincidências passam a ser também relevantes. E neste ano de tensões agravadas pela guerra em Gaza, os calendários muçulmano e judaico convergiram pela segunda vez seguida, fazendo com que o mês sagrado muçulmano do Ramadã e o festival judaico da Páscoa coincidissem. A convergência levou,claro, a um tensionamento religioso ainda maior.

Mas existem diversas formaspolíticas, militares, religiosasde mediação das tensões. Quando uma escatologia religiosa é definidora para um dos agentes do conflito, do outro lado os textos sagrados também são consultados para a tomada de decisões mais profundas. E isso tem sido relevante para que a comunidade muçulmana de todos os paísesespecialmente as dos países árabesnão aja de forma precipitada.

Se para os judeus o mundo chegará ao fim com a vinda do seu Messias, o que acontecerá depois da construção do Terceiro Temploe por isso a insistência de grupos fundamentalistas judeus nessa construção o mais rápido possível, uma das crenças fundamentais da teologia islâmica é a de que o mundo chegará ao fim com a sucessiva ressurreição e julgamento individual de cada pessoa. Mas um ponto central é que, para os muçulmanos, isso não acontecerá em um tempo totalmente indeterminado, ou seja, haverá sinais e não se pode, por conta da clareza da palavra de Deus, adiantar ou retardar nenhum destes acontecimentosassim como também é inadequado cunhar uma data exata para o fim dos tempos.

Segundo alguns juristas islâmicos, uma parcela destes “eventos menores” já pode estar em curso, devendo ser observados cuidadosamente. Uma eventual chegada do Messias judeu é descrita nos textos islâmicos, e isso de alguma forma influencia também a política dos países islâmicos, de acordo com o maior ou menor grau de influência religiosa nos assuntos do Estado.

Essa escatologia relata que diante do aprofundamento do mundo em pecado, onde a natureza material das coisas substituí a pureza espiritual das pessoas, surgirá a figura do Masih al-Dajjal ou o “Falso Messias e, dentro dos hadiths da religião islâmica – os relatos dos companheiros do profeta Maomé –, é apontado que a figura do falso messias “[emergirá] da direção do mar da Síria ou da direção do mar do Iêmen”. 

A localização exata de seu surgimento difere diante dos múltiplos relatos. O primeiro califa do mundo islâmico, contemporâneo e companheiro próximo do profeta Maomé, Abu Bakr al-Siddiq, relata palavras de Maomé: “o Dajjal emergirá de uma terra no leste chamada Khurasan”região histórica da Pérsia, que englobava partes dos atuais Irã, Afeganistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão.

Ainda segundo a teologia islâmica, a primeira menção aos judeus é feita por Anas, outro companheiro de Maomé, que relatou que o profeta islâmico afirmou que “o Dajjal surgirá dentre os judeus de Isfahan, será seguido por setenta mil judeus vestindo coroas”. Os escritos religiosos relatam que o Dajjal será um homem caolho, cego do olho direito e, no meio de sua testa, haverá um sinal escrito “incrédulo”, visível somente pelos que creem. De acordo com os relatos, o falso messias terá uma oratória impressionante, anunciará que vem em paz mas, quando for seguido por muitas pessoas, passará a dizer que é um Profeta e, por fim, irá se declarar Deus encarnado, exigindo adoração, com um trono sendo construído a ele. Outras características religiosas lhe são atribuídas, como a possibilidade de performar milagres, curar doentes e ressuscitar os mortos.

Mas o que, na profecia, faz com que o mundo muçulmano advogue pela máxima de seguir os hadiths islâmicos, além da própria crença? Qual ponto da profecia islâmica diverge da crença e profecias judaicas?

Os muçulmanos acreditam que somente Deus sabe quando acontecerá a vinda do Dajjal. Logo, há pouco motivo para preocupação, visto que nada que envolve o ritual das novilhas fora relatado na religião pregada por Maomé. Pelo raciocínio islâmico, se a profecia é judaica, na qual acreditem somente os judeus, é encorajado que não se faça propaganda desnecessária acerca da profecia, que diverge em vários aspectos da teologia islâmica. Além disso, para os muçulmanos, os agentes sagrados são outros, fato que surpreende àqueles poucos familiarizados com a religião.

Na escatologia islâmica, Jesus voltará acompanhado de um homem conhecido como Mahdi, considerado o redentor do islã. Dentro da tradição islâmica não há consenso sobre sua vinda, mas muitos advogam que ele surgiria antes do falso messias e que governaria, após uma série de conflitos, diversos territórios e por vários anosno terreno profético, isso por si só já descartaria a profecia messiânica dos judeus, visto que o Mahdi ainda não apareceu publicamente e sequer governou.

De acordo com múltiplos hadiths, Jesus voltará em Damasco e os crentes o reconhecerão como o redentor justo dos povos, pois também já terão identificado o Dajjal anteriormente. Ele caminhará até Jerusalém e se encontrará com o Mahdi. Um confronto violento acontecerá, de forma final, onde hoje está a cidade de Tel Aviv, em Israel. Jesus irá vencer o Falso Messias, mostrando ao povo seu sangue e descartando a possibilidade de sua divindade. Depois, terão início os episódios que culminam no fim dos tempos, segundo a escatologia islâmica.

Todo esse contexto religioso é fundamental para entender a reação mundial islâmica a uma eventual tentativa de destruição ou profanação da Mesquita de Al-Aqsa para a construção de um Terceiro Templo judeu. O escopo político e a reação, fora do campo meramente religioso e profético, se materializa na disposição de defesa (inclusive pela violência), pelo mundo islâmico, do seu local sagrado – ameaçado pelo risco de que a profecia religiosa judaica seja usada por Israel como justificativa para um ataque ao complexo.

Desenvolvimentos anteriores ao atual confronto entre Israel e Hamas já haviam repercutido no mundo islâmico, entre eles a realização de uma série de escavações arqueológicas empreendidas por Israel sob o complexo de Al-Aqsa, com o objetivo de encontrar escombros sagrados do Segundo Templo judeu (do qual resta apenas o Muro das Lamentações). A acusação foi desmentida por Israel, que por sua vez acusou os palestinos de tentarem “destruir a herança histórica do local”. Mas o caso mais emblemático dos tais “desenvolvimentos anteriores” foi a transformação, por parte de Israel, de metade de uma mesquita na cidade de Hebron, na Cisjordânia, em uma sinagoga judaica. Trata-se da Mesquita Ibrahimi, onde 22 anos atrás um colono israelense assassinou 29 palestinos.

Em resumo, qualquer episódio de ataque à mesquita, de caráter puramente religioso ou que use da religião como justificativa, significaria escalar um conflito que ninguém poderia impedir. Seja o sacrifício da novilha vermelha, seja o sacrifício de outros animais na mesquita, convocado anteriormente por rabinos em carta conjunta para marcar o início da Páscoa judaica do ano passado e novamente esse ano: qualquer ação pode se converter no golpe que abrirá a caixa de Pandora. E uma vez aberta essa caixa, não se sabe o que dela sairá – já que as paixões despertadas pelas crenças religiosas são um importante fator de mobilização ou de justificativa para um ou outro fim, quando a política se impõe em meio a tantas visões de mundo.

* * *

É nesse labirinto muitas vezes nebuloso e permanentemente confuso – com tantos caminhos quanto diferentes interpretações de religiões, vertentes e escrituras sagradas – que podem se perder tanto os que não conhecem essas minúcias quanto aqueles que, de outro lado, alçam a dimensão religiosa ao primeiro plano dos acontecimentos, esquecendo que, como costumava dizer um grande brasileiro, tudo é política

Ao puxar o fio de lã rumo à saída desse labirinto, percorre-se um caminho rumo ao passado, rumo a um tempo em que grandes potências uma e outra vez manobraram com diferenças étnicas, religiosas e políticas dos povos que ali viviam em nome dos seus interesses. Um tempo em que novas fronteiras foram desenhadas no mapa, porções de terra foram entregues a um ou outro grande país e acordos foram firmados e rasgados num grande jogo de partilha do mundo, jogo sempre atualizado à medida em que atualizavam-se as potências capazes de disputar uma parcela cada vez maior para si. 

E justamente quando o fio nos leva a esse passado de novas partilhas, quando percebe-se que nada é sempre da mesma forma, que revezam-se os senhores que lucram e se aproveitam das guerras entre iguais, nesse mesmo momento somos lançados de uma só vez de volta ao tempo presente para perceber, agora atados pelo mesmo fio de lã que parecia nos guiar, que nada é passado e tudo é presente – que o mundo está outra vez sendo dividido e os barões ainda jogam com a vida e as crenças dos povos.

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