Há poucos dias fomos presenteados com uma carta do comandante da Marinha à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. O almirante em questão, Marcos Sampaio Olsen, escrevia em protesto. Às vésperas dos 114 anos da Revolta da Chibata, o nome do líder que emprestou seu rosto à nossa mais famosa rebelião de marinheiros está prestes a ser escrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, honraria no momento debatida na Câmara dos Deputados.
João Cândido foi um homem simples. Nascido numa fazenda serrana do sudeste gaúcho, alistou-se aos 14 anos na Marinha do Brasil, a mais antiga e aristocrática das forças, cuja impecável alvura do uniforme refletia um outro branco, o branco de uma oficialidade que reivindicava o seu direito natural de castigar fisicamente os subordinados, cuja pele negra contrastava violentamente com a cor de seus trajes. No topo, homens de família cujos sobrenomes de pompa ou indicações partidárias valiam mais que a coragem e a maestria no mar. Na base, o que de mais preterido havia no Brasil: homens negros e pobres, muitos sem alternativa, muitas vezes capturados pela polícia e obrigados a servir. Entre esses, um sem-número de ex-escravizados vivendo um país recém saído da escravidão, que, do cativeiro, lançou-os na miséria das ruas.
Uma vez marinheiro, João Cândido viajou o mundo, conheceu povos e tomou nota de tudo. Numa dessas viagens soube do épico ocorrido no encouraçado Potemkin, em 1905, quando os tripulantes se revoltaram e tomaram o controle do navio depois que os oficiais tentaram obrigá-los a comer carne podre e infestada de larvas. Tendo ameaçado fuzilar por insubordinação qualquer um que se recusasse a comer, os oficiais foram eles próprios acertar suas contas com Deus quando os marujos tomaram o navio de guerra russo.
A vida do marinheiro brasileiro é história e lenda – uma história que a Marinha não supera e uma lenda que corrói os que invejam sua estatura.
Ainda que os castigos físicos na Marinha tivessem sido abolidos em 1889 com a proclamação da República, seu uso ainda era recorrente em 1910, ano em que João Cândido torna-se quem é. O marcador racial da força naval salta aos olhos: o contingente de marinheiros da época era composto em quase 90% por negros e mulatos, percentual que mais que se invertia quando analisado o perfil racial da oficialidade. Mais de vinte anos depois de abolida a escravidão, na Marinha brasileira os negros ainda eram chicoteados pelos seus oficiais – brancos apenas por coincidência, é claro.
E então a conspiração. Para acabar com os castigos físicos e evitar que seus companheiros tivessem as costas retalhadas pelo corte da chibata, planos foram traçados e vários caminhos foram considerados, inclusive o pacífico. Que jamais se esqueça que João Cândido chegou a ir em pessoa ao gabinete do presidente Nilo Peçanha, na presença do ministro da Marinha, solicitar uma providência pelo fim dos castigos físicos, o que não surtiu nenhum efeito. E quando as palavras calam, as armas podem falar.
Em 1910, a gota d’água: na presença de toda a tripulação do encouraçado Minas Gerais, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas, aplicadas uma a uma até o fim da contagem, mesmo quando Marcelino desmaiou no meio do castigo. O episódio adiantou a revolta já programada. Na noite do mesmo dia, os marujos tomaram o controle do encouraçado, se apossaram das armas, dominaram os oficiais e tomaram os demais navios na Baía da Guanabara. João Cândido foi nomeado pelos revoltosos como o comandante-em-chefe de toda a esquadra revolucionária, assim chamada pelos marinheiros. Do dia pra noite, os dois mais potentes encouraçados do mundo, o Minas Gerais e o São Paulo, estavam sob o comando do negro João Cândido. Nascia o Almirante Negro.
Com os canhões da esquadra apontados para o Rio de Janeiro (então capital federal) os revoltosos escreveram ao presidente Hermes da Fonseca: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira”. Acuado por alguns poucos dias na mira de canhões, o governo assumiu o compromisso de acabar com o uso da chibata na Marinha e de conceder anistia aos revoltosos, mas assim que as armas baixaram a anistia foi quebrada e vários marinheiros acabaram expulsos da força naval ou presos.
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Expulso da Marinha mas para sempre ligado ao mar, João Cândido passou a trabalhar como estivador e vendedor de peixes no Rio de Janeiro. Uma lenda vivendo uma vida de privações, nunca deixou de ser perseguido e difamado pela Marinha, que apagou de seus arquivos qualquer menção ao homem que venceu-a em seu próprio domínio, o mar.
Nem mesmo a sua morte em 1969, aos 89 anos, garantiu-lhe tranquilidade. É assim com os grandes da história: quando mortos, sua memória assombra para sempre os herdeiros daqueles que os perseguiram no passado – um verdadeiro atestado de idoneidade moral.
É disso que se trata o chilique do atual comandante da Marinha. Ao escrever aos deputados referindo-se a João Cândido e seus companheiros como “abjetos marinheiros que, fendendo hierarquia e disciplina, utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação” e à revolta como uma busca por “vantagens corporativistas e ilegítimas”, o almirante Olsen só manifesta o que há pelo menos um século é sabido por todos, inclusive pelo próprio João Cândido.
Em entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som em 1969, em voz enrouquecida, como que sabendo que no ano seguinte descansaria da vida, o Almirante Negro resumiu a origem do ressentimento para com sua figura: “muitos oficiais da Marinha não conseguiam comandar o Minas Gerais e eu tive o sobejo poder de dominá-lo, fazer o que eles jamais fariam, na baía do Rio de Janeiro. Quando eu recebi o ofício, o escrito, que a esquadra seria atacada pelo governo eu não dei resposta. Preparei meus navios, me fiz ao mar e de lá passei um radiograma para o governo avisando que os navios estavam a trinta milhas da costa do Rio de Janeiro esperando o ataque do governo, que lá naquela altura eles brincavam melhor. Esperei lá vinte e quatro horas e não apareceu ninguém”.
Mas o passado anda sempre de mãos dadas com o presente, ainda que muitos não o vejam. E quando não encarado de frente, volta a aparecer uma e outra vez, sob variadas formas. É por isso que além de protestar contra o passado, o atual comandante da Marinha invoca o presente em uma advertência: “Aponto, por conseguinte, que incluir, no Livro de Heróis da Pátria, João Cândido Felisberto ou qualquer outro participante daquela deplorável página da história nacional, quando o patrimônio público foi destruído e o sangue de brasileiros inocentes derramado, seria o mesmo que transmitir à sociedade e, em particular, aos militares de hoje a mensagem de que é lícito recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe”.
Aqui está a parte mais importante do recado. Mais que um revelador incômodo com a homenagem ao marinheiro que venceu a Marinha, a carta do almirante é também uma ameaça. “Homenagear os que nos venceram em nosso próprio terreno nos afronta, por isso também nós podemos afrontá-los”, é o que diz o almirante na carta aos deputados. Outra vez a lição de Walter Benjamin se mostra fundamental. João Cândido é uma daquelas centelhas de esperança do nosso passado que ainda contrariam os mesmos chefes de cem anos atrás, tamanho o seu brilho. Cabe a nós despertá-las. Diz a música: o risco que corre o pau corre o machado, não há o que temer.
Mais um entre os incontáveis burocratas de farda que deixaram sua assinatura nos arquivos de alguma prateleira empoeirada, do almirante Olsen ninguém se lembrará. O Almirante Negro, esse sim, já está em todos os livros e músicas, é lenda, passou à História. E quando o acerto de contas finalmente chegar, receberá ainda a maior das homenagens, a única capaz de fazer jus ao seu nome. Neste dia, João Cândido será declarado Patrono da Marinha do Brasil.
(*) Atualização às 08:42 de 2 de maio de 2024: a versão anterior dizia que Marcelino Rodrigues de Menezes havia sido chibatado 250 vezes, mesmo após ter morrido. Na verdade, o suplício continuou após Menezes ter desmaiado.