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‘42 | Caixas e cartas [Ep.5]

No quinto capítulo da série de ficção ’42, Alex revisita a história da crise e a trajetória de militância de seus pais
João Camargo e Nuno Saraiva
'42
(Ilustração: Nuno Saraiva)
ARevista Opera tem o prazer de apresentar ao público brasileiro a série portuguesa de ficção científica ‘42, escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva.

Leia os capítulos anteriores: [Prólogo] | [Ep.1]  | [Ep.2] | [Ep.3] | [Ep.4] |


Enquanto tentava organizar as próximas entrevistas, reabri algumas das caixas dos meus pais. Depois de me informar sobre o contexto mundial, queria olhar para a Europa e Portugal e entender o que aconteceu aqui. Houve uma sucessão de crises e grandes transformações. Só me lembro de algumas das coisas até o ano das grandes ondas de calor, daí para a frente, quando já era adolescente, me lembro mais.

Os papéis tinham muito pó, o que me fez ter um forte ataque de tosse. Isso me lembrou de como passei a infância a tossir, com asma e alergias que o médico dizia serem por causa dos incêndios florestais. As temperaturas altas e os meses consecutivos de incêndios florestais na Europa tiveram um forte impacto na saúde, sobretudo nas pessoas mais novas e mais velhas. E nas crianças que nasceram nos piores momentos, como em 2026, 2029 e 2034. 

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Difícil de respirar – doenças respiratórias explodem na segunda metade dos anos 20

As doenças respiratórias tornaram-se a principal causa de morte dos últimos três anos, com mais de 80 milhões de mortes registradas, 5 milhões delas na Europa. As ondas de calor e os incêndios florestais, e em particular nos anos em que estes dois fatores se combinam, têm produzido picos de mortalidade. As crianças em gestação e as que nasceram durante os verões de ondas de calor mortais desenvolveram a agora famosa “Síndrome do Bushfire Baby”, primeiro registrada na Austrália em 2019 e 2020, com elevada mortalidade infantil associada. A poluição do ar devido à queima de combustíveis fósseis agrava a realidade para as centenas de milhões de pessoas que vivem agora com doenças respiratórias crônicas, forçadas a manter-se em ambientes controlados e dependentes de oxigênio para circularem fora de casa. Várias cidades restringiram e até proibiram a circulação por automóveis para minimizar o impacto da poluição nesta crescente camada da sociedade. A Organização Mundial de Saúde recomenda à população das grandes metrópoles a utilização de máscaras de proteção de forma permanente.

 

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Médicos e enfermeiros em greve mundial exigem recrutamento acelerado de profissionais de Saúde 

A Federação Internacional de Trabalhadores em Saúde (IHWF), que reúne mais de 2800 sindicatos e associações profissionais de todos os continentes, está hoje em protesto. Nas palavras da presidente, a enfermeira filipina Lidy Menendez, “Há um abismo na Saúde. Queremos cuidar das pessoas mas isso está se tornando impossível. Somos 60 milhões de profissionais e precisamos ser mais de 150 milhões nos próximos anos. Os nossos sistemas de Saúde não foram construídos para vivermos numa zona de conflito permanente – temos hoje centenas de milhões de pessoas afetadas por tempestades, cheias, secas, incêndios, malnutridas e consumindo água de má qualidade, além de novas zonas de distribuição de doenças tropicais. Nós, pessoal de Saúde, também estamos ficando mais doentes. Temos milhões de pessoas fugindo em busca de abrigo. Temos de cuidar, de salvar, de sarar estas pessoas.”. A IHWF exige dos governos de todo o mundo um sistema de formação rápida que triplique o número de médicos, enfermeiros, paramédicos e pessoal auxiliar de Saúde nos próximos quatro anos.


Abri uma janela e pouco a pouco a tosse passou. Agora há redes em muitas janelas, e redes mosquiteiras para as camas por causa dos mosquitos da malária e Zika. Liguei o toca-discos da AKAI e pus pra tocar um velho disco do meu pai (fiquei com eles todos), do Fela Kuti “Noise for Vender Mouth”. O velho aparelho tem um som incrível e é mais um eletrodoméstico recuperado. Há uma década, com a interrupção do transporte em grande escala de eletrodomésticos e com a interdição de fabricação de produtos que estragavam de propósito, formaram-se escolas para  ensinar como consertar todo tipo de aparelhos elétricos e eletrodomésticos. Agora são muito procuradas. São as “Academias da Reparação”. Também as lojas de conserto apareceram como cogumelos. Consertam tudo: máquinas de cozinha, de escrever, de costura, aparelhos de som, televisões, vídeos, motos e até carros elétricos. Segundo me dizia o meu pai, agora há coisas que não se viam há décadas. Com a redução do acesso à internet e com o regresso de velhos discos em vinil e cassetes, muita música antiga voltou.

Infelizmente, meu pai não era uma pessoa muito organizada. Encontrei vários cadernos de cores diversas, agendas de reuniões, e muitos papéis avulsos pastas. Uma pasta plástica “Ano 1.8” chamou-me a atenção. Abri-a e espalharam-se pelo chão vários papéis. O primeiro que peguei era um panfleto em papel grosso e brilhante, daquele que já quase não se vê. O meu pai tinha tomado notas em vários dos documentos, às vezes comentários divertidos ou irônicos, riscos e outros, anotados a caneta vermelha.


 (Ilustração: Nuno Saraiva)

Comissariado de Calor da Cidade de Lisboa

Na sequência da formação da Agência Europeia do Calor, a primeira Comissária de Calor de Lisboa, Elvira Barbosa, anuncia as seguintes medidas, que entrarão em vigor nos próximos três meses, com as devidas adaptações à legislação em vigor e articulando-se com a nova legislação de urgência climática.

– Todos os transportes públicos são 100% gratuitos para todos os usuários na área metropolitana de Lisboa. As redes de ônibus, bondes, metrô e trens serão ampliadas em até quatro vezes no período máximo de um ano – com metas intermédias trimestrais a ser apresentadas no período máximo de dois meses. ATRASADO

– Os veículos a combustão interna estão interditados de entrar na cidade entre as 06h00 e as 18h. Está interditada a circulação de todos os veículos motorizados privados – à combustão interna, elétricos ou outros – desde o Cais do Sodré até Santa Apolónia e desde o Terreiro do Paço até o eixo Marquês de Pombal – Saldanha – Campo Pequeno – Rotunda do Areeiro e o resto? ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

– O programa de aquisição de bicicletas e bicicletas elétricas receberá um apoio mínimo de 50% e um apoio máximo de 90% durante os próximos seis meses. aquisição por quem?

– Início do processo de desasfaltamento do centro da cidade RÁPIDO

– Instalação dos sistemas de informação permanente de qualidade do ar 

– Criação do sistema de aviso de emergência de ondas de calor e bulbo úmido

– Instalação pública de painéis solares, mini-eólicas e bombas de calor nos condomínios. VINDOS DE QUE FÁBRICAS?

– Instalação de telhados verdes em todos os edifícios viáveis

– Início da instalação da rede de pomares e hortas urbanas da zona central, dos eixos periféricos 2, 3 e 4 e das zonas agrícolas urbanas dos vales de Chelas, Alcântara, Ajuda e Almirante Reis.

– Novas regras de construção civil reciclada e obrigatoriedade de passividade energética em todos os novos edifícios PAGO POR QUEM?

– Abertura da rede de cantinas públicas e das bibliotecas de abrigos

– Criação da nova rede de pontos de água e refrigeração de emergência

– Disponibilização de dietas piscívoras, vegetarianas e insectívoras nas escolas e cantinas públicas

– Interdição de cargueiros operados a combustível fóssil ✓ QUANDO?

– Interdição de barcos de lazer a combustível fóssil ✓ QUANDO?

– Processo de pintura branca feito pelo município das encostas a Sul AINDA ESTAMOS À ESPERA


Debaixo disso, peguei a impressão de um artigo da internet dentro de uma outra pasta de plástico.

          (Ilustração: Nuno Saraiva)

O movimento nos condena todas
Larissa Johnson

Sou ativista climática há mais de dez anos. Já marchei, fiz greves, criei e assinei petições,  organizei simpósios e conferências, dediquei milhares de horas da minha vida a passar a mensagem, a influenciar decisores EXCELENTES RESULTADOS e, honestamente, a influenciar a minha geração inteira pouco modesta! para impedir as alterações climáticas. Para mim, a maior traição deste momento não é das indústrias petrolíferas que criaram esta situação, mas sim dos setores do movimento que nos empurraram para um beco sem saída. Os assassinos da ORCA não são do movimento!!! * (Organization Resistánce Civilizationelle Anticapitaliste Animaliste), começaram matando baleeiros na Islândia e afundaram as frotas da Maruha Nichiro e Skretting. Os neoludistas também não são do movimento!, ou qualquer que seja o nome que dão a si mesmos agora, começaram por destruir datacenters na Irlanda e na Suécia, agora destroem fábricas de carros em Solihull e Sunderland, mandando milhares de pessoas para o desemprego e quando as fábricas ardem e as pessoas morrem lá dentro trabalhando?

Vários grupos em diferentes países ocuparam portos de gás e sabotaram gasodutos, sendo até atacados pelos estivadores ia acontecer algum dia. Cortam as ligações que precisamos construir estamos há anos a as construindo, É PARA ESPERAR ATÉ QUANDO?!. Mesmo a minha antiga organização, os FFF, este ano ocuparam telejornais em todo o mundo durante as ondas de calor, um ultraje contra a liberdade de imprensa E ainda assim os jornais continuam a não falar da crise climática

Além disso, recusam-se a denunciar a violência e o terror do movimento. Mas o pior de tudo é a Descarbonária, que em apenas dois anos destruiu a fábrica da Volkswagen em Wolfsburgo, afundou um cargueiro com 2 mil carros no Mar do Norte, destruiu centenas de jatos privados por toda a Europa não foram eles e explodiu portos de gás GLP na Itália, França e na Alemanha. Dezenas de pessoas morreram nestes atos de terror 6 pessoas. São piores do que o Estado Islâmico, só lhes falta decapitar pessoas FALTA DE VERGONHA NA CARA. A única coisa razoável que sobra no meio disto tudo é o Mundo Novo NÃO SERIA POSSÍVEL SEM OS OUTROS. COMO NÃO SERIA POSSÍVEL TEREM CRIADO O TRATADO MUNDIAL SEM ISTO, mas é uma organização demasiado esquerdista e irrealista para conseguir a mudança necessária. Sim, o que precisávamos era de mais capitalistas verdes

Com as ondas de calor e o recorde de temperatura global acima dos 1.5ºC, o movimento poderia ter conseguido este ano ultrapassar a maior parte dos obstáculos políticos e conseguido acelerar  a neutralidade de carbono AINDA COM ESTA LENGALENGA, MESMO NO COLAPSO para 2030. Pela loucura desses grupos, hoje estamos mais isolados do que nunca. A irresponsabilidade, a criminalidade e o desespero destes grupos empurrou-nos para um beco sem saída. no beco estávamos nós O resto do movimento tem de denunciá-los: eles não são o nosso movimento. NÃO O TEU, COM CERTEZA

Se este é o movimento pela justiça climática hoje, eu me recuso a continuar a me autodenominar ativista climática. ALELUIA  Precisamos ser realistas e nos suicidar?, a cúpula deste ano na Arábia Saudita é decisiva.AHAHAHAH


Havia uma carta escrita à mão (uma raridade!) pela minha mãe ao pai dela, do final de novembro de 2026.

Olá, pai. Te escrevo para me despedir. Vou estar ausente durante algum tempo e não sei quando nos voltaremos a ver ou a falar. Lembra de quando falamos sobre o que era ter vivido durante uma guerra? Já não preciso especular, pois estamos metidos na maior guerra que já enfrentamos. Eu sei que está com esperança por causa das recentes mudanças políticas, mas eu sei que será preciso mudar muito mais do que foi recentemente prometido. É bom, claro, mas isto devia ter acontecido há 20 anos e não agora, quando tudo está colapsando. 

Mesmo agora, eles continuam a não fazer tudo o que é preciso. Não estão matando as futuras gerações metaforicamente, estão matando-as literalmente. Quando eu vi aquelas mães e pais que perderam crianças para o calor suicidando-se na frente do parlamento, decidi que não posso ficar à espera que um desastre aconteça ao Alex. Vou abandonar a Liga e a Última Geração. São espaços importantes para formar pessoas, e temos formado muitas, mas é preciso mais, e eu sei que há mais.

Não há dúvidas sobre o que vai acontecer se não arriscarmos tudo agora. Eu sei que você sempre me pediu que não me expusesse, que, se fosse possível, que ficasse na retaguarda, escrevendo, ou que tentasse a política institucional, mas não dá. A essas portas já foram bater milhões de pessoas, já perdemos décadas, um desastre para a nossa espécie ter ficado tanta gente atolada nesse pântano. Eu estou viva neste momento e ainda há esperança, por pequena que seja. A catástrofe deste ano não dá mais esperança do que antes, mas pelo menos os fachos foram varridos na enxurrada. O problema é que o que aconteceu agora vai voltar a acontecer e por isso temos de nos lançar de cabeça em mudar tudo enquanto há tempo. Temos de derrubá-los agora, temos de desmantelar o seu poder agora. Em termos práticos, quero te dizer que o António vai ficar com o Alex. Ele vai se afastar para poder tomar conta do bebê e para fazer outro trabalho político complementar, que não é o que eu vou fazer. Falei com o António e acho que vocês três deviam ir viver juntos. Não faz sentido você ficar nessa casa gigante sem a mãe, e ele também precisa ajuda com o bebê.

Sabe, acho que vai ser uma aventura. Estou mais excitada do que temerosa. Sinto-me um pouco culpada por deixar o Alex, sinto que sou uma má mãe. Mas se eu não for, quando tanto tem de acontecer em tão pouco tempo, que pessoa serei eu? Não a pessoa que cresci pensando que era, com certeza. Tenho medo. Tenho medo do que me pode acontecer. Tenho mais medo do que vai acontecer se não ganharmos. Tenho ainda mais medo de perdermos sem sequer termos tentado ganhar seriamente.

Nada mais será igual. Não vou ficar sentada assistindo ao fim do mundo quando tenho energia, imaginação e coragem para tentar ganhar um futuro para todas nós. Se algo me acontecer, saiba que eu aprendi contigo e que tenho e sempre tive a cabeça no lugar certo. Neste tempo, ter a cabeça no lugar certo e não ser radical é impossível. E se inventarem mentiras sobre mim, nunca se esqueça que eu nunca faria nada contra pessoas inocentes. 

Espero que saiba que pensarei em ti e na mãe, além do António e do Alex, enquanto estiver fora. Tudo o que fizer farei pensando em vocês. 

Um grande beijo, Marta.

Pai, destrói esta carta depois de ler.

                        (Ilustração: Nuno Saraiva)

A Lia e o António entretanto voltaram para casa. A Lia me chamou e fui conversar com ela na cozinha, para lhe contar também da descoberta da carta da minha mãe. Ela tinha ido buscar detergente e azeite na bicicleta elétrica e colocou os frascos de plástico grosso em cima da mesa. Há menos azeite disponível, a recarga foi de apenas dois litros, quando normalmente era de cinco. Uma nova praga está afetando as oliveiras. Como a Lia não tinha levado outros frascos recarregáveis, não pôde trazer o restante em óleo de cozinha. As recargas de detergentes para a máquina da louça e para lavar o chão, no entanto, tinham vindo.

Me lembrei que as primeiras leis contra a produção de materiais de plástico e papel descartável também vinham do “Ano 1.8”, quando os sistemas de venda tiveram todos de mudar. Lembro-me bem da grande transformação que foi passarmos a ter sempre de levar conosco tudo o que precisávamos para trazer para casa o que precisávamos: fossem garrafas de vidro, garrafas de plástico grosso, sacos de palha ou de pano. Eu era adolescente. No início foi muito confuso, e muitas vezes tínhamos de voltar pra casa para ir buscar algo onde transportar as coisas, mas com o tempo nos habituamos. Agora planejamos sempre o que vamos buscar antes, e sabemos exatamente o que levar (o que não quer dizer que haja sempre o que queremos). Cozinhei soja frita com arroz para o jantar e fomos nos deitar sob a rede mosquiteira, enquanto eu relia a carta da minha mãe. 

'42 ‘42 é uma série de ficção científica escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva. “’42 começa no fim. O futuro em que se conseguiram travar os piores cenários de mudanças climáticas começa na Lisboa de 2042, uma cidade muito transformada em quase tudo: transportes, energia, alimentação, água, lixo, o Rio Tejo e a comunidade. Em vez do exercício linear da  construção de uma descrição limpa, higiênica, contada apenas pelo lado vencedor e com poucas contradições, desde ‘a’ até ‘b’, em ’42 vamos ter  retratos do que aconteceu em Lisboa e em cidades por todo o mundo, testemunhos, notícias, documentos dos anos loucos em que quase tudo mudou. Guerras, migrações em massa, traições, episódios trágicos e  heróicos, revoluções, transformações, um pouco de tudo aconteceu para chegarmos a 2042 e haver novamente esperança no futuro.”

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