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A Propagação Hegemônica: como as agências globais e a mídia ocidental cobrem a geopolítica (parte 1)

A maioria da cobertura de notícias internacionais na mídia ocidental é fornecida por apenas três agências, com sedes em Nova Iorque, Londres e Paris.
Por Swiss Propaganda Research | OffGuardian (Terje Maloy) – Tradução de Vinícius Moraes para a Revista Opera

“Por isso, você sempre tem que se perguntar: por que eu estou recebendo esta informação específica, neste formato específico, neste momento específico? No fim das contas, é sempre por questões de poder.” Konrad Hummler, executivo de mídia suíço

Este é um dos mais importantes aspectos do sistema dos nossos meios de comunicação, apesar de ainda ser praticamente desconhecido pelo público: a maioria da cobertura de notícias internacionais na mídia ocidental é fornecida por apenas três agências globais de notícias, com sedes principais em Nova Iorque, Londres e Paris.

O papel central desempenhado por essas agências faz com que a mídia ocidental frequentemente informe sobre os mesmos assuntos, utilizando até as mesmas terminologias e formulações. Além disso, governos, militares e serviços de inteligência utilizam essas agências de notícias globais como multiplicadoras para propagar suas mensagens pelo mundo.

Um estudo sobre a cobertura da guerra na Síria por nove dos principais jornais europeus ilustra claramente essas questões: 78% de todas as publicações foram baseadas, completa ou parcialmente, em notícias de agências e 0% em pesquisa investigativa. Não obstante, 82% de todos os artigos de opinião, comentários e entrevistas foram a favor da intervenção dos EUA e da OTAN, enquanto a propaganda ideológica foi atribuída exclusivamente ao lado oposto.

Introdução: “Algo estranho”

“Como um jornal sabe o que sabe?”. A resposta para essa pergunta é provavelmente surpreendente para os leitores de jornais:

“A principal fonte de informação são as notícias de agências. As agências de notícias operando quase anonimamente são, de certa forma, a chave para os eventos mundiais. Então, quais são os nomes dessas agências? Como elas funcionam? Quem as financia? Para avaliar quão bem alguém está sendo informado sobre acontecimentos no Ocidente e no Oriente, é necessário saber as respostas para essas perguntas.” (HÖHNE, 1977, p. 11)

Roger Blum, pesquisador de mídia suíço, ressalta:

“As agências de notícias são as fornecedoras de material mais importantes para os meios de comunicação em massa.  Nenhum veículo de comunicação diário consegue subsistir sem elas… De modo que as agências de notícias influenciam a nossa imagem do mundo. E, acima de tudo, somos informados sobre o que elas selecionaram.” (1995, p. 9)

Tendo em conta sua relevância, é ainda mais surpreendente que essas agências sejam pouco conhecidas pelo público:

“Uma grande parte da sociedade desconhece que as agências de notícias existem… e, na verdade, elas desempenham um papel extremamente importante no mercado dos meios de comunicação.  Todavia, apesar dessa grande importância, pouca atenção foi dada a elas no passado.” (SCHULTEN-JASPERS, 2013, p. 13)

Até mesmo o líder de uma agência de notícias observou:

“Há algo de estranho sobre as agências de notícias. Elas são pouco conhecidas pelo público. Ao contrário de um jornal, a atividade delas não está tanto no centro das atenções, embora possam sempre ser encontradas como fonte das publicações.” (SEGBERS, 2007, p.9)

“O nervo central invisível do sistema dos meios de comunicação”

Portanto, quais são os nomes dessas agências de notícias que “sempre estão na fonte das publicações”?  Atualmente, restam apenas três agências globais:

  • A norte-americana Associated Press (AP) com mais de 4.000 funcionários em todo o mundo.  A AP pertence a empresas de comunicação dos EUA e tem seu principal escritório editorial em Nova Iorque. As notícias da AP são utilizadas por cerca de 12.000 veículos de comunicação internacionais, alcançando mais da metade da população mundial todos os dias.
  •    A semi-estatal francesa Agence France-Presse (AFP), sediada em Paris, possui por volta de 4.000 funcionários. A AFP envia diariamente mais de 3.000 notícias e fotos para veículos de comunicação do mundo inteiro.
  • A agência britânica privada Reuters, de Londres, emprega um pouco mais de 3.000 pessoas.  A Reuters foi adquirida em 2008 pelo magnata da mídia canadense Thomson –  uma das 25 pessoas mais ricas do mundo –, resultando na fusão Thomson Reuters com escritório principal em Nova Iorque.

Além disso, muitos países administram suas próprias agências de notícias. Contudo, quando se trata de notícias internacionais, estas geralmente dependem das três agências globais e basicamente copiam ou traduzem as informações passadas.

As três agências globais de notícias: Reuters, AFP e AP. E as três agências nacionais de países germanófonos: APA da Áustria, DPA da Alemanha e SDA da Suíça.

Wolfgang Vyslozil, ex-diretor administrativo da austríaca APA, descreveu o papel fundamental das agências de notícias da seguinte maneira:

“Agências de notícias raramente são percebidas pelos olhos do público.  No entanto, elas são uma das mais influentes e, ao mesmo tempo, um dos tipos de mídia menos conhecidos.  São instituições fundamentais de importância substancial para qualquer sistema de comunicação. Elas são o nervo central invisível que conecta todas as partes desse sistema.” (SEGBERS, 2007, p. 10)

Pequenas abreviações, grandes efeitos

Entretanto, há um motivo simples para as agências globais, a despeito de sua importância, serem praticamente desconhecidas do público em geral.  Como observa Blum:

“o rádio e a televisão, geralmente, não citam suas fontes, e apenas especialistas conseguem decifrar as referências em revistas.” (1995, p. 9)

O motivo para essa discrição, no entanto, deve ficar claro: os veículos de comunicação não estão particularmente interessados ​​em mostrar aos leitores que eles próprios não pesquisaram a maior parte de suas produções.

A imagem abaixo ilustra alguns exemplos de rotulação de fontes em jornais populares de língua alemã.  Ao lado das abreviações das agências, encontramos as iniciais dos editores responsáveis pela respectiva notícia da agência.

Agências de notícias como fontes em matérias de jornais.

Ocasionalmente, os jornais utilizam material de agência mas não o rotulam de fato.  Um estudo realizado em 2011, pelo Instituto Suíço de Pesquisa de Esfera Pública e Sociedade da Universidade de Zurique, chegou às seguintes conclusões (FOEG, 2011):

“As contribuições por meio de agências ou são exploradas integralmente sem que haja rotulação, ou são parcialmente reescritas para fazê-las parecerem com uma contribuição editorial. Além do mais, existe uma prática de ‘incrementar’ as notícias de agência com o mínimo de esforço: por exemplo, as que não são publicadas são enriquecidas com imagens e gráficos e apresentadas como artigos abrangentes.”

As agências desempenham um papel proeminente não apenas na imprensa escrita, mas também nas emissoras privadas e públicas. Tal aspecto é confirmado por Volker Braeutigam, que trabalhou por dez anos para a emissora estatal alemã ARD e que vê o domínio dessas agências de forma crítica:

“Um problema crucial é que a redação da ARD obtém suas informações principalmente de três fontes: as agências de notícias DPA/AP, Reuters e AFP. Uma alemã/norte-americana, uma britânica e outra francesa… O editor que trabalha em um determinado tópico de notícias só precisa selecionar algumas passagens de texto na tela que ele considere essenciais, reorganizá-las e colá-las com alguns floreios.”

A Schweizer Radio und Fernsehen (SRF, Rádio e Televisão Suíças) também se baseia amplamente em notícias dessas agências. Indagados por telespectadores pelo motivo de uma marcha da paz na Ucrânia não ter sido noticiada, os editores responderam: “Até o momento, não recebemos um único informe das agências independentes Reuters, AP e AFP sobre essa marcha”.

De fato, não apenas os textos, mas também as imagens e as gravações de som e vídeo que encontramos na nossa mídia todos os dias são, principalmente, das mesmas agências de sempre. O que o público desavisado pode considerar como produções do seu jornal local ou canal de TV, na realidade, são informações copiadas de Nova Iorque, Londres e Paris.

Alguns meios de comunicação deram um passo ainda mais além e, por falta de recursos, terceirizaram todo o seu escritório editorial estrangeiro por uma agência. Ademais, é amplamente documentado que muitos portais de notícias na internet publicam sobretudo informes de agências – ver, por exemplo, Paterson (2007), Johnston (2011) e MacGregor (2013).

No fim, essa dependência das agências globais cria uma semelhança impressionante nos noticiários internacionais. De Viena a Washington, os nossos meios de comunicação frequentemente cobrem os mesmos assuntos, usando muitas vezes as mesmas frases – um fenômeno que, em outro contexto, seria associado à “mídia controlada” em estados autoritários.

A imagem a seguir mostra alguns exemplos de publicações alemãs e internacionais. Como é possível observar, apesar da alegada objetividade, um ligeiro viés (geo)político é, muitas vezes, espraiado.

“Putin ameaça”, “Irã provoca”, “OTAN preocupada”, “fortaleza de Assad”: similaridades de conteúdo e de escrita devido às informações de agências globais de notícias.

O papel dos correspondentes

Grande parte da nossa mídia não tem correspondentes internacionais, de maneira que nossos veículos de comunicação não têm escolha a não ser depender completamente de agências globais para notícias estrangeiras. Porém, e os grandes jornais e emissoras de TV que possuem seus próprios correspondentes internacionais? Nos países de língua alemã, por exemplo, são jornais como o NZZ, o FAZ, o Süddeutsche Zeitung, o Welt e as emissoras públicas.

Em primeiro lugar, a desproporção numérica deve ser mantida em mente: enquanto as agências globais têm milhares de funcionários no mundo inteiro, até mesmo o jornal suíço NZZ, conhecido por sua cobertura internacional, mantém apenas 35 correspondentes em solo estrangeiro (incluindo representantes comerciais). Em países com dimensões continentais como a China e a Índia, o jornal possui apenas um correspondente internacional para cada. Toda a América do Sul é coberta por apenas dois jornalistas, enquanto que na ainda maior África ninguém está permanentemente alocado.

Mais do que isso, em zonas de guerra, os correspondentes raramente se aventuram a fazer a cobertura. Na guerra na Síria, por exemplo, muitos jornalistas “cobriram” de cidades como Istambul, Beirute, Cairo e até mesmo de Chipre. Para completar, muitos desses jornalistas não possuem as habilidades linguísticas para entender as pessoas e as mídias locais.

Então, como é que correspondentes em tais circunstâncias sabem quais são as “notícias” na sua região do mundo? Mais uma vez,  a resposta fundamental: por meio das agências globais. Joris Luyendijk, correspondente holandês no Oriente Médio, descreveu de maneira impressionante, em seu livro People Like Us: Misrepresenting the Middle East, como os correspondentes internacionais trabalham e como eles dependem das agências globais:

“Eu sempre pensei em correspondentes como uma espécie de historiadores em tempo real. Quando algo importante acontecia, eles iam atrás, descobriam o que estava acontecendo e relatavam o ocorrido. Mas eu não fui enviado para descobrir o que estava acontecendo, isso era feito muito antes. Eu fui para recitar uma notícia do local.

Os editores ligavam da Holanda quando algo acontecia, enviavam por fax ou por e-mail os comunicados à imprensa, e eu os recontava com minhas próprias palavras no rádio ou os transformava em alguma matéria para o jornal. Esse é o motivo pelo qual os meus editores achavam mais importante que eu estivesse no lugar em si do que realmente saber o que estava acontecendo. As agências de notícias forneciam informações suficientes para que você pudesse escrever ou falar sobre qualquer crise ou reunião de cúpula.

É por isso que você frequentemente se depara com as mesmas imagens e informações se folhear alguns jornais diferentes ou alternar entre canais de notícias.

Nossos homens e mulheres nos escritórios de Londres, Paris, Berlim e Washington… Todos pensavam que os temas errados estavam dominando os noticiários e que estávamos seguindo os padrões das agências de notícias muito servilmente…

A ideia comum sobre os correspondentes é que eles “possuem a informação”, mas a realidade é que as notícias são como uma esteira rolante em uma fábrica de pães. Os correspondentes estão no final da esteira, fingindo que nós mesmos assamos o pão, quando, na verdade, tudo o que fizemos foi colocá-lo em sua embalagem…

Certo dia um amigo me perguntou como eu conseguia responder, de hora em hora e sem hesitar, todas as perguntas durante as transmissões. Então, eu o disse que, como no noticiário da TV, você já sabe todas as perguntas com antecedência. A resposta dele por e-mail veio repleta de expletivos. Meu amigo havia percebido que, por décadas, o que ele estava assistindo e ouvindo nos noticiários era puro teatro.” (LUYENDJIK, 2009, pp. 20-22, 76, 189)

Em outras palavras, o correspondente típico, em geral, não é capaz de fazer uma investigação independente. Pelo contrário, ele trata e reforça os temas que já foram prescritos pelas agências de notícias – o notório “efeito mainstream”.

Além disso, por economia de custos, muitos veículos de comunicação compartilham seus poucos correspondentes internacionais, portanto, dentro de grupos específicos de mídia, as mesmas informações internacionais são frequentemente utilizadas por várias publicações – nenhuma delas contribuindo para a diversidade da cobertura.

“O que as agências não reportam, não aconteceu”

O papel central das agências de notícias também revela por que, em conflitos geopolíticos, a maioria das mídias utiliza as mesmas fontes. Na guerra na Síria, por exemplo, o “Observatório Sírio de Direitos Humanos” – uma organização de uma pessoa só, bastante duvidosa e com sede em Londres – se destacou. A mídia raramente indagava diretamente esse “Observatório”, já que seu operador era muito difícil de ser contatado, até mesmo pelos jornalistas.

Em vez disso, o “Observatório” entregava suas informações a agências globais que, então, as enviavam para milhares de veículos de comunicação, que, por sua vez, “informavam” centenas de milhões de leitores e espectadores em todo o mundo. Por que as agências de todos os lugares se referiram a esse estranho “Observatório” em suas notícias e quem realmente o financiava são perguntas que raramente eram feitas.

Por isso, o ex-editor-chefe da agência de notícias alemã DPA, Manfred Steffens, afirma em seu livro The Business of News:

“Uma notícia não se torna mais correta simplesmente porque é possível fornecer uma fonte para ela. É bastante questionável confiar mais em uma notícia apenas pelo fato de uma fonte ter sido citada. Por trás do escudo protetor que uma ‘fonte’ proporciona para a notícia, algumas pessoas se sentem bastante inclinadas a espalhar coisas muito suspeitas, mesmo que elas próprias tenham dúvidas legítimas sobre sua veracidade. A responsabilidade, pelo menos moralmente, sempre pode ser atribuída à fonte citada.” (1969, p. 106)

A dependência de agências globais também é uma das principais razões pelas quais a cobertura midiática dos conflitos geopolíticos é frequentemente superficial e errônea, uma vez que as relações históricas e os contextos são fragmentados ou completamente ausentes. Como apontado por Steffens:

“As agências de notícias são impulsionadas quase que exclusivamente por acontecimentos em tempo real e são, portanto, a-históricas por sua própria natureza. Elas são relutantes em contextualizar mais do que o estritamente necessário.” (1969, p. 32)

Por fim, o domínio das agências globais explica o porquê de certas questões e eventos geopolíticos – que muitas vezes não se encaixam bem na narrativa dos EUA/OTAN, ou são “pouco importantes” – não são mencionados em nossos meios de comunicação. Se as agências não cobrem algo, consequentemente, a maioria da mídia ocidental não estará a par do ocorrido. Como apontado por ocasião do 50º aniversário da alemã DPA:

“O que as agências não reportam não aconteceu.” — Wilke (2000, p.1)

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