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Gaza: o terror da gestação, do parto e da maternidade em uma terra devastada

Abortos espontâneos, ausência de medicamentos e internações, bebês traumatizados: ser mãe na Faixa de Gaza sob ataque israelense é um terror
Alejandra Mateo Fano
Um bebê é tratado no hospital de Al Shifa, na Faixa de Gaza, em abril de 2008. (Foto: Kashfi Halford / Flickr)

A violência reprodutiva que tem atormentado as mulheres de Gaza desde outubro do ano passado não se limita à falta de meios e de apoio institucional para dar à luz aos seus bebês com segurança. Os efeitos fatais sobre a maternidade causados pelo genocídio palestino, que já ceifou mais de 33,8 mil vidas na Faixa – 70% delas mulheres ou crianças – começam logo no início da gravidez, pois é impossível manter o acompanhamento médico durante a gestação e até o período pós-parto, que é realizado em condições extremamente insalubres e superlotadas, sem espaços seguros onde as mães possam se recuperar física e emocionalmente após o parto.

Como é possível dar luz sem acesso à água potável, medicamentos e alimentos? Quais são efeitos do estresse provocado pelo assédio à saúde materna e, portanto, ao feto? O que ocorrerá, no futuro próximo, a todas essas gerações de bebês nascidos em meio ao caos mais absoluto? Antes de abordar todas essas questões, é necessário considerar que, em uma estrutura de colonização e opressão, ter filhos se torna, para muitos palestinos, uma forma de insubordinação e resistência anti-ocupação frente um Estado israelense que quer exterminar seu povo para satisfazer os objetivos imperialistas do sionismo. A nação palestina busca se tornar mais numerosa a cada dia, de modo que, nesse contexto, uma gravidez é praticamente um ato político de protesto.

Fernanda Vega, coordenadora da Médicos do Mundo e organizadora da resposta médica em Gaza, viu em primeira mão o horror com o qual as mulheres palestinas têm de lidar hoje. Ela fala ao El Salto sobre a jornada pela qual passam as mulheres que parem seus filhos no território semi-destruído que Gaza é hoje – a maioria delas engravidou antes de 7 de outubro –, jornada que começa a partir do momento em que o acesso aos exames pré-natais é cortado devido aos ataques ao enclave. Isso significa que as crianças que estão sendo gestadas com graves deficiências nutricionais e sem nenhum tipo de suplemento não estão sendo monitoradas, o que impossibilita a detecção de qualquer patologia que os fetos possam estar desenvolvendo. 

“As ONGs até enviaram scanners de ultrassom, mas há um dilema ético no sentido de que as pessoas que lidam com os scanners podem dizer ‘seu bebê tem uma doença’ ou ‘ele não está se movendo’, mas, nesse caso, o que fazer? Atualmente, não há nenhuma maneira de atenuar o que pode acontecer com esses fetos”, diz Vega. Ela também explica que há, de fato, um número muito alto, mas até agora indeterminado, de abortos espontâneos, devido ao aumento descontrolado do estresse ao qual as mães grávidas são submetidas diariamente. Mas também estão sendo relatados problemas sérios de desnutrição no nascimento, atraso na maturação, formação do sistema nervoso ou malformações em geral.

De acordo com esta médica, as mulheres em Gaza tiveram que se adaptar a um cenário de sobrevivência quase animalesco, no qual, praticamente da noite para o dia, elas passaram de uma maternidade desfrutada e compartilhada em comunidade para uma gestação forçada em condições extremas e subumanas. A ausência de controles e monitoramento é algo realmente novo para elas.

“Antes, as mulheres estavam acostumadas a fazer seus check-ups e dar à luz em instituições de saúde onde a primeira opção era sempre o parto vaginal, mas sempre havia disponível a opção de realizar uma cesárea, havia hospitais com instalações de pediatria, e agora, de repente, muitas delas se encontram em uma situação de deslocamento forçado, vivendo em tendas e sem encontrar um hospital onde possam dar à luz”, nos declarou Sofía Piñeiro, coordenadora médica dos Médicos Sem Fronteiras em Rafah.

“Posso imaginar como deve ser diferente para uma mulher que estava ansiosa pela gravidez, feliz e indo aos exames pré-natais, e que de repente se vê no terceiro trimestre sem ter para onde ir para dar à luz, e ciente de que não poderá alimentar ou proteger seus filhos quando eles nascerem”, acrescenta Piñeiro. Ela admite que, diante da gravidez, o elemento mais desfavorável é o estresse e a ansiedade pelos quais as mulheres passam, tanto pelo terror do bombardeio diário da cidade quanto pela incerteza do futuro sem esperança que aguarda seus filhos.

Dar à luz em uma cidade em ruínas

De acordo com a UNRWA, após a destruição do hospital Al-Shifa, o maior e principal centro de referência da Faixa, com 750 leitos, 26 salas de cirurgia e 32 unidades de terapia intensiva (UTI), apenas 10 dos 36 hospitais de Gaza ainda estão funcionando, e vários deles apenas parcialmente. O hospital Al Emirati é o único centro médico de maternidade em funcionamento em toda a Faixa de Gaza, de modo que as mulheres que precisam parir vão diretamente para lá, onde ocorrem cerca de 15 a 80 partos por dia. Durante os partos, as mulheres precisam dar à luz, na melhor das hipóteses, nessas enfermarias totalmente superlotadas, em locais onde duas ou três mães são colocadas por leito por falta de mais espaço, embora muitas deem à luz na rua ou em tendas. “Elas estão dando à luz sem anestesia, as que fazem cesarianas acabam com infecções causadas por feridas causadas pelo parto em locais totalmente insalubres, e essas mesmas cesarianas, como todas as outras operações, são realizadas sem analgesia. A nível mental, tudo isso é transmitido ao bebê durante o parto, afetando o vínculo com a criança”, diz Fernanda, com preocupação.

Em uma tradição cultural islâmica, em que o pudor e a privacidade assumem especial relevância, a superexposição a que as mulheres são constantemente submetidas tem repercussões diretas em seu autoconceito e em suas relações sociais, ou, como diz Sofia, “em todo o seu modo de ser, porque a cultura não é algo de que se abra mão ou que se adie por causa de uma guerra”. Para atenuar a persistente sensação de vulnerabilidade que elas experimentam, e apesar do desespero generalizado, não faltam apoio coletivo e redes de solidariedade entre as mulheres, que reconhecem que são companheiras diante da mesma adversidade. “Eu me lembro de uma imagem muito latente na enfermaria de pós-parto, éramos quase todas mulheres porque é um lugar onde se amamenta, então a presença de homens naquela enfermaria é restrita a quase zero para que as mulheres possam ficar com os cabelos descobertos e à vontade. Havia uma mulher com um pé até o tornozelo descoberto do lençol e foi a própria enfermeira que foi cobrir o pé dela, como se dissesse: eu sei que se você estivesse acordada não gostaria de sair por aí mostrando. É aí que você vê a sororidade”, conta Sofía.

A médica compara a superexposição sentida pelas mulheres muçulmanas durante este genocídio à vergonha que qualquer mulher ocidental sentiria se tivesse que sair nua para comprar pão, independentemente de haver ou não um conflito em andamento. Da mesma forma, a solidariedade histórica entre as mulheres na Palestina também se estende àquelas em situação de pobreza menstrual. No início do conflito, um grande número de mulheres começou a compartilhar suas pílulas anticoncepcionais para evitar ter de menstruar em condições que, como se descobriu mais tarde, colocariam suas vidas seriamente em risco.

Com o passar do tempo, elas deixaram de compartilhar anticoncepcionais e passaram a compartilhar absorventes higiênicos que elas mesmas fabricam à mão com tecido de tendas e barracas, pois os kit menstrual padrão fornecido por organizações de direitos humanos, como o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), que inclui suprimentos essenciais de higiene menstrual, como sabonete e absorventes higiênicos, é claramente insuficiente. Conforme desenvolvido por Ammal Awadallah em seu artigo The forgotten women and girls in Gaza: a sexual and reproductive health catastrophe (As mulheres e meninas esquecidas em Gaza: uma catástrofe de saúde sexual e reprodutiva), as mulheres têm tomado comprimidos de noretisterona que são frequentemente recomendados para condições como sangramento menstrual excessivo, endometriose e períodos dolorosos. Algumas mulheres até perderam a menstruação devido ao estresse.

O próprio UNFPA informou que, somente na Margem Ocidental de Gaza, há mais de 73 mil gestações no momento, o que significa que mais de 8.120 mulheres darão à luz em maio, em meio aos combates. Esses números são um pouco mais altos do que os de novembro, apenas um mês após o início dos bombardeios, quando o número de gestações em andamento era de mais de 50 mil (aproximadamente 166 nascimentos por dia), conforme informou o El Salto em outubro passado. Sendo a precariedade absoluta e a ausência de todos os tipos de recursos técnicos e humanos uma realidade agora normal em Gaza, os membros do UNFPA consideram o acesso a um atendimento de saúde adequado para todas essas mulheres prestes a dar à luz “um desafio inimaginável” para médicos e parteiras. A organização observa em seu artigo Impossible Choices in Gaza (Escolhas impossíveis em Gaza) como as mulheres estão dando à luz prematuramente devido ao terror de que, como resultado do aumento das emergências obstétricas, poucas sobrevivam à gravidez e ao parto; e as que sobreviverem precisam voltar para abrigos superlotados e assentamentos informais que não dispõem de água potável e instalações de higiene, onde as doenças infecciosas são abundantes.

Uma geração condenada pela barbárie israelense

Uma grande incógnita é o que acontecerá com os bebês nascidos em meio ao conflito. Piñeiro ressalta que, após o período pós-parto, “as mães deveriam ficar pelo menos 24 horas no hospital para todos os tipos de check-ups, mas esse tempo foi reduzido para seis horas ou até mesmo quatro. Isso provavelmente significa que não estamos conseguindo identificar a tempo muitos dos problemas que precisam ser verificados no período pós-parto, mesmo que a mulher não tenha tido uma hemorragia ou febre, porque há patologias em bebês que geralmente aparecem pelo menos 24 a 48 horas depois.” Jaldia Abubakra, do Movimento de Mulheres Palestinas na diáspora Alkarama, denuncia ao El Salto a falta de meios para cuidar de bebês nascidos prematuramente: “Não há incubadoras para eles porque não há eletricidade e quase não há hospitais; de fato, no segundo mês da agressão a Gaza, vimos como eles desconectaram as incubadoras no hospital central”.

Sobre a questão do futuro a médio e longo prazo das crianças que têm a sorte de sobreviver aos primeiros meses de vida, Piñeiro teme, por enquanto, um aumento sem precedentes de casos de deficiência ligados a doenças que não foram tratadas a tempo ou adequadamente por não terem recebido o melhor atendimento médico, como cirurgias reconstrutivas ou internações prolongadas para manter o controle de infecções. A longo prazo, Jaldia prevê que, depois de tudo o que aconteceu, e dado o número incontável de traumas que essas novas gerações de crianças palestinas acumularão desde o nascimento, “elas precisarão de muito tratamento psicológico, muita terapia para poder lidar com tudo isso” e lembra os efeitos que o ataque israele de 2014 – a Operação Margem Protetora – teve sobre os pequenos, o que a faz prever a magnitude dos efeitos do genocídio sobre a saúde mental deles. “Havia muitos casos de crianças com medo, com pesadelos, crianças que molhavam a cama à noite por medo e terror, gagueira, medo de sair do quarto sozinhas para ir ao banheiro, e um longo etc.”. A ativista alega que “muitas crianças perderam toda a sua família, viram horrores porque viram corpos estirados ou desmembrados na frente delas, e isso é algo que levará tempo para ser reparado”.

(*) Tradução de Raul Chiliani

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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