Da ordem e do progresso fez-se o caos; este é o único tabuleiro de xadrez disponível para a política brasileira no momento. É como se, no meio do enfrentamento, o tabuleiro fosse bagunçado; as peças, trocadas de lugares; e as casas quadriculadas sem sua simetria usual. Só que, na política, não existe árbitro para interromper a partida.
O caos instaurado pela combinação de uma doença pandêmica letal e uma crise econômica catastrófica catalisa a desintegração do feitiço da institucionalidade, como que desorientando os pontos cardeais. O norte não é mais norte, o sul não é mais sul. Normas se revelam letras vazias e fracas, e a fortuna impõe a exceção em suas diversas formas de expressão. A extrema direita revela a precariedade de sua aliança em fraturas, e jogadores diversos movem seus peões. Em nome do combate ao novo coronavírus, direitos são cerceados, novas normas decretadas e a ordem é questionada.
Se o “soberano” é, como nota o jurista nazista Carl Schmitt, aquele que “decide sobre a exceção”, cabe a nós indagar: quem decidirá que chegamos ao fim da situação de exceção?
O xadrez de Fischer – ou o caos sem fórmula
Era 11 de setembro quando foi perpetrado um dos maiores atentados terroristas da história. Salvador Allende, então presidente do Chile, se refugiava no Palacio de La Moneda, onde viria a ser cercado por tanques de guerra, coberto de balas de infantaria e bombardeado por aviões. Em A Fórmula para o Caos (2008), Moniz Bandeira mostra, com base em documentos da Agência Central de Inteligência (CIA) tornados públicos pelo Church Committee, como o caos fora um elemento estratégico ativamente construído com o objetivo de desestabilizar o país sul-americano e facilitar uma troca de regime por meio de um golpe militar. Algo não muito diferente, mas sem a mesma gama de documentos, que ocorreu em seu país natal, em 1964. Em ambos os casos, da ordem, fez-se o caos, e do caos, fez-se uma nova ordem. Clichê, mas verdadeiro.
Um ano antes, em 2007, a jornalista veterana Naomi Klein havia notado como políticos liberais se utilizavam midiaticamente de ataques terroristas e desastres naturais, sociais e humanitários para fazer avançar a agenda econômica de grandes corporações e monopólios. A terapia do choque ganhou o status de doutrina política.
Não interessa, portanto, quem bagunça o tabuleiro. Importa é quem terá a virtù para arrumá-lo. A bagunça não cria novas peças, apenas implode tendências anteriores, já estabelecidas no tabuleiro, e as coloca em choque direto, ao passo que se inicia a desintegração do feitiço institucional – aquele que nos faz acreditar que somos iguais perante a lei, que garantias normativas possuem uma força própria e que política se decide no voto.
As rupturas na ala do rei
O fascismo é uma aliança precária. Se é falso que o Brasil vive um regime fascista, também é falso negar sua existência como ator político hoje. Como proto-fascista, Bolsonaro representa o “pequeno patrão enraivecido”, como diria Lenin; o setor da pequena e média burguesia que almeja “resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadora e de tiros de pistola”, tem como quadros fundamentais funcionários do distintos órgãos de coerção no Estado burguês e que só podem chegar ao poder em aliança com grandes corporações. Tal grupo político, porém, só pode se movimentar num espaço estreito: de um lado, necessita de apoio político de quem mais rejeita – a classe trabalhadora mistificada em “povo, que é conservador”. Para isso, constrói um “povo” à sua imagem e semelhança, mas evitando que o “mal cheiro” da realidade não transborde às consciências e se torne evidente. De outro lado, suas margens de ação política se subordinam ao financiamento, orientação e direção política das grandes corporações, o capital financeiro.
A transformação de aliados em adversários a serem eliminados demonstra essa precariedade, assim como a incapacidade de neutralizar com eficiência parte dos meios de comunicação “críticos” ligados ao capital financeiro. A ingovernabilidade obrigava – e continua obrigando – tanto a Bolsonaro quanto à burguesia como classe a explorar a carta no coturno. Em alguns meses, todo o núcleo duro do governo se tornou composto por quadros militares, a maioria com experiência na violência neocolonial no Haiti, incluindo, aí, a participação estratégica na reorganização do Gabinete de Segurança Institucional – o setor de inteligência – empreendida primeiro por Etchegoyen, depois por Gal. Heleno, e a escalada à Casa Civil do Gal. Braga Netto, um militar que se destaca não pelo diálogo com a sociedade civil, mas por ser uma peça importante em esquemas amplos de repressão, como evidencia seu currículo como coordenador geral da assessoria especial dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos e como responsável pela intervenção no Rio de Janeiro (evento em ocorreu o assassinato da vereadora Marielle Franco, que resta não solucionado quanto a seus mandantes), além da proximidade profissional ao imperialismo durante o período que atuou como adido militar junto à embaixada brasileira nos Estados Unidos.
De todo modo, é a forma de se agarrar ao poder – pelo coturno – que acaba por minar suas próprias bases de sustentação. Bolsonaro, cada vez mais, aparece para seus patrões como uma peça descartável na nova teia de alianças exigida para a edificação de um novo sistema de dominação, e passa a apostar em sua estadia no cargo na construção de um novo aparelho partidário, rachando com o próprio partido que o levou à cabeça do Executivo.
A fortuna, porém, não conhece misericórdia. A imposição de uma exceção pela atual situação pandêmica impõe, da mesma forma, a existência de alguém para impô-la. Quem pode? As fraturas na extrema direita se abrem a céu aberto e se revelam, colocando em xeque as próprias instituições. Numa ação coordenada com João Dória (SP) e Ibaneis Rocha (DF), o Governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, sai na vanguarda da crise política e toma medidas fora de sua competência legal, como o fechamento das estradas e divisas aeroviárias do estado do Rio, justificando-as com base na inércia do presidente. Também limita a circulação de pessoas dentro da unidade federativa entre os transportes públicos, espaços fechados e nas ruas. Na esteira, Crivella decreta o fechamento obrigatório do comércio, com exceção para farmácias e monopólios de supermercados. É quase como se, nas palavras de Bolsonaro, “só falta ele [Witzel] declarar independência”. Bingo. Bolsonaro até esperneia em “estado de sítio”, mas desce o tom.
Ao Congresso em Foco, um dos “aliados” do presidente, Major Olímpio, especula quanto a sua queda: os profissionais da segurança pública, os empresários do agronegócio, “investidores” e a base evangélica estariam se distanciado do atual presidente. Faltou, porém, evidenciar a quem estão se aproximando. “É para ligar o alerta”. Chega até a admitir: impeachment nada tem a ver com crime de responsabilidade, como foi no caso da derrubada da presidente Dilma Rousseff. Adiciona, como porta-voz não autorizado, que os militares “não vão avançar um milímetro em ruptura de qualquer ordem ou descumprimento da Constituição”. Pensando bem, não é necessário romper com a Constituição quando a própria prevê decretos de Garantia de Lei e da Ordem, abraça uma lei que pode considerar movimentos sociais como “terroristas”, e enquanto se discute a aprovação, no Congresso, de uma verdadeira licença para matar.
Como forma de combater a crise política e sanitária, mais uma medida de exceção aparece no radar: o Ministro da Saúde acaba de defender que as eleições municipais sejam adiadas.
A impossibilidade do bloco de classes no poder realizar pactos sociais reais – isto é, em que parte de seu produto é abdicado em prol de um projeto de “desenvolvimento” – e a precariedade evidente do bloco de extrema-direita o força a, contanto que prevaleça o sistema eleitoral, constantemente renovar seus quadros maiores. Uma derrubada de Bolsonaro, da mesma forma, não significa o fim do xadrez. Muitas vezes, um xeque é facilmente defendido com uma troca de peças. Bolsonaro é uma peça descartável. Sobretudo quando um defensor aberto do extermínio nas favelas se torna, como num passe de mágica, num estadista sensato.
O avanço dos peões
Na disputa para saber quem comandará a exceção, o que antes seriam métodos excepcionais tornam-se naturais e passam a ser incrementados, agora com o apoio geral, justificados pelo combate ao novo coronavírus. Veja bem: ainda que essas medidas sejam necessárias no combate ao coronavírus, também é verdade que são bastante convenientes para impedir movimentos de reivindicação e políticos que tendem a se intensificar com a crise geral da sociedade brasileira.
A política, como já exposto, não para. Maia suspendeu, momentaneamente, o avanço da pauta da reforma administrativa. Mas nada indica que permanecerá assim até uma nova normalidade. O Brasil, hoje, possui cerca de 11,4 milhões de servidores públicos a serem afetados por essa reforma, incluindo os eleitores de Bolsonaro. A maioria dessas categorias possuem sindicatos suficientemente organizados a nível nacional, e poderiam causar um blackout no Estado brasileiro no decorrer das votações. Junta-se a isso a disposição de luta de outros setores, como a recente greve dos petroleiros e a recém-deflagrada greve de 40 mil metalúrgicos em São José do Campos.
Da mesma forma, uma ampla batalha ocorre no setor do telemarketing. Paralisações e protestos estão sendo organizados em crescente pelo país nos pontos de trabalho que não contam com o mínimo da higiene, como sabonetes, papel higiênico e álcool em gel. O governo chegou a ponto de enquadrar a categoria como serviço essencial durante a crise pandêmica! A situação na Itália, que rapidamente foi tomada por greves “selvagens” pela estatização dos hospitais e do sistema de saúde, parece telegrafar nosso futuro próximo. Qual não seria o caos imposto de baixo para cima nessa situação? O movimento reivindicativo pode rapidamente ser contornado a uma greve de questionamento político.
Ou seja, de fato, o governo pode estar em xeque. O xeque é uma ameaça direta ao Rei. A verdade, porém, é que todo movimento de peça contém uma ameaça, implícita, mesmo que não se saiba, e mesmo que não atinja diretamente o Rei. Um xeque, muitas vezes, pode ser facilmente defendido. Um bom desenvolvimento das peças, preparando um ataque fulminante nas casas certas, nem sempre pode. Não é a ameaça que termina a partida, mas apenas sua concretização – o xeque-mate. O bloco no poder, portanto, também move suas peças, ainda que as camufle como uma amplamente desejada defesa sanitária.
A ilusão não pode render o analista nesse momento. Se é verdade que tais medidas são eficientes contra o novo coronavírus, seu uso político também é evidente. Foi numa sexta-feira, 14 de março, que Witzel decretou o fechamento de uma série de espaços públicos e afirmou que usaria a PM para evacuar esses espaços, incluindo praias, se fosse necessário. Foi um sábado, 15 de março, que a horda verde-e-amarelo preencheu algumas ruas da zona sul carioca. Não foram reprimidos. As manifestações de 18 de março, porém, foram canceladas. E se não fossem?
De uma hora para outra, as técnicas de combate a uma pandemia se tornaram as mesmas técnicas de fechamento de regime. Em nome do coronavírus, todo tipo de direito, inclusive político, passa a ser cerceado.
Dando um passo à frente nas medidas já listadas, Israel começa a rastrear celulares por meio de seu serviço de inteligência. Além de suposta medida preventiva, é também uma boa propaganda: pelo menos desde 2017, é bem conhecido o serviço de vigilância remota a celulares que uma empresa israelense vende a governos. Nessa ocasião, se tornou pública uma denúncia de que o governo mexicano se utilizou desse software de vigilância contra jornalistas e ativistas. O mesmo software, sabe-se lá por quem, também já foi utilizado no Brasil, como aponta Citizen Lab. Quanto tempo levará para Witzel, reconhecido entusiasta das técnicas de repressão de Israel, notadamente a utilização de franco-atiradores para abater civis e drones com capacidade de atirar, importar mais essa bugiganga?
O xeque descoberto
Não é o mérito do debate desvendar se essas técnicas são necessárias, eficientes, ou se outras deveriam ser implementadas. A questão é: quem decide quando implementá-las no caos, tem a chave para implementá-las na ordem. Quem decidirá que a pandemia acabou e todo o aparelho de repressão e vigilância instalado deve ser abaixado? E se for decidido que deve ser retrocedido apenas parcialmente? Ou mesmo, quem terá força para evitar que, se abaixados, não possam ser acionados novamente, ao estalar dos dedos, para combater demais “excepcionalidades”? Com lideranças absurdas, a normalidade facilmente se torna excepcional. Uma greve facilmente pode ser uma medida que exija força excepcional!
A combinação de uma crise devastadora do capital e uma situação pandêmica, cuja consequência é o caos, impôs uma situação de exceção. Quadros da extrema direita souberam se aproveitar, buscando renovar a mesma aliança precária sob novas aparências.
As insatisfações com as políticas neoliberais, a possível estagflação no horizonte e, quem sabe, crises de desabastecimento e especulação com mercadorias, não aparentam distância de nosso horizonte. O acirramento das contradições e insatisfações não desaparecerão. O que fazer, portanto? Bater panela? A verdade é que o desespero e a débil organização de nossa classe nos colocou em xeque descoberto – aquele que o adversário move uma peça, mas te deixa em xeque com a outra, na retaguarda.